25 Março 2020
"Convém enfrentarmos essa crise pensando no 'dia seguinte' a ela. Mas, acreditar que haverá uma volta à normalidade em algum momento após o 'controle' do vírus, talvez seja uma visão um tanto idealista. A 'revolução viral' tende a ter um alcance temporal amplo e indefinido", escreve Erick Kayser, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
A crise do Coronavírus nos coloca perante a primeira pandemia trágica no período da globalização. O rápido avanço geográfico dos casos de infecção pelo Covid-19 tem alarmado a todos e todas. Desde sua disseminação inicial na China, espalhou-se para a Ásia, com destaque para a força com que atingiu a Coreia do Sul. Pouco tempo depois, apresentou-se a dramática situação do Irã e em semanas após sua chegada na Europa, já contabilizava milhares de vítimas fatais, tendo a Itália como o caso mais extremo. Nas Américas, os EUA se encontram em um estágio mais avançado da disseminação do vírus que o Canadá e a América Latina, tendo o Brasil uma situação de maior contágio que países vizinhos como a Argentina ou ainda o México. No continente africano e na Oceania, também já se registram casos de infecção, tornando o Coronavírus uma ameaça efetivamente globalizada.
Em todas as latitudes, a pandemia tem demonstrado uma significativa força de disrupção social: o bloqueio de fronteiras, a paralisação do trabalho em diversas áreas, o esvaziamento de praças públicas, o fechamento de escolas, universidades, repartições, teatros, cinemas, etc. A consequente crise econômica se agrava e alguns analistas chegam a traçar cenários recessivos que guardam paralelo apenas com os da crise de 1929, não sendo absurdo imaginar cenários ainda piores. As consequências políticas desta crise são variadas e ainda com inúmeros desdobramentos possíveis que sequer se insinuam agora. Alguns efeitos, contudo, já se colocaram em marcha, e provavelmente terão importantes desdobramentos futuros.
Um destes efeitos é uma espécie de abrupto fim do discurso neoliberal, que dia após dia está ganhando espaço nos países mais atingidos pelo Covid-19. A fantasia do livre mercado como solução para todos os problemas foi escamoteada e substituída por um pragmático retorno ao papel interventor do Estado para momentos de crise. Os países que contam com sistemas públicos de saúde, por exemplo, estão conseguindo enfrentar melhor a crise; por esta razão, em muitos países que privatizaram hospitais ou parte de seus serviços de saúde, estão agora os reestatizando para que haja um efetivo atendimento à população. O prolongamento desta crise poderá, como consequência, colocar o discurso neoliberal em profundo descrédito e posterior desuso. Este seria um dos efeitos positivos, por assim dizer, desta crise, sendo que outros poderiam ainda ser levantados – como florescimento de laços de solidariedade próprios de momentos de emergência ou de mudanças de hábitos cotidianos. Porém, neste texto vamos mirar para um dos aspectos políticos tendencialmente mais regressivos e perigosos do ponto de vista social que esta crise está permitindo: a pandemia como instrumento de fechamento democrático.
Um dos efeitos mais evidentes e incontornáveis é a suspensão do direito individual de ir e vir,afetando um dos princípios basilares da noção moderna de liberdade. A política preventiva de distanciamento social para conter a disseminação do Covid-19, até o momento, mostra-se como a mais efetiva. Parece que, quanto mais radical forem as restrições, maiores seriam seus efeitos para o controle da doença. Este “estado de emergência” tem sua adesão da própria população, de forma consentida ou coagida, baseada em um compromisso de transitoriedade destas restrições e reforçada pelas evidências científicas de que um descontrole da disseminação do vírus poderia ter efeitos mortais para parcelas expressivas da população. O problema é quando estas restrições são utilizadas para promover rupturas na ordem democrática. Israel inaugurou aquilo que poderíamos chamar de um Coronagolpe, com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, na última quinta-feira (19/03) decretando o fechamento do parlamento e dos tribunais israelenses. Netanyahu passou assim a acumular poderes excepcionais, sob o argumento de que seria esta a forma de “enfrentar a guerra contra o coronavírus”.
O gesto autocrático de Netanyahu abre, em termos globais, um perigoso precedente que é o uso da pandemia para estabelecer governos ditatoriais. Para não restar dúvidas do grau de arbítrio do caso israelense, basta lembrar que no último ano, o país realizou três eleições sem que Netanyahu obtivesse os votos necessários para assegurar sua reeleição, estando desde então ocupando o poder de forma interina. Sem apoio popular para assegurar uma maioria, o fechamento político de Israel só pode ser compreendido como uma medida autoritária de assegurar, pela força, a perpetuação de Netanyahu no poder de forma ilegítima. Se fechar o parlamento já seria um sinal inequívoco da disposição de estabelecer uma autocracia, com a excessiva concentração de poderes em uma única pessoa, o fechamento dos tribunais não deixa de ser um tanto casuísta – afinal, começariam esta semana a julgar Netanyahu, investigado por suborno, fraude e quebra de confiança em três casos diferentes. Outra medida que deverá ter consequências nefastas é o anúncio que será aplicada espionagem massiva para a toda a população, permitindo que o serviço secreto israelense, o Mossad, por exemplo, tenha acesso aos celulares de qualquer cidadão, assim como tomar medidas de controle severas. Tendo o controle epidêmico como pretexto, não é difícil imaginar um eventual uso político para perseguir opositores da nova ditadura. Em certa medida, será estendido para toda a população um padrão de controle repressivo sobre os corpos que até então era reservado apenas para os palestinos, provavelmente sem o mesmo padrão brutal de letalidade que a “guerra ao terrorismo” justificava nos territórios ocupados.
Se o caso de Israel se coloca como a situação mais grotesca e preocupante, em países democráticos a situação não é menos delicada. O filósofo italiano Giorgio Agamben, em artigo publicado no Il Manifesto, em 27 de fevereiro, no início das medidas restritivas na Itália, alertava para os efeitos incontornavelmente regressivos, do ponto de vista democrático, destas medidas. A crítica de Agamben ganha maior impacto se a inserirmos dentro de um quadro mais geral onde, de forma perigosamente corriqueira, os direitos democráticos são invariavelmente suspensos para enfrentar adversidades variadas. O neoliberalismo se utilizou amplamente desta lógica de “exceção” para aplicar suas reformas e ajustes econômicos que, em condições normais, jamais seriam aprovadas por contarem com ampla rejeição popular. Se em termos gerais, a preocupação frente ao fechamento democrático que o combate a pandemia gera é uma crítica justa e mesmo necessária, contudo, o filósofo italiano teria o alcance de sua reflexão interditada por ele ter partido de uma premissa fatalmente equivocada: a subestimação da letalidade do coronavírus. Ele entendia, baseado em um único parecer inicial do Conselho Nacional de Saúde da Itália, como uma doença de menor periculosidade, cujo alarmismo buscaria causar o pânico, para assim a utilizar como pretexto para, “esgotado o terrorismo como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia possa oferecer o pretexto ideal para ampliá-las além de todo limite”. Hoje, poucas semanas após este artigo, com a Itália já contabilizando milhares de óbitos, o julgamento de Agamben seguramente deve ser outro sobre os riscos deste vírus, mas, equívoco a parte, seu alerta principal permanece válido: de como há uma “crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo”.
Contudo, efetivamente estamos vivendo um momento “excepcional”, o que em boa medida confere uma legitimidade superior para que medidas “excepcionais” sejam adotadas, justificando a adoção de um Estado de exceção, de natureza variada, como forma de preservação da vida. O ponto central aqui é o desafio de assegurar não apenas a transitoriedade das medidas sanitárias restritivas, mas que em meio a esta “guerra médica”, o cuidado para preservar a democracia política seja assegurada. Alguns países efetivamente estão buscando trilhar este caminho desafiador. Os exemplos de líderes políticos como o presidente francês Emmanuel Macron, Pedro Sanchez na Espanha ou Angela Merkel na Alemanha, demonstram a possibilidade de buscar conciliar as urgências impostas pela pandemia com o zelo da preservação da democracia. Aliás, cabe destacar que em seu primeiro comunicado televisivo extraordinário em 14 anos, a chefe de governo alemã fez questão de reafirmar o compromisso com a preservação da democracia, afirmando que “nós somos uma democracia. Não vivemos pela força, mas por conhecimento compartilhado e participação. Esta é uma tarefa histórica e ela só pode ser realizada em conjunto”; para ela, este seria um momento historicamente singular, já que possivelmente “desde a Segunda Guerra Mundial, não houve para o nosso país um desafio que dependa tanto de nossa ação conjunta solidária”.
Numa pandemia viral, onde o distanciamento entre as pessoas e o isolamento se impõem como medida necessária, as relações sociais sofrem uma abrupta e disruptiva alteração em seu funcionamento. Contudo, o “fazer” da política não se interrompe, a governança dos corpos e das coisas deverá prosseguir em funcionamento. O desafio de manter os valores democráticos e suas instituições funcionando não se restringe apenas a uma questão dos meios para exercê-la – as ferramentas digitais contornariam muitas destas barreiras –, mas sim de seu conteúdo. Garantir, por exemplo, que esta excepcionalidade seja efetivamente utilizada para a promoção de instrumentos eficazes na preservação da vida, e não para salvaguardar os lucros e patrimônio de poucos. Entendendo, por exemplo, que é mais importante investir na saúde pública do que liberar créditos para bancos não falirem, como ocorreu na crise de 2008. Uma prioridade desta natureza só pode fazer-se valer havendo democracia, com a vontade política popular sendo soberana e respeitada. Israel, infelizmente, encontra-se na direção oposta. A emergência do Covid-19 foi o pretexto necessário para um golpe. Como denúncia o historiador israelense Yuval Noah Harari, “na Itália, Espanha e França, decretos de emergência são emitidos por um governo que o povo elegeu. Isso é legítimo. Em Israel, decretos de emergência são emitidos por alguém que não tem mandato do povo. Isto é uma ditadura”.
Nesta crise, gestou-se a primeira ditadura do coronavírus, onde a guerra médica insinua-se como um estágio tardio do controle político e social de toda uma população. Aparentemente, a julgar por suas primeiras ações, Netanyahu busca estabelecer uma ditadura duradoura, que consolide alguma forma de regime totalitário. Se este será um gesto pioneiro, abrindo terreno para outros aspirantes a ditadores aplicarem seus coronagolpes, ou, pelo contrário, fique restrito a um caso isolado e de curta duração, é um enigma ainda em aberto.
Por fim, a importância da defesa da democracia, nesta conjuntura, é tão ou mais estratégica que em contextos de “normalidade”. Já enfrentávamos um período onde o avanço de autoritarismos variados ocorreu em diferentes cantos do planeta, mas a crise surge colocando em suspenso diversas dinâmicas políticas e abrindo possibilidades variadas, como é próprio em momentos conjunturais de mudanças de paradigma. Nestes momentos, mudanças inesperadas passam a ser possíveis, podendo mesmo até ser o momento de algum reacender de esperanças transformadoras. A crise poderia permitir, por exemplo, que as noções de Comum e de Solidariedade se ressignifiquem ao ponto de suplantar a hegemonia discursiva da razão neoliberal.
Convém enfrentarmos essa crise pensando no “dia seguinte” a ela. Mas, acreditar que haverá uma volta à normalidade em algum momento após o “controle” do vírus, talvez seja uma visão um tanto idealista. A “revolução viral” tende a ter um alcance temporal amplo e indefinido. Slavoj Zizek expressou com precisão que “a vida, mesmo que, no fim, volte à normalidade, será normal de maneira diferente da que estávamos acostumados antes do surto”. Mas, em nosso horizonte, não estão colocadas apenas ameaças autoritárias; igualmente, a possibilidade histórica de abertura para uma transição pós-capitalista também se torna possível.
Nesta direção das potencialidades e desafios abertos na crise do coronavírus, recorreremos aqui mais uma vez ao filósofo esloveno, que nos traz uma sugestiva proposição. Comentando um discurso recente de Viktor Orbán – o ultraconservador primeiro-ministro da Hungria, que afirmou “Não existe liberal. Um liberal não é nada mais que um comunista diplomado” –, Zizek propõe desafiadoramente colocar sua frase em outros termos: “Mas e se no fundo o oposto for verdadeiro? Se chamarmos de ‘liberais’ aqueles que se importam com nossas liberdades, e ‘comunistas’ aqueles que estão cientes de que só podemos salvar essas liberdades com mudanças radicais visto que o capitalismo global se aproxima de uma crise, então devemos dizer que, hoje, aqueles que ainda se consideram comunistas são liberais diplomados – liberais que estudaram seriamente por que nossos valores liberais estão sob ameaça e tornaram-se conscientes de que apenas uma mudança radical pode salvá-los”. O desafio está lançado!
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Coronagolpe ou como a pandemia pode ser usada para criar ditaduras. Artigo de Erick Kayser - Instituto Humanitas Unisinos - IHU