25 Março 2020
"Pandemia coloca em xeque “austeridade” de Paulo Guedes: Estado pode emitir dinheiro para sanar o desemprego e as graves lacunas na Saúde pública. Em 2008, estratégia foi usada para salvar bancos. Agora, poderia evitar desastre social", escrevem Daniel Negreiros Conceição, macroeconomista e professor de Gestão Pública na UFRJ, Renata Lins, doutoranda do Instituto de Economia da UFRJ, Simone Deos, professora do Instituto de Economia da Unicamp, Kaio Pimentel, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, e Fabiano Dalto, professor da Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR, em artigo publicado por Outras Palavras, 23-03-2020.
De acordo com o famoso economista Paul Samuelson, numa ocasião em que John Maynard Keynes foi criticado por mudar de ideia, sua reposta foi a seguinte: “Quando muda a minha informação, eu mudo de ideia. E você, o que faz?”. A frase pode ser impactante, mas nenhuma resposta diferente dessa se poderia esperar de qualquer cientista honestamente comprometido em desvendar como funcionam processos do mundo real. Na ciência as hipóteses são provisórias, devendo ser descartadas sempre que se mostram logicamente insustentáveis e/ou empiricamente irrealistas. Assim, abandonar uma ideia quando essa é refutada por novos fatos não é uma virtude do cientista honesto, mas sua obrigação.
Para um economista como o ministro Paulo Guedes, que se formou em Chicago no período de auge da influência dos monetaristas, aceitar a necessidade de políticas keynesianas de expansão do gasto público, em meio à pandemia do coronavírus, deve ser bastante desconfortável. Mas diante dos fatos novos que se acumulam em curso acelerado, tornou-se impossível interpretar o colapso econômico como sendo fruto, apenas, de um choque de oferta. Se é certo que a cadeia de produção é brutalmente desestruturada pela incapacidade de que o trabalho seja normalmente realizado pelas pessoas em uma situação de pandemia – dado que não é possível, e nem desejável, a sua movimentação – esse efeito está sendo amplificado pela queda de demanda. Vejamos como isso se dá.
Quando ficamos em casa, reduzimos enormemente o nosso consumo – não saímos mais com a mesma frequência para comprar em lojas, não frequentamos mais bares e restaurantes, não viajamos mais de ônibus, táxi, metrô ou avião, não consumimos serviços turísticos etc. As empresas, muitas delas já abaladas pela desorganização dos elos da cadeia produtiva, sofrerão ainda mais com a redução de demanda. Se demitirem seus funcionários e colaboradores em função disso, o ciclo vai se autoalimentando, pois estes não poderão nem realizar os poucos gastos que vinham efetuando, o que vai afetar, num novo ciclo, mais famílias e empresas. Cria-se, então, uma “bola de neve contracionista”, onde cada empresa em dificuldades, que reduz os seus gastos, afetará as vendas de outras empresas e assim sucessivamente. Diante disso, a única alternativa é expandir enormemente o gasto líquido do governo brasileiro (i.e. aumentar o gasto, mesmo na ausência de incrementos na arrecadação de impostos), de modo a compensar a queda de demanda privada. Se isso não for feito, viveremos a mais devastadora depressão econômica da nossa história.
Será preciso ir muito além da antecipação de rendas de aposentados ou do oferecimento de crédito com custo mais baixo, como propôs inicialmente o governo brasileiro. Em ambos os casos o efeito imediato será brutalmente insuficiente. Em primeiro lugar, no caso das medidas voltadas para os aposentados, irá impedir seus gastos no futuro próximo, quando os aposentados deixarem de receber o benefício que lhes foi antecipado. No caso das famílias que tomarem crédito, terão que reduzir os gastos em bens e serviços para fazer pagamentos dos juros e amortizações de seus empréstimos. A redução de jornadas e salários, particularmente a de servidores que atuam na contenção da crise (serviços de saúde, de segurança e sanitários em geral) será nociva porque reduzirá os gastos dessas famílias.
O momento exige que o governo garanta renda a trabalhadores e empregadores, subsidiando folhas de pagamento no setor privado e transferindo renda diretamente a toda população – como se propôs a fazer o Reino Unido, onde o governo pagará até 2,5 mil libras a cada trabalhador inglês que tiver perdido seu salário durante o período de isolamento. O momento requer que sejam garantidos recursos financeiros e materiais para o pessoal na linha de frente de atendimento à população, para fazer testes em massa para o diagnóstico do coronavírus, para produzir materiais de proteção aos trabalhadores das atividades essenciais, para estabelecer grupos de pesquisa sobre o vírus, para a construção de hospitais para isolamento de doentes e tudo mais que infectologistas e sanitaristas considerarem fundamental para proteger a população. O governo federal deve, ainda, oferecer ajuda aos governos estaduais para que atuem no combate à pandemia. Como já se dissemos, vivemos uma situação de guerra e todos os esforços são necessários para vencer o inimigo. E de quanto deve ser essa ajuda? Qual o seu montante? O montante deve ser aquele que for requerido para atender a todas essas necessidades. Mas, se for assim, de onde virá todo esse dinheiro?
Recentemente, ouvimos do ministro Guedes a mais cristalina admissão de que não existe qualquer motivo, além das nossas regras fiscais autoimpostas e disfuncionais, para que o governo deixe de realizar o gasto líquido necessário para que o sistema de saúde enfrente a pandemia em curso e se evite a depressão econômica. O decreto de estado de calamidade pública criou a condição jurídica necessária para que o governo crie “o espaço fiscal” (dinheiro) necessário para lidar com a pandemia e com a crise econômica.
Assim, ao evidenciar que são as restrições legais determinadas por políticos, e não a falta de fontes de financiamento, que impedem o governo de gastar o suficiente para que a economia tenha seu desempenho ideal, a realidade se impôs às fantasias do ministro Guedes. Se é possível gastar mais agora para combater a depressão, certamente sempre foi possível gastar mais para combater o desemprego e para promover o desenvolvimento econômico e social do nosso país.
Mas, e a dívida pública? Ela não estava muito alta? Sua trajetória não era preocupante? A verdade é que a dívida do governo brasileiro, denominada em reais, não é, nem nunca foi, insustentável. O que havia, e continua havendo, são regras fiscais disfuncionais (meta de resultado primário pouco flexível, congelamento dos gastos primários reais e restrição sobre a suplementação de créditos ao governo central) e uma obsessão pouco saudável e pouco informada de governantes, economistas e comentaristas com o equilíbrio fiscal. É isso que impede que o Estado brasileiro gaste o necessário para que se ofereçam bens e serviços públicos de qualidade e em quantidade suficiente.
De fato, o atual conjunto de regras fiscais vigentes no Brasil tenta impor ao governo o comportamento de uma empresa ou família ameaçada de falência financeira. Ora, se é verdade que para famílias e empresas é prudente cortar gastos quando há mais dificuldades e incerteza, o mesmo não se coloca para o governo federal. Isso porque o funcionamento saudável de uma economia capitalista exige que os governos se comportem da maneira oposta à dos agentes privados, de forma a compensá-los.
Assim, a lição que precisamos aprender com a pandemia e a depressão econômica em curso é que nossas autoridades econômicas podem sempre emitir mais dinheiro para assegurar resultados econômicos e sociais desejáveis. Sempre que houver desemprego, a autoridade fiscal pode (e deve) gastar mais para sustentar a demanda agregada. As várias medidas para aumentar a liquidez dos bancos feitas quando da crise de 2008, bem como aquelas que estão sendo propostas agora, mostram que a autoridade monetária pode emitir mais dinheiro para estabilizar o sistema financeiro. Também sabemos que o Banco Central brasileiro pode decidir por qualquer taxa de juros, independentemente do déficit público ou do nível da dívida. Foi isso, a propósito, que acabamos de assistir: o Banco Central acabou de reduzir a taxa de juros de curto prazo, mesmo com o anúncio de elevação do endividamento público.
Quando entendemos que o gasto público é sempre operacionalizado pela emissão de moeda, torna-se óbvio que não existe limite financeiro para a sua capacidade de realizar pagamentos. Ao invés de se respeitar restrições artificiais, como limites arbitrários para a dívida pública ou metas rígidas de resultados fiscais, deve-se respeitar os únicos limites que de fato importam: os limites inflacionário (de capacidade) e externo da economia. Apenas quando atingidos esses limites, é que se deve atentar para o descontrole inflacionário. Nesse sentido, afirmar que é possível e necessário que um governo central gaste sem limites financeiros não é o mesmo que dizer que ele deva gastar irresponsavelmente, ou ilimitadamente.
A boa notícia para os que, mesmo com tudo que foi exposto acima, continuam preocupados com o aumento da dívida pública, é que pleno emprego e equilíbrio fiscal não são contraditórios entre si. O governo pode sempre utilizar o gasto público e as transferências de renda para realizar políticas distributivas e de emprego, e utilizar a tributação tanto para conter possíveis pressões de demanda como para alterar distribuição de renda, controlando o crescimento da dívida. É fundamental observar que o papel precípuo da tributação é a gestão do nível de demanda efetiva, não tendo nenhuma relação necessária com a questão do financiamento do gasto público.
Finalmente, os extraordinários eventos dos últimos dias escancaram a realidade acerca do funcionamento da economia para todos, inclusive para o ministro Paulo Guedes. Mas será que ele se renderá completamente aos fatos? Se tivermos ainda um pouco de sorte em meio a esse caos, nossos governantes agirão com um pouco de pragmatismo e o dinheiro necessário para que se enfrente a pandemia e a depressão virá de onde sempre veio: da emissão de moeda. Não é preciso, assim, que nos preocupemos em arrecadar mais impostos ou descobrir novas fontes de financiamento para os gastos do governo, que são urgentes. Assim como também não é necessário –pelo contrário, isso seria bastante perigoso no momento atual – vender reservas internacionais e, com isso, financiar investimentos do governo. Durante os próximos meses, é provável que a dívida do governo brasileiro aumente muito, pois será necessário compensar a contração da demanda privada. Mas a dívida não é um problema, apenas uma consequência controlável da ação governamental que pode salvar as nossas vidas e das gerações futuras.
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Os gastos públicos poderão nos salvar da crise? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU