09 Agosto 2024
“É claro que mais tarde o projeto foi totalmente pervertido. Basta dizer que, se a principal intenção dos projetos transformadores era melhorar as condições de vida da grande maioria da população e acabar com as desigualdades, esses propósitos foram abandonados pelas novas elites, reduzindo-os a uma luta do poder pelo poder, em benefício dos interesses materiais das minorias econômicas, dos governantes ou a eles associados. Estes fracassos explicam a dor da migração de milhões de venezuelanos, as dificuldades sociais vividas por amplos setores do país e o colapso da sua economia”. A reflexão é de Mónica Baltodano, cientista social e historiadora, comandante guerrilheira da Revolução Sandinista de 1979, em artigo publicado por Desinformémonos, 07-08-2024. A tradução é do Cepat.
Junto com milhões de militantes de esquerda no mundo, o projeto popular bolivariano, liderado por Hugo Chávez, encheu-nos de esperança. Chegou ao governo nas eleições de 1998, de forma limpa, e uma vez no poder teve a audácia de pressionar por uma Constituição muito avançada na qual se reivindicava a democracia política, econômica e social, e se estabeleciam amplos mecanismos para a participação dos cidadãos, entre eles os plebiscitos para a cassação de mandatos, aos quais se submeteu diversas vezes, resultando inquestionavelmente apoiado pelo voto popular. Chávez pode ser criticado pela tendência caudilhista e personalista da sua liderança e por outros erros na política econômica, mas nunca por ter roubado eleições para permanecer no poder.
Chávez fez parte da ascensão de forças progressistas que chegaram democraticamente ao poder, com uma proposta de transformações profundas numa América Latina cheia de cicatrizes e feridas que ainda estão sangrando, resultados de intervenções – abertas ou veladas– dos Estados Unidos e de ditaduras de direita e governos militares, que deixaram milhares de desaparecidos e assassinados. Era uma proposta para um continente que sofria de profundas desigualdades sociais, com maiorias empobrecidas pela corrupção e pela espoliação dos nossos recursos, e também de políticas neoliberais (privatizações, desregulamentação trabalhista, ditadura de mercado, abandono de políticas sociais), implantadas como receitas em todos os nossos países.
É claro que mais tarde o projeto foi totalmente pervertido. Basta dizer que, se a principal intenção dos projetos transformadores era melhorar as condições de vida da grande maioria da população e acabar com as desigualdades, esses propósitos foram abandonados pelas novas elites, reduzindo-os a uma luta do poder pelo poder, em benefício dos interesses materiais das minorias econômicas, dos governantes ou a eles associados. Estes fracassos explicam a dor da migração de milhões de venezuelanos, as dificuldades sociais vividas por amplos setores do país e o colapso da sua economia.
No final, a liderança daquela revolução anunciada tornou-se burocrática, autoritária e repressiva. Infelizmente, já havíamos sofrido esses vícios com as ditaduras de direita, mas também com projetos como o socialismo real (elevados exponencialmente no stalinismo) e os vivemos em nossa própria experiência na Nicarágua, com a transformação das aspirações da revolução sandinista à pura e simples ditadura de Ortega. Para nós, a Venezuela nada mais é do que o caso de outra revolução traída.
Até hoje, nós, nicaraguenses, continuamos sofrendo uma ditadura que, com discursos anti-imperialistas e socialistas, esmagou a democracia e a independência dos Poderes, perseguiu todas as opiniões dissidentes e estabeleceu um sistema totalitário, absolutista, sultânico e mafioso, que após assassinar e encarcerar, expulsou não apenas a oposição política, mas também líderes sociais, defensores dos direitos humanos, jornalistas independentes, religiosos, feministas, ex-líderes sandinistas, tirando de muitos a cidadania nicaraguense e mantendo uma política tão violenta e sistemática que atingiu o nível de crimes de lesa humanidade.
Por todas estas razões, a abertura das possibilidades de eleições livres na Venezuela e os seus resultados não nos podem ser indiferentes. Não vemos isso a partir da fria posição intelectual de alguns que talvez não tenham sofrido pessoalmente o sofrimento direto das ditaduras. Infelizmente, alguns de nós já lutamos contra duas ditaduras. Antes com armas nas mãos, vivendo desde a adolescência na clandestinidade, vendo as nossas irmãs vítimas de estupro nas prisões, e em ambas as ditaduras sofrendo com tantas pessoas massacradas, presas injustamente, banidas e perseguidas, sofrendo, sofrimento que sempre é mais duro para os mais vulneráveis: os pobres.
É verdade que, assim como no caso da Nicarágua, na Venezuela as alternativas opositoras de esquerda são impensáveis, porque os regimes de Ortega e Maduro exacerbam a perseguição contra aqueles que vêm das fileiras originárias da revolução e porque expõem a natureza reacionária destes governos. Mas nós, da esquerda, que vemos as famílias dilaceradas, o país comprometido, o Estado e as instituições destruídos e o terror instalado como modus vivendi diário, não temos dúvidas: o primeiro passo é acabar com a ditadura a qualquer preço.
A democracia é assim. Os países latino-americanos fizeram a transição de governos progressistas para regimes neoconservadores, como aconteceu no Brasil com Bolsonaro e na Argentina com Milei, mas enquanto as regras da democracia imperfeita forem minimamente respeitadas, o desafio é construir projetos alternativos a partir de baixo e submetê-los à decisão soberana dos povos. Mas numa ditadura, seja de esquerda ou de direita, esse direito é violado, sufocado e pervertido. E as eleições, roubadas.
Na Nicarágua, houve eleições presidenciais em novembro de 2021, mas antes delas Ortega prendeu todos os candidatos, jogou na ilegalidade todas as forças independentes e, com o controle absoluto de todos os Poderes do Estado, proclamou-se vencedor pelo terceiro mandato consecutivo. Nas recentes eleições na Venezuela, mesmo precedidas de todos os truques do poder e que tornaram estas eleições parcialmente justas, o povo soube expressar a sua vontade. Se Maduro perdeu é porque colheu a rejeição e o desencanto da maioria do povo. Nem Ortega nem Maduro são vítimas de planos imperialistas.
Não negamos que as potências imperiais trabalham todos os dias pelos seus interesses e que a direita mundial está satisfeita com a vitória de Edmundo [González Urrutia]. Mas isso faz parte da democracia. Perante a confirmação da vontade popular, é imoral continuar a responsabilizar os fatores externos pelos erros da própria conduta, recusando-se a reconhecer as verdadeiras causas destas derrotas. “Golpe de Estado, golpe de Estado!”, gritou também Ortega, para justificar o assassinato de mais de 350 nicaraguenses nos protestos de 2018, e esta crise repressiva já resulta em perto de um milhão de pessoas que foram forçadas ao exílio.
A mobilização cidadã e popular nunca pode ser golpe de Estado!
Só podemos juntar-nos ao clamor do povo venezuelano, que dentro e fora desse país exige respeito aos resultados das eleições de 28 de julho, verificando-os com clareza, como deveria ser, com a contagem uma a uma das atas. Também nos juntamos à exigência nacional e internacional de respeito pelos direitos humanos.
Que cesse a criminalização contra o direito à mobilização e ao protesto!
Que cessem as prisões e todas as medidas repressivas contra o povo que se mobilizou em defesa do voto popular!
Liberdade para todos os presos e busca de uma solução pacífica para o conflito!
Do exílio na Costa Rica, 7 de agosto de 2024.
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Venezuela, outra revolução traída. Artigo de Mónica Baltodano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU