27 Setembro 2023
“Não há pensamento, ideologia ou projeto que possa justificar o atropelo aos direitos humanos que, diga-se de passagem, são conquistas das lutas travadas pela humanidade”, escreve Mónica Baltodano, cientista social e historiadora, comandante guerrilheira da Revolução Sandinista de 1979.
“Por isso, não nos cansamos de reivindicar que organizações sociais, partidos, governos, parlamentares e personalidades do mundo, independentemente de seu pensamento e ideologia, devem repudiar a tirania e assumir ações orientadas a enfraquecer e erradicar a ditadura que oprime os nicaraguenses”, posiciona-se, em artigo publicado por Desinformémonos, 21-09-2023. A tradução é do Cepat.
Fui convidada para a celebração dos 50 anos do golpe de Estado no Chile e visitei importantes locais de Memória, como o Mausoléu a Salvador Allende, os murais com os nomes dos executados, Villa Grimaldi, centro de detenção, torturas e desaparecimentos, e ouvi das vozes dos sobreviventes os horrores dessa etapa da história daquela nação.
Este acontecimento trouxe à cena internacional a reflexão sobre a ruptura institucional contra um governo democraticamente eleito que buscava a possibilidade de construir uma sociedade diferente, a partir das instituições republicanas. O golpe perpetrado por Pinochet e sua cúpula militar, tramado a partir da Casa Branca e motivado por interesses estrangeiros, somado à recusa das elites locais em perder seus privilégios, suspendeu aquele projeto e instalou um regime que assassinou, torturou, desapareceu, suprimiu todas as garantias de uma sociedade livre e forçou milhares de pessoas ao exílio.
No século passado, as ditaduras militares na América Latina estiveram associadas às direitas, defensoras do status quo e reacionárias a qualquer tentativa de modificar as condições de dependência em relação aos Estados Unidos e a desigualdade e exclusão social brutais imperantes em nossas sociedades. Hoje, alguns regimes autodenominados de esquerda são as novas ditaduras do continente, mas ainda não existe consenso socialmente claro e compartilhado de que as ditaduras, independentemente de sua ideologia, são prejudiciais às sociedades. Diante destes fatos históricos, devemos assumir o compromisso de que nunca mais haja ditaduras.
Importantes processos reformistas impulsionados pela via democrática foram interrompidos com golpes de Estado, alguns perpetrados diretamente pela Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana. Isso ficou claro na Guatemala, em 1954, quando, além do mais, as ditaduras de Batista, em Cuba, de Somoza García, na Nicarágua, com a conivência do Exército de Honduras, entraram em conluio para depor o governo legitimamente eleito de Jacobo Árbenz [1].
Este fato estimulou a via armada revolucionária e o seu triunfo em Cuba (1959) e multiplicou as guerrilhas em várias partes do continente. Então, a utopia de um mundo diferente estava associada a construir o socialismo, sinônimo de sociedade igualitária. Durante muito tempo, pensamos que tal utopia estava encarnada nas sociedades comunistas lideradas pela União Soviética, até que despertamos para o conhecimento da ineficiência de uma economia burocratizada e do terror que Josef Stalin aplicou contra o povo e tudo o que divergisse de seu poder onímodo em nome do socialismo.
A chegada do presidente Salvador Allende ao governo do Chile, em 1970, animou as esperanças de que fosse possível avançar para esta sociedade ideal pela via pacífica, mas a interrupção brutal do processo, em 1973, voltou a colocar em primeiro plano a inevitabilidade da luta armada. Os confrontos entre guerrilhas e exércitos, mais o terror estatal, deixaram milhares de vítimas na América Central. Na Guatemala, estima-se um número de 250.000 mortos e 50.000 desaparecidos; em El Salvador, 75.000 mortos e 15.000 desaparecidos; na Nicarágua, 50.000 mortos e milhares de desaparecimentos nunca investigados.
A revolução popular sandinista de 1979 foi a última revolução armada no continente. A decisão de Ronald Reagan de aniquilá-la terminou em guerra fratricida com milhares de vítimas a mais, mas os Acordos de Paz na Nicarágua favoreceram a transição pacífica na Guatemala e em El Salvador, nos anos 1990.
Três décadas depois, a América Central volta a sofrer regimes autoritários. Na Nicarágua, a inclinação autoritária atinge níveis sultânicos e fascistas. Pela retórica usada pelo tirano, é classificado como ditadura de esquerda, mas os interesses que o sustentam são os do poder pelo poder, o enriquecimento, a corrupção, o gozo de privilégios sem que, em parte alguma, apareça uma reforma que possa ser classificada como progressista, muito menos socialista.
Para se sustentar no poder, o ortegamurillato, como bem classificou Onofre Guevara, não poupa nenhuma medida repressiva: execuções extrajudiciais no campo [2], assassinatos em comunidades indígenas, manifestantes feridos e mortos a tiros, opositores queimados vivos, incluindo crianças, como aconteceu no bairro Carlos Marx contra a família Velázquez Pavón [3]; centenas de encarcerados ilegalmente e torturados. Além disso, crimes perpetrados pelo Exército, a Polícia e paramilitares organizados e armados pelo ditador.
Da mesma forma, submeteu a população a mais de cinco anos de repressão contínua e anulou todos os direitos constitucionais dos nicaraguenses, medidas que corroeram a sua própria base social. Agora, só 13% da população se identifica com a FSLN como o grupo político de sua simpatia e a avaliação dos cidadãos à dupla ditatorial é claramente negativa.
Diante deste nível de deterioração, Ortega e Murillo decidiram se manter a fogo e sangue, impedindo qualquer forma de democracia. De fato, a farsa eleitoral de 2021 foi de tal dimensão que a continuidade de ambos no governo só pode ser compreendida pelo uso da força contra direitos e instituições e constitui praticamente um golpe de Estado. Daniel Ortega é de facto um sangrento golpista deste século.
Este monstro bicéfalo tiraniza o povo da Nicarágua com o férreo controle dos poderes Eleitoral, Judiciário e Legislativo e de 100% das prefeituras. Já eliminou a autonomia universitária, ilegalizou e confiscou 3.400 organizações civis, entre elas, 27 universidades, incluindo a Universidade Centro-Americana (UCA), da Companhia de Jesus. Além disso, desnacionalizou e confiscou os bens de 317 nicaraguenses e exilou muitos mais, impedindo-os de retornar ao seu país.
Sua meta é nenhum opositor ativo no país. Hoje, mantém 89 nicaraguenses na prisão, entre eles, 16 mulheres, um bispo e 6 padres. A estes é preciso acrescentar mais de 80 cidadãos capturados durante alguns dias e depois obrigados a se apresentar diariamente em quartéis policiais. Existem milhares de presos no país por retenção de seus passaportes ou por medo de sair e perderem a permissão para voltar.
É claro, neste panorama não existem sindicatos e nem organizações sociais independentes, pois só há permissão para aquelas que funcionam como aparelhos de controle dos setores sociais.
Com a repressão, o ortegamurillato mantém um modelo econômico capitalista, com grandes reservas no Banco Central, evidentes vantagens para o investimento estrangeiro direto e abertura total às transnacionais para a exploração mineira, florestal e pesqueira. Isto explica sua descrição como bem-sucedido pelo FMI e que suas relações comerciais com os Estados Unidos, a Europa e o Canadá não tenham sofrido sobressaltos.
A existência desta ditadura em um país que havia abalado Somoza via armas torna pertinente a reflexão sobre as experiências de outros povos, como Chile e Uruguai, classificados como democracias plenas, após sofrerem ditaduras cruéis e repressivas que forçaram milhares de seus cidadãos ao exílio.
Daí a importância do Compromisso de Santiago, assumido por ex-presidentes do Chile e outras figuras do continente, de cuidar e defender a democracia e o Estado de Direito como princípios civilizatórios frente às ameaças autoritárias, de intolerância e menosprezo pela opinião do outro. Também a ênfase colocada na defesa e promoção dos direitos humanos, acima das ideologias. Não há pensamento, ideologia ou projeto que possa justificar o atropelo aos direitos humanos que, diga-se de passagem, são conquistas das lutas travadas pela humanidade.
Por isso, não nos cansamos de reivindicar que organizações sociais, partidos, governos, parlamentares e personalidades do mundo, independentemente de seu pensamento e ideologia, devem repudiar a tirania e assumir ações orientadas a enfraquecer e erradicar a ditadura que oprime os nicaraguenses.
[1] Disponível aqui.
[2] Disponível em aqui e aqui.
[3] Disponível aqui.
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Golpes de Estado e ditaduras. Artigo de Mónica Baltodano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU