29 Mai 2024
"Em qualquer discussão que envolva nós e os outros, cada um olha prioritariamente para sua própria casa, para as consequências do que está em discussão: para as consequências que nos afetam. Mas é importante também olhar para a casa dos outros, para entender o que está acontecendo lá e quais são as consequências para os próprios outros", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 26-05-2024.
Por isso, hoje, me parece importante concentrar-me em um aspecto muito específico: o que se escreve na mídia árabe e islâmica – pelo menos aquelas a que tenho acesso – sobre a solicitação de mandado de prisão apresentada pelo Tribunal Internacional de Justiça de Haia para o líder político do Hamas, Ismail Hanyeh.
Como é sabido, entre os organizadores do pogrom de 7 de outubro, também está o seu nome, para o qual foi solicitado o mandado de prisão: trata-se do líder político do movimento islâmico Hamas. Não é um fato irrelevante para o mundo árabe-islâmico.
Além das óbvias palavras de autodefesa, não me pareceu, porém, que alguma grande publicação árabe tenha se manifestado a seu favor. No entanto, Hamas é uma ramificação da Irmandade Muçulmana, cuja voz sempre chegou à mídia da casa árabe.
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Não encontrei nenhum nome influente que esteja rasgando as vestes por Hanyeh. Devo dizer que também não encontrei aplausos à solicitação apresentada pelo Tribunal. Enquanto a viagem de Hanyeh a Teerã para os funerais do presidente / passou como uma simples notícia de crônica. Mas Hanyeh não é um Chefe de Estado ou de governo. Portanto, a meu ver, essa viagem nos mostra que o ato de acusação não envolve apenas o Hamas, mas todo o chamado Frente da resistência: portanto, uma ideologia em sua integralidade.
Embora os movimentos que fazem parte dessa frente juntamente com o Hamas – começando pelo Hezbollah – tenham sempre negado participação na concepção do pogrom de 7 de outubro, todos sempre manifestaram proximidade, solidariedade, às vezes elogios, ao Hamas e seu tipo de luta.
Entende-se que o que está sendo denunciado é a ideologia fundada pelo teocrata Sayyid Qutb – executado por Nasser – e depois transformada em prática de luta e governo por Khomeini. Essa é a reflexão que, a meu ver, é necessária hoje. E que tento explicar resumidamente.
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O chamado frente da resistência é constituído por milícias khomeinistas, por regimes aliados que, após circunstâncias variadas, alcançaram uma aliança com o Hamas (que não era e não é khomeinista). Essa frente instrumentaliza diversas indignações populares. A aliança com o Hamas é utilizada na chave da solidariedade difundida para com os palestinos; portanto, para transformar a questão nacional em uma questão islâmica, de rejeição radical de Israel como tal; em nome de um tipo de islamismo que rejeita qualquer partilha de um espaço amplo que considera seu.
Assim, a questão palestina – que pertence, por exemplo, também aos palestinos cristãos – torna-se uma questão de apropriação religiosa de um espaço que se pretende exclusivamente islâmico, governado religiosamente. Esse é exatamente o projeto khomeinista, sua heresia teocrática. A questão palestina para os khomeinistas não deve ser abordada e resolvida com um compromisso, não! Ela legitima, aos seus olhos, a transformação do terrorismo em resistência, resistência islâmica.
Foi Khomeini, para dar o exemplo mais banal mas crucial, quem introduziu no pensamento islâmico a figura do “kamikaze”, transformando-o em mártir, embora o islamismo condene o suicídio. Com Khomeini, os atentadores suicidas tornaram-se heróis e “santos”, projetando o pensamento islâmico em uma aventura contra o mundo, de natureza apocalíptica.
O expansionismo khomeinista no mundo árabe levou seus aliados – e depois seus inimigos – a crimes contra a humanidade: de todos os líderes khomeinistas e seus aliados, começando pelo libanês Nasrallah, pelo menos por sua participação ativa no genocídio sírio, até o aiatolá Khamenei, mandante – recentemente – da repressão sangrenta do protesto civil “mulher, vida, liberdade”; dos laicos antiocidentais seus amigos, como o laico Assad, ou os distantes generais laicos argelinos, sempre ideologicamente próximos ao regime sírio e que participaram do massacre em seu país; até os aliados do Hamas, como já foi dito.
Seus inimigos árabes decididos a parar o expansionismo dos khomeinistas usaram os mesmos métodos, pelo menos na guerra iemenita, onde houve inegavelmente uma fase genocida: isso dizem muitos especialistas desse conflito protagonizado por sauditas e emiratis.
O entrelaçamento de causas e efeitos de tudo isso é bastante complexo, falar disso não pode ignorar o nacionalismo étnico turco, desde os tempos do genocídio armênio. Mas paro por aqui.
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No campo árabe, omitir esses discursos não ajuda a alcançar a consciência do fracasso das ideologias e mantém na sombra o novo pensamento, o da não-violência ativa: isso poderia encontrar plena cidadania se um discurso verdadeiramente transparente fosse legitimado.
Não se pode, no entanto, negar que na península arábica há muito tempo se observam novidades institucionais importantes, sinais, por si só, de um novo começo: um novo começo árabe islâmico. As muitas iniciativas institucionais para o diálogo inter-religioso nos Países do Golfo são uma prova complexa mas concreta disso.
Mas esse novo começo não pode correr o risco de ser apenas uma remodelação, em busca de compatibilidade com o resto do mundo. A compatibilidade é relevante, provavelmente decisiva, mas não pode alcançar seus objetivos se a mudança do discurso religioso não for acompanhada também por uma refundação de toda a cultura política árabe.
Naturalmente, não existem atalhos na história. Acho que o mundo árabe deve proceder com todo o esforço necessário, sem ilusões. Minha convicção é que – culturalmente falando – o mundo árabe deve partir da constatação do fracasso de todas as ideologias que cultivou, dos vários pan-islamismos e pan-arabismos que produziram o que os árabes de todo o Levante têm hoje diante de si: ruínas.
A imprensa árabe pode ajudar a focar tudo isso, seguindo diferentes perspectivas, mas para favorecer um processo que faça emergir a sociedade civil como protagonista indispensável do novo começo. Esse é o caminho para sair do que o grande intelectual árabe, Samir Kassir, assassinado em Beirute provavelmente pelo frente da resistência, chamou de "a infelicidade árabe".
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Diário de guerra (55). A frente da resistência. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU