14 Mai 2024
"A justiça é, de fato, invocada com base em ideias opostas de justiça. Portanto o risco – evidente – é cair em extremismos opostos. Isso é o que acontece. Cada um vê a sua própria verdade, nunca conciliada com a verdade do outro", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 07-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um documento pela paz assinado em Trieste pelas principais associações e movimentos católicos, explicitamente vinculado à edição anual da Settima Sociale que acontecerá em julho, impressionou-me particularmente, porque fala de paz sem falar de justiça, ou seja, as palavras geralmente associadas: todos dizem que querem, de fato, a paz justa.
No documento, dirigido a governantes e candidatos, a paz é definida como o “empenho prioritário” de quem quer governar a Europa depois das próximas eleições europeias: uma paz fundada “na dignidade infinita e inalienável dos povos”. Depois de um momento inicial de perplexidade – ou talvez de surpresa – disse para mim mesmo: finalmente! A palavra justiça é de fato substituída pela “dignidade infinita e inalienável dos povos”. Muda alguma coisa? Sim, na minha opinião: da ideia de um absoluto se passa à do processo, mas com uma bússola precisa.
Olhando para as guerras que atualmente mais nos angustiam – na Ucrânia e no Oriente Médio – podemos ver as diferenças. O que é justo na Ucrânia? Poderíamos dizer: repelir a ofensiva russa, ou, segundo Moscou, vencer a guerra que proclama como “santa” contra o perverso e satânico Ocidente. Só isso?
Se tudo fosse só isso, eu teria minha resposta clara. Mas leio – e quase todo mundo já sabe – que houve um momento em que se pensou que fosse justo rejeitar um acordo de paz que teria adiado por quinze anos a solução da questão da Crimeia, reconhecendo ampla autonomia ao Donbass no Estado ucraniano, com a retirada dos exércitos russos. Enquanto agora justo é somente procurar o escalpo do inimigo. Quase uma questão pessoal.
E na Terra Santa, o que é justo? A justiça ainda não é a solução dos dois estados? Eu conto com isso. Mas é legítima a sensação que dessa justa solução se fale nos salões, enquanto os fatos negam a dignidade infinita e inalienável de um ou de outro povo.
A justiça é, de fato, invocada com base em ideias opostas de justiça. Portanto o risco – evidente – é cair em extremismos opostos. Isso é o que acontece. Cada um vê a sua própria verdade, nunca conciliada com a verdade do outro.
Gosto da inovadora expressão - "a dignidade infinita e inalienável dos povos" - por um motivo elementar: os guardiões da justiça absoluta são, justamente, os absolutistas; o absolutismo desumaniza os outros e, portanto, também a si mesmo.
Volto, então, como em muitas páginas deste diário, ao exemplo dos refugiados palestinos, que estão espalhados pelo mundo árabe desde 1948. Uma chaga terrível. Abraçando a ideia absoluta de justiça e preservando o “direito dos palestinos ao retorno”, se quis que permanecessem refugiados, isto é, na espera permanente de um retorno. Entretanto, sem cidadania, eles não podem fazer outra coisa senão viver nos campos de refugiados, vivendo de biscates, no máximo trabalhos sazonais, muitas vezes ilegais. Mudar de posição? Não! – argumentou-se – porque significa ceder à injustiça.
Era necessária uma alternativa. Alguns membros da OLP a viram: nos tempos da negociação da paz, propuseram que o "direito ao retorno" fosse para o Estado da Palestina, quando nascesse: não numa Palestina que não existia mais, visto que, em boa parte dela, se admitia o direito de existir do novo Estado de Israel. Isso teria permitido aos palestinos regressar a uma Palestina reconhecida, talvez com compensações econômicas pelo que tinham perdido, ou seja, de naturalizar-se ali onde já estavam, mas com legislações mais humanas, de integração. Sabemos o resultado: o não prevaleceu, em nome da justiça.
Quero dizer que a paz comporta sempre a perda de pelo menos uma parte da justiça: foi verdade para os palestinos e também foi verdade para os israelenses, que teriam de renunciar a muitos assentamentos coloniais, reconhecendo que aquelas terras pertenciam a outros.
Deixar apodrecer os problemas sem nunca chegar a um compromisso, portanto, é justo? Para mim não. Mas não porque penso, como niilista, que a coisa justa não existe, mas porque toda ideia absoluta apenas reforça as visões extremas, como aquelas que hoje causam o que vemos.
Agora: o que será dos refugiados que há décadas vivem em Gaza e que estão agora refugiados na parte mais ao sul de Gaza - Rafah - de onde lhe é pedido, mais uma vez, para retornar às cidades de lona de Khan Younis, das quais foram obrigados a fugir poucos meses atrás?
No momento em que escrevo, todas as fontes afirmam que a operação militar em Rafah está prestes a começar. Mas, dizem: limitada a uma parte. A população não seria empurrada para a fronteira egípcia. E o tempo dos Pacificadores se esgota.
Dada a ausência da Europa, é preciso contar com os EUA cansados e vacilantes, como o seu Presidente? Biden, de fato, vendo-o caminhar, vacila, como o seu país: primeiro antissaudita, agora pró-saudita, primeiro esquecido dos palestinos, agora consciente do seu problema. EUA que não satisfazem ninguém. Mas dado que, em campo, jogam principalmente os absolutos, talvez este seja, agora, o seu lado melhor. Porque parece querer escapar das visões extremas.
A moderação pode, enfim, resultar em força, que não deveria se calar nessa grave situação do ataque, a golpes de arma de fogo, contra a aldeia palestina de al Mughayyr pelos colonos israelenses. A força da moderação – que não é intriga – é um pouco aquilo que me agrada no documento das associações católicas: evitar os extremismos ideológicos, absolutos, reconhecer os direitos dos povos, tomar o partido da negociação; a única maneira de alcançar uma paz que não pode ser alcançada a golpes de caneta, mas iniciando processos.
Também uma crítica ao documento lançado em Trieste? Esta: não vejo mencionada a palavra “desenvolvimento”, que Paulo VI definia como sinônimo de paz. O desenvolvimento é um processo, síncrono com a paz dos povos, aquela que se constrói lentamente, progressivamente, ao longo do tempo, com a força da moderação.
Nunca acreditei que ser pela paz significasse ser um pacifista barato: há também o dever de não aceitar agressões ou violências, sem, no entanto, agir no mesmo estilo do agressor. Estamos aqui perto daquela “não-violência ativa” a que Francisco se referiu, sem poder elaborá-la, na pressão dessas guerras terríveis. Mas é isso que é necessário.
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Diário de guerra (51). Processos de paz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU