30 Julho 2024
"Até mesmo os estadunidenses no Vietnã, outro capítulo da história contemporânea a ser deglutido, todas as noites para o noticiário nacional preparavam os números dos vietcongues eliminados. Garantiam ao presidente que, de acordo com as estatísticas, não havia mais vietcongues: nós praticamente vencemos... eram números fantasmas. É suficiente para o Hamas manter um miliciano vivo, ou que Sinwar não seja capturado. E toda proclamação de vitória israelense é desmentida", escreve Domenico Quirico, jornalista italiano, em artigo publicado por La Stampa, 29-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vale a pena, enquanto o vórtice do Oriente Médio, que é carne e sangue, se enreda ainda mais e se está a um passo do novo front de guerra libanesa, lembrar o impetuoso e inconstante Suleiman da "Jerusalém" de Tasso. Às vezes, ele fica paralisado pela visão íntima da tragédia em que está enredado, mas mesmo assim é incapaz de ceder às sugestões da razão. Quando, do alto da torre de Davi, ele vê o início do desastre do exército reunido, em Gaza! pelo rei do Egito, como que por radioscopia, vislumbra uma ideia abstrata por cima da luta: "a amarga tragédia do estado humano".
No entanto, apesar dessa lucidez e presciência, ele se lança na luta porque sua obra "é mais de furor do que de esperança".
Podemos colocar esse verso como um invertido exórdio da condição atual de Netanyahu e Israel? Nos nove meses da guerra de Gaza, que tem permanentes aspectos de extermínio, há alguns pontos firmes. Israel perdeu a guerra com o Hamas porque, após o massacre de 7 de outubro, colocou-se sozinho na condição de não poder inverter aquela sangrenta e contundente demonstração de vulnerabilidade. Em qualquer guerra, antes mesmo das táticas e dos meios com os quais se pretende combater, o que é decisivo é a definição do ponto em que a vitória será proclamada, em que será honroso parar. É onde Netanyahu errou, também porque sua biografia política não lhe dava escolha: ele anunciou e prometeu que teria obtido a reconstrução da intangibilidade, que teria costurado a som de golpes de canhão uma dissuasão absoluta (que, aliás, há muito era mais mito do que realidade). Ele precisava não da derrota parcial do Hamas, talvez realizável, mas da aniquilação física e aritmética total dos jihadistas palestinos. Um resultado conceitual e praticamente impossível quando se trata de guerrilheiros misturados a uma população de dois milhões de civis. Para admitir tudo isso, era necessário um personagem de bem outra estatura do que o primeiro-ministro israelense, da infinita peripécia histórica, um líder que tivesse aprendido a retórica nua dos profetas.
Para apagar o 7 de outubro, a humilhação de terem sido pegos de surpresa, as imagens dos milicianos correndo e matando dentro de Israel, os reféns levados brutalizados e humilhados (o antigo reaparecimento do judeu como dócil animal de abate cuja negação é a razão de Israel), foi lançada não uma ofensiva de hábil contraguerrilha, mas uma guerra bíblica, ou seja, absoluta, sem limites e extirpadora. Em Gaza, foi reproposta a fúria implacável das guerras de Josué, uma guerra de deus com a prática do anátema, o massacre de todos os inimigos antes de dispensar as tropas com o grito "para as tuas tendas, Israel!". Há nove meses, o Tzahal, frustrado, cada vez mais impotente, apesar das toneladas de bombas que aram areia, barracos e homens, solta comunicados aumentando as adições de milicianos neutralizados, de chefes e subchefes eliminados, de "esconderijos" carbonizados. Mas não consegue chegar a um ponto final. Está sempre um palmo mais adiante. Até mesmo os estadunidenses no Vietnã, outro capítulo da história contemporânea a ser deglutido, todas as noites para o noticiário nacional preparavam os números dos vietcongues eliminados. Garantiam ao presidente que, de acordo com as estatísticas, não havia mais vietcongues: nós praticamente vencemos... eram números fantasmas. É suficiente para o Hamas manter um miliciano vivo, ou que Sinwar não seja capturado. E toda proclamação de vitória israelense é desmentida.
Uma consequência ainda mais negativa e talvez irreparável: a forma como a represália foi conduzida tornou insignificantes e secundários todos os motivos de discórdia sobre o Estado judeu, a possibilidade de convivência com os palestinos condensados na fórmula hipócrita "dois povos, dois Estados". O Hamas impôs uma solução total com o massacre. Há apenas um argumento verdadeiro ao qual sempre se retorna, o das origens: o Estado de Israel nasceu por erro, sua própria existência é uma iniquidade e um abuso que só pode ser corrigido com seu retorno à inexistência. O que quer que Israel tenha feito ou venha a fazer, será injusto por natureza, marcado por um pecado original e indelével, definido com sumária teologia, colonialismo e imperialismo. Um juízo não baseado na política, mas em um fato que aconteceu, irrevogável, portanto, como o passado. Daí a certeza escatológica e política de que os palestinos e o mundo árabe o eliminarão como expulsaram os cruzados da história do Oriente Próximo. Agora, um segundo possível abismo está se delineando para Netanyahu: esconder uma derrota procurando um outro inimigo para derrotar, o rival do front norte, o exército-partido libanês Hezbollah: milhares de combatentes bem estruturados e fortemente armados, 150.000 foguetes capazes de desgastar pelo número o sistema de defesa israelense e atingir as grandes cidades. O pilar do projeto iraniano do "anel de fogo" em torno do Estado judeu. Há meses, à medida que a areia de Gaza enterrava as certezas de uma vitória rápida, atacar o norte, acertar as contas até mesmo com os fiéis soldados dos aiatolás, tornou-se mais do que uma tentação, a aposta que pode virar a maré, apenas uma questão de tempo. Também por razões internas que talvez pesem mais do que os protestos dos parentes dos reféns.
Aqui há sessenta mil cidadãos israelenses que foram retirados em outubro, por precaução, de cidades e vilarejos sob o fogo do Hezbollah. Eles são a quinta coluna dos guerrilheiros xiitas. O exército e o governo tinham prometido que voltariam para casa em poucos dias. Casas e fazendas são destruídas e a raiva por terem sido esquecidos transborda. Assim como os civis de Gaza, alvos indefesos dos roucos tiros dos canhões, não são eles que fazem a grande História, mas a História, infelizmente, também é feita com eles.
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Assim o furor cego destrói a esperança. Artigo de Domenico Quirico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU