18 Julho 2024
"Embora se defenda [no Instrumentum Laboris] a transparência na tomada de decisões e se note que 'a autoridade não consiste na imposição de uma vontade arbitrária, mas antes numa força ordenadora da busca comum', os bispos continuarão a ter a última palavra", escreve o jornalista e pesquisador em comunicação argentino Washington Uranga, em artigo publicado por Página|12, 18-07-2024.
Antecipando a segunda sessão do Sínodo sobre a Sinolidade convocada pelo Papa Francisco, que se realizará entre 2 e 27 de outubro em Roma, no dia 9 de julho o Vaticano anunciou o Instrumentum laboris (IL, documento de trabalho de aproximadamente 30 páginas) que reúne propostas de todos os continentes e sugere uma série de mudanças nos processos decisórios da instituição católica. A “sinodalidade”, entendida em grande parte como “participação”, tem sido uma das bandeiras do pontificado de Jorge Bergoglio, crítico severo do “clericalismo” e um firme defensor da contribuição dos leigos e, em particular, das mulheres na estrutura eclesiástica.
Grande parte dos analistas da instituição eclesiástica estima que a iniciativa de Bergoglio sobre o assunto não visa apenas uma maior e mais diversificada participação e redução do clericalismo na Igreja, mas também garantir que a influência dos leigos possa continuar nas reformas promovidas por Francisco assim que um eventual sucessor tomar o lugar do papa argentino. O Cardeal Mario Grech, secretário geral do Sínodo, admitiu isso em parte ao apresentar a IL. Disse que o documento “é também uma oportunidade para todo o Povo de Deus continuar o caminho iniciado e uma oportunidade para envolver aqueles que não estiveram envolvidos até agora”.
Mas tal como alguns consideram que o que foi feito, e especialmente o atual Sínodo (cuja primeira sessão se realizou em outubro passado) é um grande passo para a renovação eclesiástica, há quem acredite que se trata de uma proposta contrária à própria essência da Igreja e outros que entendem que “o clericalismo permanece intacto”.
Num fato duramente criticado pelos conservadores, o Papa apoiou a plena participação, com voz e voto, de leigos, homens e mulheres, na sessão sinodal de outubro passado. Perante isto, no ano anterior um grupo de cardeais, além de questionar algumas questões particulares, criticou a decisão de Francisco relativamente à participação de leigos que, consideraram, tiraram a primazia dos bispos. Entre os que se opuseram estavam o alemão Walter Brandmueller, o americano Raymond Burke e o guineense Robert Sarah, todos com importantes cargos anteriores no Vaticano.
Um dos opositores mais ferozes à proposta sinodal, mas também a Francisco, foi o cardeal-arcebispo italiano D. Carlo Maria Viganò, que se rebelou diretamente contra a autoridade do Papa. Como consequência, a Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo cardeal argentino Víctor Manuel Fernández, realizou um processo penal canônico que culminou em 4 de julho com a excomunhão (expulsão da Igreja) do arcebispo por considerá-lo culpado de cisma.
Agora, na apresentação da IL, o Cardeal Grech sustentou que “não é um documento da Santa Sé, mas de toda a Igreja” porque “não é um documento escrito numa secretária”. Em consonância com a intenção de Francisco, o bispo afirmou que “é um documento do qual todos são coautores, cada um pelo papel que é chamado a desempenhar na Igreja, na docilidade ao Espírito”.
E anunciou que quem olhar o texto não encontrará nele “uma sistematização teórica da sinodalidade, mas sim o fruto de uma experiência de Igreja, de um caminho em que todos aprendemos mais, caminhando juntos e questionando o sentido desta experiência”. Desta forma, Grech referia-se à metodologia de consulta utilizada na convocatória que permitiu recolher opiniões dos diferentes níveis do catolicismo em todos os países e continentes do mundo. A intenção, continuou o cardeal, é “que não falte a voz de ninguém”.
A novidade da primeira etapa do Sínodo foi a experiência das assembleias, tanto diocesanas e nacionais como continentais, que reuniram as Igrejas locais da mesma área geográfica, convidando-as a participar, a ouvir-se e a discernir juntas os principais desafios colocados ao catolicismo em cada contexto particular.
Uma das questões centrais abordadas pela IL tem a ver com a tomada de decisões na Igreja Católica. O que se pretende não é “democratizar” a instituição e longe de revogar a estrutura hierárquica e piramidal, a proposta é incentivar a participação dos fiéis nas decisões a todos os níveis. Ao criticar a cultura “machista”, promove-se “uma participação mais ampla das mulheres no processo de discernimento eclesiástico” e o seu acesso a “cargos de responsabilidade” nas dioceses e nos centros de formação, entre outros espaços.
Advertindo que a participação prevista não deve limitar-se ao âmbito da liturgia, o texto sugere que os leigos podem pregar a Palavra de Deus mas, ao mesmo tempo, participar ativamente na “ação pastoral” através de outra distribuição de tarefas entre sacerdotes e leigos.
Contudo, a porta não fica aberta para o sacerdócio feminino. E, embora se defenda a “transparência” na tomada de decisões e se note que “a autoridade não consiste na imposição de uma vontade arbitrária, mas antes numa força ordenadora da busca comum”, os bispos continuarão a ter a última palavra, também precedida de consultas e pesquisas.
Outro ponto crítico diz respeito às questões econômicas porque “a falta de transparência e responsabilização alimenta o clericalismo” baseado na “suposição implícita de que os ministros ordenados não são responsáveis perante ninguém pelo exercício da autoridade que lhes é conferida”.
Há também vozes dissonantes de uma posição progressista. O teólogo espanhol José Arregi publicou no dia 12 de julho no portal espanhol Religión Digital uma análise do LI na qual afirma que “a Igreja institucional continuará a repetir velhos moldes vazios, formas e palavras sem alma nem vida”, e critica que “nem mesmo se sugere a abolição do atual modelo clerical, piramidal, autoritário e patriarcal da instituição eclesial.
Neste mesmo sentido, o teólogo denuncia que “é a hierarquia que escolhe a hierarquia e se considera escolhida por Deus”, sendo que “não há melhor reflexo ou pior efeito do clericalismo sacralizado e imóvel do que o lugar e o papel que as mulheres são reconhecidas na Igreja”.
Arregi parte do pressuposto de que a condição indispensável da reforma da Igreja é “a supressão do obstáculo estrutural decisivo: o modelo clerical hierárquico”. E destaca que “a IL que acaba de ser publicada reafirma o meu ceticismo: o clericalismo permanece intacto e fechado, e condena o Sínodo a um beco sem saída”.