08 Fevereiro 2012
Nós já sabíamos que o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò (foto), nomeado pelo Papa Bento XVI em outubro como seu novo núncio (ou embaixador) para os Estados Unidos, causou sérios problemas em seu breve mas tumultuoso mandato como autoridade número 2 do governo da Cidade do Vaticano de 2009 a 2011. O que não sabíamos até agora, no entanto, é a forma muito vigorosa como Viganò fez campanha para ser autorizado a terminar a limpeza financeira por ele começada. Pelo que se vê, o novo homem do papa em Washington é uma espécie de dedo-duro.
A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 27-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Viganò, 71 anos, que tem graduações em direito civil e canônico, é um veterano diplomata do Vaticano que assumiu o que equivale à posição de chefe de equipe da cidade-Estado do Vaticano em julho de 2009. Ele rapidamente ganhou uma reputação como um agressivo reformador financeiro, tendo alegadamente transformado um déficit de 10,5 milhões de dólares em um superávit de 44 milhões de dólares em apenas um ano, insistindo sobre procedimentos de contabilidade centralizados e rigorosa prestação de contas para o excesso de custos.
Nenhuma boa ação, é claro, fica impune sempre. Assim, foi natural que os esforços de Viganò produziram uma reação feroz entre alguns administradores de nível médio nos diversos feudos vaticanos. Eles estavam muito acostumados a prestar contas apenas a Deus e ao papa – e, em ambos os casos, essa prestação de contas era bastante nominal.
O envio de Viganò para os EUA foi amplamente visto na época como uma manobra de fachada para resolver essas tensões internas.
Obtivemos novos detalhes esta semana. No dia 25 de janeiro, um programa da TV italiana chamado Os Intocáveis transmitiu uma reportagem especial, cujo centro era uma carta particular que Viganò supostamente dirigiu a Bento XVI em março de 2011, alertando o papa de como a sua remoção seria interpretada.
"A minha transferência provocaria confusão entre todos aqueles que acreditavam que era possível limpar tantas situações de corrupção e de prevaricação", Viganò teria dito ao papa.
Com efeito, o Vaticano fez de tudo, menos confirmar a carta. Uma declaração de 800 palavras divulgada no dia 26 de janeiro pelo porta-voz do Vaticano, o padre jesuíta Federico Lombardi, expressava "amargura" diante da divulgação de documentos privados, mas nunca disse que a carta não era autêntica.
O programa de TV deixou implícito que Viganò estava em desacordo com várias figuras-chave do Vaticano que pressionavam o secretário de Estado, o cardeal italiano Tarcisio Bertone, a mandá-lo para longe. Supostamente, Viganò teria reclamado que a comissão vaticana para a administração financeira, que inclui o presidente do Banco do Vaticano, favoreceu interesses pessoais e que os contratos de construção eram rotineiramente fechados com as empresas que cobravam mais caro com base em conexões pessoais.
Vamos estipular rapidamente quatro pontos:
- Primeiro, nunca é aconselhável levar a sério tudo o que você ouve na imprensa italiana. Algumas das coisas que passam por reportagem na Itália fariam os maiores fofoqueiros e fomentadores de escândalo da mídia norte-americana parecerem com Edward R. Murrow [considerado um dos maiores jornalistas dos EUA].
- Em segundo lugar, muito do que a carta Viganò se refere como "corrupção" pode ter uma explicação relativamente inocente, especialmente segundo as normas da tradicional cultura vaticana. Por exemplo, quando os procedimentos licitatórios são falsificados para fechar contratos, não é necessariamente porque alguém foi comprado, mas sim para premiar as empresas e os indivíduos vistos como leais ao papa, à Igreja ou a figuras-chave na hierarquia. Isso não significa que devamos defender tais práticas, mas sim, simplesmente, reconhecer que eles não são o que os norte-americanos geralmente chamam de "corrupto".
- Terceiro, segundo muitos, e apesar de sua experiência na diplomacia, Viganò nem sempre teve habilidade em termos de política de gabinete. Sua transferência, em outras palavras, não foi necessariamente uma aprovação unânime de sua filosofia financeira, mas sim de suas sólidas relações com outras autoridades.
- Quarto, se Bento XVI realmente quisesse repudiar Viganò, certamente haveria inúmeras outras opções em vez de nomeá-lo para – sem dúvida – o mais prestigioso cargo da diplomacia que o Vaticano tem a oferecer.
Dito isso, no entanto, três pensamentos sobre tudo isso surgem naturalmente.
Mal-estar administrativo
Primeiro, a situação de Viganò ilustra o atual mal-estar administrativo do Vaticano com Bertone.
Na verdade, o manejo do dinheiro é uma das poucas áreas em que Bento XVI realmente tem tido um grande interesse em termos de administração interna. Abalado por uma série de escândalos, incluindo o confisco em 2010 de 30 milhões de dólares em bens do Banco do Vaticano por supostamente ter violado os protocolos europeus contra a lavagem de dinheiro, Bento XVI criou uma Autoridade de Informação Financeira em dezembro de 2010, com o poder de supervisionar as transações de todos os dicastérios no Vaticano. Dada a cultura vaticana notoriamente compartimentalizada, isso equivale a uma verdadeira revolução.
Bento XVI também direcionou o Vaticano a entrar em conformidade com as normas internacionais de transparência financeira. Ironicamente, no mesmo dia em que a história de Viganò veio à tona, o Vaticano anunciou que havia ratificado três convenções da ONU destinadas a conter os fluxos cambiais e as transações ilegais em todo o mundo.
Em parte, esses esforços refletem uma percepção por parte de Bento XVI de que ele não pode pregar de forma confiável ao mundo externo sobre a necessidade de uma maior ética na economia – como ele tem feito repetidamente – se a percepção é a de que a sua própria casa não está em ordem.
Por que, então – se Bento XVI está comprometido com a glasnost – Viganò seria despachado – especialmente à luz do sinal misto que isso inevitavelmente envia?
A maioria dos observadores do Vaticano acreditam que a resposta está em Bertone, a quem todos admiram como alguém sincero e afável, mas que também tem sido decididamente dúbio como administrador. Nesse caso, os informantes dizem que Bertone foi persuadido de que Viganò era prejudicial, e, assim, caiu na clássica lógica vaticana de "promover para remover", sem a devida consideração de como essa medida seria vista.
No mínimo, Bertone deveria saber que, desde outubro, a correspondência de Viganò com o papa – que foi amplamente citada na época – equivalia a uma bomba-relógio. O fato de não terem sido tomadas medidas para ir além da história representa assim mais um capítulo no histórico enxadrezado dos últimos seis anos.
Na Idade Média, os alquimistas tentavam transformar chumbo em ouro. Alguns dos assessores de Bento XVI parecem, na verdade, ter uma habilidade em transformar um potencial "ouro" de relações públicas – nesse caso, as impressionantes reformas financeiras de Bento XVI – em chumbo.
Alguns observadores sugeriram que, quando Bertone completar 78 anos em dezembro, Bento XVI finalmente poderá ser persuadido a aceitar a sua demissão. Francamente, isso parece improvável, dado o forte vínculo pessoal entre os dois. Talvez, no entanto, o papa pode levar em consideração um fortalecimento do papel de outras autoridades com comprovada capacidade administrativa sob e ao lado do secretário de Estado.
Medidas para a criação de confiança
Em segundo lugar, este seria um bom momento para que o Vaticano tome algumas medidas de criação de confiança no que diz respeito à gestão financeira.
Por exemplo, o dia 19 de janeiro marcou o aniversário de um ano da nomeação do cardeal italiano Attilio Nicora como primeiro presidente da nova Autoridade de Informação Financeira. Seria útil promover um relatório para descrever os passos dados nos últimos 12 meses para impor controles internos mais eficazes.
Nicora é um veterano especialista financeiro, que foi o arquiteto das revisões de 1984 da concordata entre o Vaticano e o governo italiano. Desde que assumiu a nova autoridade financeira, ele manteve um perfil baixo, mas este parece ser um momento oportuno para que ele rompa o silêncio.
Além disso, o Vaticano tem um conselho de 15 cardeais de várias partes do mundo que supervisiona as suas operações financeiras (tecnicamente, ele se chama "Conselho dos Cardeais para o Estudo dos Problemas Organizacionais e Econômicos da Santa Sé"). Todos os anos, apresenta-se a esse grupo uma consolidada declaração financeira sobre o ano anterior. Em 2011, por exemplo, informou-se que o Vaticano obteve um superávit de 13 milhões dólares em 2010.
Como um relógio, sempre que essa declaração aparece, os críticos acusam que ela é incompleta e difícil de penetrar porque não é apresentada de acordo com as práticas contábeis globalmente aceitas, mesmo que um grupo de especialistas externos reveja a declaração antes de ser divulgada. Particularmente, até alguns cardeais que participam do conselho expressaram frustrações semelhantes, especialmente os das dioceses mais importantes, cujos livros-caixa estão sujeitos a rigorosas auditorias independentes.
A declaração financeira geralmente é publicada em julho, o que significa que estamos a cerca de seis meses da próxima edição. Talvez, desta vez, os cardeais que participam do conselho podem pressionar para que uma empresa de auditoria independente e bem conhecida faça parte da apresentação pública e para que a divulgação seja mais aprofundada, com base no fato de que uma dose maior de transparência seria do interesse de todos e, além disso, estaria em consonância com as reformas que Bento XVI já lançou.
Um efeito-Viganò nos Estados Unidos?
Em terceiro lugar, independentemente de quão desagradáveis as recentes revelações possam ser para o Vaticano, os católicos norte-americanos realmente deveriam se sentir muito bem. Eles têm a confirmação de que ganhamos um núncio em Viganò que é alguém com bom senso no que se refere a integridade financeira e que não tem medo de disputar algumas batalhas internas para fazer com que seus princípios se sustentem.
Tudo isso é especialmente importante em um momento em que alguns observadores temem que os escândalos financeiros poderiam ser a segunda rodada da crise dos abusos sexuais em termos de danos à imagem e à autoridade moral da Igreja. Esses temores têm sido alimentados, dentre outras coisas, por uma pesquisa de 2007 que concluiu que 85% das dioceses entrevistadas nos Estados Unidos tinham sofrido algum tipo de desvio financeiro.
Sob essa luz, seja qual tenha sido a lógica interna do Vaticano para a transferência de Viganò aos Estados Unidos, a sua chegada ao país ocorre em um ótimo momento para a Igreja norte-americana. Ele pode ser capaz de encorajar aqueles bispos norte-americanos que já estão comprometidos com a transparência, ajudando-os a enquadrar os seus sistemas locais com a lei eclesiásticas e as expectativas vaticanas, e a vigiar os que ainda não estão prontos para acelerar.
Se ele aplicar a mesma mentalidade inflexível que ele mostrou em Roma, talvez, no fim, nós falaremos de um "efeito Viganò" na Igreja norte-americana – como a glasnost financeira que ele não foi capaz de levar a termo no Vaticano deu frutos, ao contrário, deste lado do Atlântico.
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Viganò: pensamentos sobre o novo núncio dos Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU