28 Agosto 2018
Você se lembra dos cartazes afixados à noite pelas ruas da Cidade Eterna, que nos interrogavam sobre onde estava a misericórdia do Papa Francisco diante de certas decisões suas, tomadas pelo bem da Igreja e para resolver as rixas nascidas dentro da Soberana Ordem de Malta? Francisco riu a respeito e não acrescentou mais nada.
A reportagem é de Damiano Serpi, publicada em Il Sismografo, 27-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Você se lembra da famosa carta – ou, talvez, seria melhor chamá-la de relatório de despesas – redigida em papel timbrado da Santa Sé, mas repleta de erros e rigorosamente sem qualquer assinatura, que continha a lista das somas de dinheiro utilizadas no já tristemente conhecido “caso Orlandi” e divulgada por um renomado jornalista que ainda hoje não nos disse de quem e como obteve aquele inquietante documento? O Santo Padre fez com que a Santa Sé respondesse, preocupando-se com o sofrimento e a dor daquela família, sem respostas concretas há muitos anos.
Você se lembra daquele documento assinado por uma centena de professores universitários e estudiosos onde se chegava a definir o papa de herético por causa das posições expressadas na exortação apostólica Amoris laetitia? Também dessa vez Francisco optou pelo silêncio barulhento das obras de misericórdia.
Com um pouco de esforço, não será difícil lembrar todos esses episódios. Agora, os jornais de todo o mundo nos relatam essa longuíssima carta, mais de 10 páginas, de um arcebispo italiano, ex-núncio nos Estados Unidos, que, depois de nada menos do que cinco anos, desde o início do pontificado de Francisco, e depois de ter sido desautorizado de todas as responsabilidades junto à Santa Sé devido a várias e lamentáveis questões, quer convencer a todos que o papa sabia desde 2013 do envolvimento de um cardeal estadunidense em crimes de pedofilia confirmados, mas não fez nada.
Nesse domingo, durante a habitual coletiva de imprensa no avião no seu retorno da Irlanda, o Papa Francisco respondeu a uma pergunta sobre essa carta do arcebispo e ex-núncio Viganò, pedindo aos jornalistas presentes, e através deles a todos nós, que lessem com atenção aquelas longas palavras do ex-prelado agora em repouso e, assim, formulassem um julgamento.
Ele, o papa, não deveria acrescentar e, de fato, não acrescentou mais nada. Por que ele fez isso? Por que se limitou a convidar os jornalistas a ler essa carta de acusações sem tentar se defender, se justificar, dizer a sua versão? Que escolha foi essa de deixar aos jornalistas e a todos nós a liberdade de chegar a conclusões apenas lendo aquilo que a pessoa que se eleva a acusador pretende divulgar? Não teria sido melhor defender seu trabalho com a espada desembainhada?
Uma escolha certamente muito estranha e, de certa forma, até incompreensível nesta sociedade onde todos gritam e todos querem ter razão. Agora, no nosso mundo cotidiano, estamos continuamente sobrecarregados de escândalos e de supostos “furos” jornalísticos que, todas as vezes que se levanta uma poeirama para acusar alguém, já estamos acostumados a discutir não tanto sobre as acusações concretas que são levantadas e sobre a veracidade dos indícios e das provas, mas exclusivamente sobre como se rebatem as acusações e as polêmicas que desencadeiam um vórtice sem fim.
Se pensarmos a respeito, é realmente assim. Hoje em dia, as confusões midiáticas não se baseiam mais em um correto confronto das acusações que se pretende mover, mas apenas proferindo e parafraseando as respostas dadas por aqueles que devem se defender. É por isso que essa atitude do papa diante de um documento que, estejamos certos disso, deve ter provocado muito sofrimento a ele parece difícil de compreender. No entanto, não será difícil se mudarmos de perspectiva e acolhermos o desafio de parar para ler esse ato de acusação com bom senso e honestidade intelectual.
Acolhendo o desafio do papa, de fato, será possível ler aquelas intermináveis palavras do ex-núncio Viganò por aquilo que elas realmente são, ou seja, a última tentativa desajeitada em ordem de tempo para deslegitimar o trabalho do papa.
Agora, faz-se isso jogando pesada e perigosamente sobre um tema, o da pedofilia dentro da Igreja, que está angustiando a todos nós, fiéis. Os tempos, os modos e os conteúdos daquilo que o arcebispo Viganó escreveu não podem ser apenas coincidências. Seria muito tolo pensar isso, quanto mais acreditar nisso.
Por que divulgar justamente durante a visita apostólica à Irlanda certas notícias datadas, se verdadeiras, de nada menos do que cinco anos atrás? Por que fazer isso com os tons de quem se considera vítima, mas sem se arrepender, se as acusações forem verdadeiras, de ter sido o primeiro a não ter feito nada e a ter se calado? Por que usar as mídias notoriamente contrárias ao papado de Francisco para veicular ao grande público essa carta, em vez de aceitar o debate?
Perguntas legítimas que, nestas horas, muitos estão se fazendo e que, em vários lugares, nos narram a história de um arcebispo descrito por muitos para desapontado por não ter sido premiado, ressentido por não ter aceitado dentro de si as decisões tomadas pelo papa sobre a sua carreira.
Há quem fale de um sacerdote em perene briga com a própria família, que mentiu, ao que parece, até mesmo a Bento XVI sobre o seu empenho concreto para ajudar um parente afetado por sérios problemas de saúde, com o único propósito de poder ficar em Roma e não ser afastado dos escritórios mais importantes.
No entanto, tudo isso é muito pouco importante ou, melhor, não é nada importante. Tudo isso é apenas fofoca, mexerico, remexer na escuridão para continuar alimentando um vórtice sem fim.
O que Dom Viganò conta nessa longa carta é um conjunto de dados, nomes e circunstâncias verdadeiras misturadas com considerações, suposições e ilações que não podem ser confirmadas porque são expressão das suas próprias convicções e crenças. Não somos nós que dizemos isso, mas é ele quem escreve isso. O que se lê enquanto as linhas datilografadas daquele longo texto vão se tornando mais finas é o desconforto de um homem por ter sido deixado de lado e a necessidade, terrível e opressora, de obter a reparação disso, de algum modo.
As partes mais importantes e também mais difamatórias para o papa e para a Igreja contidas nessa carta não são e não podem ser comprovadas, de algum modo, por quem a lê. Esse texto foi escrito, composto, elaborado e divulgado com o único propósito de semear a dúvida, de provocar repercussão, de fomentar aquela suspeita que corrói toda certeza, até mesmo a mais sólida. Em suma, mais do que justiça, esse texto queria buscar e provocar clamor, escândalo, incerteza, dúvidas e fofocas.
Comparar o Papa Francisco com um dos muitos sacerdotes, bispos e cardeais que acobertaram os seus subordinados ou irmãos é a tentativa mais mesquinha de colocar novamente em campo as estratégias já usadas no passado com os cartazes afixados durante a noite em Roma, com a divulgação pública de um memorial falso sobre o caso Orlandi e com as falsas acusações de heresia. Todos episódios em que se misturam verdades confirmadas e hipóteses fantasiosas, com a única intenção de aterrorizar o leitor e fazer germinar dentro da sua mente a semente da dúvida e da suspeita mais atroz. Nada mais.
Depois de ler com atenção, como o próprio Papa Francisco sugeriu, essa última carta-poeirama, damo-nos conta de que estamos diante de acusações baseadas no nada, porque não são cobertas por evidências, por provas, por confirmações objetivas. Acusações desmentidas por que foi dito, feito, pedido para fazer e programado.
Nessa carta, faz-se referência àquilo que se ouviu dizer, ao “diz-se que”, ao “pareceu-me que” ou “é notório que”. Conta-se sobre um encontro privado que deveria representar aquela “arma fumegante” para legitimar os pedidos de renúncia de um papa. Mas esse foi um encontro onde os únicos olhos que se cruzaram foram os do papa e os do então arcebispo. Nenhum de nós pode saber com certeza como as coisas aconteceram durante aquele encontro, porque ele era reservado e assim deveria ter permanecido.
É muito fácil se aproveitar disso ou, pior ainda, maquinar cada tentativa de forçar a verdade. Em quem acreditar? No Santo Padre ou em um monsenhor que o ataca pelas costas com uma acusação justamente em um dos momentos mais delicados do seu pontificado? Bem, depois de ler tudo e de ter sopesado tudo, eu acredito no papa, na sua boa-fé, na sua palavra, nos seus gestos, naquilo que ele representa para cada um de nós.
Sobre a pedofilia, sobre esse crime chocante, o papa e a Igreja falaram nos últimos anos com os fatos. Talvez ou, melhor, certamente, ainda há muito o que fazer e é preciso que a Igreja se dote de instrumentos que permitam combater essa chaga com ainda mais firmeza e severidade, também naqueles setores ainda desordeiros que preferem o silêncio e o acobertamento da verdade. Mas é inegável que, em relação ao passado, já foi feito um percurso, aliás, alinhado com aquilo que já havia sido iniciado por Bento XVI, que assume hoje como objetivo garantir a transparência, ouvir com atenção para não deixar as vítimas sozinhas e assegurar-lhes a justiça.
Precisamente por isso, o Santo Padre realmente tem razão: leia-se com atenção a carta-acusação do arcebispo Viganò e, depois, sopese-se aquilo que foi o pontificado de Francisco até o momento. A conclusão só poderá ser uma, e nos bastará o bom senso para chegar até ela.
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Por que o papa tem razão quando convida a ler com atenção e bom senso a carta-acusação do arcebispo Viganò - Instituto Humanitas Unisinos - IHU