15 Abril 2024
Em uma conferência no Stonyhurst College, na Inglaterra, na Sexta-Feira Santa, o conselheiro espiritual do Sínodo sobre a Sinodalidade refletiu sobre como esse processo de escuta e discernimento é também uma espécie de morte para que possamos viver, em preparação para uma nova primavera na Igreja.
Timothy Radcliffe foi mestre da Ordem Dominicana de 1992 a 2001, conferencista itinerante, pregador e diretor de retiros. As palestras e meditações que ele compartilhou com delegados e delegadas do Sínodo foram reunidas no livro “Listening Together: Meditations on Synodality” [Escutando juntos: meditações sobre sinodalidade] (Liturgical Press).
O artigo foi publicado em The Tablet, 11-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando a Paixão de Jesus se aproximava, João nos conta que ele disse: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. Eu garanto a vocês: se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica sozinho. Mas se morre, produz muito fruto” (12,23-24).
O Sínodo sobre a Sinodalidade, o processo de três anos de escuta e diálogo que atingirá seu clímax em Roma no próximo mês de outubro, só será frutífero se for também um momento de uma pequena morte. Após o término da primeira assembleia do Sínodo em outubro passado, houve reclamações de que nada havia sido alcançado. Depois de todo o frisson, o documento final, a Síntese, dizia que a questão das mulheres diáconas deveria ser “estudada” – pela terceira vez! O documento parecia até mesmo se afastar do documento preparatório em relação à acolhida às pessoas LGBT. A palavra nem sequer era mencionada. Tudo isso foi visto por muitos como um fracasso.
O Sínodo previu esse mal-entendido. Quando as sementes caem no solo, nada parece acontecer. Elas germinam silenciosamente no subsolo até a primavera. O Papa Francisco insistiu várias vezes que o Sínodo não é um órgão parlamentar, reunido para tomar decisões rápidas. O Espírito Santo é o protagonista do Sínodo. Toda mudança é profunda, orgânica e, às vezes, quase imperceptível. Esse é o caminho de Deus. Quando Jesus morreu na cruz e ressuscitou no Domingo de Páscoa, o mundo parecia continuar como antes. O Império parecia inalterado. Mas o Reino estava aqui.
Vejo o Espírito agindo no Sínodo pelo menos de três maneiras, e cada uma delas nos convida a uma espécie de morte para que possamos viver. A primeira é aprendendo a participar da amizade divina. Pode parecer estranho dizer que a primeira etapa do processo sinodal, seja em Roma ou em sua paróquia local, é estarmos abertos a amizades novas e inesperadas. Mas o Reino de Deus irrompeu no mundo há 2.000 anos, quando Jesus ofereceu amizade a todos os tipos de pecadores estranhos e marginalizados. Ele comia e bebia com prostitutas e os corruptos e desprezados cobradores de impostos. Era uma partilha da vida de Deus, que São Tomás de Aquino acreditava ser a amizade eterna e igual entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Na primeira sessão do Sínodo, o Espírito Santo trabalhou por meio dos nossos encontros uns com os outros. Barreiras caíram, e amizades nasceram. Eu estive em três Sínodos anteriores. Eles tinham o que chamo de “eclesiologia dos barretes”. No centro, havia um barrete branco. Depois, alguns círculos de barretes vermelhos. Depois, muitos barretes roxos. E então, nas margens, estavam os sem barrete, como eu. Todos líamos discursos de oito minutos que havíamos preparado em casa e depois íamos embora. Muito chato em geral. Desta vez, todos nos sentamos ao redor de mesas redondas. Cardeais e bispos sentaram-se com jovens, mulheres da América Latina, irmãos e irmãs religiosos. O mais novo era um jovem de 19 anos, do Wyoming.
Todos os membros do Sínodo engajaram-se em “conversas no Espírito”. Cada pessoa à mesa era convidada a falar por quatro minutos. Ninguém podia interromper. Depois, após um breve silêncio, uma série de reações e, finalmente, uma avaliação de onde concordavam, discordavam ou poderiam convergir. Cada mesa tinha uma pessoa facilitadora, muitas vezes uma mulher, que impedia qualquer pessoa – incluindo os cardeais – de falarem demais. Um importante arcebispo do Vaticano me disse: “Olhe para aqueles cardeais romanos. Estão tendo que ouvir os batizados em um silêncio respeitoso. Eles nunca mais serão os mesmos”.
Na amizade, você não apenas se aproxima dos outros, mas também se transforma. Você tem que morrer um pouco, deixar de lado quem você era. Toda amizade profunda leva você para fora de si mesmo. Você se torna uma nova pessoa, mesmo que apenas de uma forma muito pequena. Recentemente, tive uma grande crise de câncer, a minha segunda. Ao enfrentar a minha mortalidade, comecei a fazer anotações sobre a minha vida e percebi que sou fruto de todas as amizades e amores que formei, e às vezes também dos meus fracassos em amar.
Ainda não foi totalmente revelado quem somos como cidadãos do Reino. São João diz em sua primeira carta: “Embora ainda não se tenha tornado claro o que vamos ser, sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque nós o veremos como ele é” (1Jo 3,2). Nossa identidade está escondida em Cristo. Estar aberto à amizade exige que você não se importe muito com sua identidade. Como disse Iris Murdoch, “o principal requisito de uma vida boa é viver sem nenhuma imagem de si mesmo”.
Portanto, o desafio da Igreja é se tornar a comunidade dos amigos e das amigas de Deus. Isso é incompatível com o “clericalismo”, a elevação dos ordenados acima dos batizados em uma casta superior. Não é nenhuma surpresa que alguns padres e bispos tenham sido os mais resistentes ao caminho sinodal entre todos os grupos da Igreja. Isso pode parecer uma rejeição de sua identidade presbiteral. Mas, sem o apoio do clero, o processo sinodal não decolará. É urgente que desenvolvamos uma visão afirmativa da identidade presbiteral, que valorize essa vocação como um belo chamado no coração da Igreja. Ainda não está clara para mim qual será essa nova identidade presbiteral, embora certamente signifique receber uma ordem, ser ordenado, em cada fibra do nosso ser, à amizade, assim como o Nosso Senhor. Visitando uma reunião de povos tribais no norte do Paquistão, avistei seu padre, um dominicano estadunidense, sentado no chão no meio de seu povo, vestido com as roupas deles e, sem dúvida, com o “cheiro de suas ovelhas”, como o Papa Francisco gosta de dizer. Sim, pensei eu, é assim que o presbiterado deve ser.
Todos somos convidados a uma espécie de Sexta-Feira Santa em que morremos para as identidades estreitas e defensivas que construímos para reforçar o nosso sentido de quem somos. A nossa sociedade é obcecada pela identidade. Identidade de gênero, identidade étnica ou de classe (a especialidade britânica), identidade sexual, políticas identitárias. A identidade deve ser escolhida e construída. Assisti ao filme “Barbie” a caminho da Austrália, e foi algo surpreendentemente profundo. A Barbielândia abraça o sonho estadunidense de que você pode ser o que quiser. Absurdo. Eu nunca poderia ser um matemático ou correr um quilômetro em quatro minutos. Para os cristãos, a identidade não é escolhida ou construída. É descoberta ou mesmo deixada para trás quando dizemos: Jesus é Senhor.
Na Barbielândia, a morte sequer deve ser mencionada. Mas os cristãos abraçam a Sexta-Feira Santa, quando a semente solitária cai na terra e morre para se multiplicar. Isso começou a acontecer no Sínodo à medida que as barreiras caíam e éramos convidados a ultrapassar as identidades restritivas de esquerda e direita, Norte e Sul, e até, espero, jovens e velhos, e a nos tornarmos um no Senhor, assim como o Filho e o Pai são um. Esse é um sinal de esperança em um mundo cada vez mais dividido pela guerra e pela violência.
Isso me leva à segunda maneira pela qual penso que o Espírito está trabalhando no Sínodo. O Espírito Santo nos convida a avançar para além das nossas zonas de conforto como ocidentais. Em Pentecostes, o Espírito desceu sobre a comunidade de Jerusalém, enviando-a até aos confins da terra. Mas os Apóstolos não queriam ir. Eles queriam permanecer na Cidade Santa e desfrutar da companhia um do outro, uma pequena comunidade judaica. Foi a perseguição que os expulsou do ninho para abraçar a todos nós, gentios. Se isso não tivesse acontecido, não estaríamos aqui hoje.
É isso que o Espírito faz. Tira as pessoas de sua zona de conforto e as leva ao mundo mais amplo dos amigos e das amigas de Deus. Quando eu morava em Roma, os falcões costumavam fazer ninhos na janela do meu escritório. Todos os anos, havia o drama de quando os pais expulsavam os falcõezinhos do ninho. Eles costumavam pairar na frente da minha janela, tentando voar desesperadamente. O Espírito Santo é como uma grande Mãe Falcão, tirando-nos da nossa zona de conforto.
Algo semelhante começou a acontecer com muitos de nós, ocidentais, no Sínodo. Viemos com a nossa própria agenda ocidental. Tínhamos os nossos tópicos polêmicos. Víamos o mundo através de olhos ocidentais. Mas tivemos um choque. Quando o Muro de Berlim caiu em 1989, muitos argumentaram que havíamos entrado em uma nova era, o triunfo da democracia liberal ocidental. Cada nação estava destinada a “evoluir” para o nosso modo de vida. Se alguns países, especialmente no Sul Global, não concordassem conosco sobre, por exemplo, a acolhida aos homossexuais, acabariam nos alcançando em algum momento.
Estávamos errados. Estamos entrando em um mundo multipolar. O Ocidente já não é o ponto de referência automático para a maior parte da população mundial. Não tenho certeza se sequer começamos a imaginar o que significa ser um no corpo de Cristo com os nossos irmãos e irmãs da África, da Ásia e da América Latina. Durante a primeira Guerra do Iraque, a família dominicana organizou um jejum de um mês pela paz em Union Square, Nova York. Distribuímos adesivos: “Temos uma família no Iraque”. Imaginem as consequências de essas pessoas serem realmente seus irmãos e irmãs? Somos chamados a ser principalmente cidadãos do Reino de Deus, não da Grã-Bretanha. Na Reforma, abraçar aquela identidade católica – universal – antes de qualquer identidade nacional levou muitas pessoas à pobreza e até ao martírio. Quanto poderá nos custar hoje ver o mundo através dos olhos do Reino? Talvez até as nossas próprias vidas.
E aqui chegamos a um ponto crucial para o processo sinodal. Devemos nos abrir a outras culturas, a outros irmãos e irmãs no Reino. Fratelli tutti! Mas o Papa Francisco também nos pede para abrir a Igreja a todos, sejam quem forem. “Todos, todos, todos”: divorciados recasados, gays, transexuais. Mas, em algumas partes do mundo, a acolhida aos gays é vista como um escândalo. A maioria dos bispos católicos na África veem isso como uma tentativa de impor uma ideologia ocidental decadente ao restante do mundo. O cardeal Fridolin Ambongo, de Kinshasa, presidente da organização que representa todos os bispos católicos da África, vê isso como algo sintomático de uma cultura ocidental condenada. Há algumas semanas, ele disse: “Pouco a pouco, eles [os ocidentais] irão desaparecer. Desejo-lhes uma boa morte”.
Como podemos reconciliar os dois imperativos do papado de Francisco – ser “em saída”, levar o Evangelho até aos confins da terra, a todas as culturas e estar abertos a todos os seres humanos, qualquer que seja sua situação e quem quer que sejam? O dilema explodiu na Fiducia suplicans, a declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé que concedeu permissão aos padres, em situações muito específicas, para abençoarem casais em relações “irregulares”, incluindo casais do mesmo sexo. O cardeal Ambongo foi a Roma para apresentar a firme rejeição à proposta por parte dos bispos africanos. Nunca antes todos os bispos de um continente haviam repudiado um documento vaticano. Todas as tentativas foram feitas para minimizar a crise. O papa havia aprovado a declaração. O cardeal Ambongo defendeu que o excepcionalismo africano era um exemplo de sinodalidade. Unidade não significa uniformidade, ressaltou. O Evangelho é inculturado de forma diferente em partes diferentes do mundo.
Mas isso levanta questões mais complexas do que essas. Sim, o Evangelho está sempre inculturado nas diferentes culturas, mas também desafia todas as culturas. Jesus era judeu e desafiou a religião de seus ancestrais. A rejeição à bênção aos homossexuais na África é um exemplo de inculturação – ou uma recusa a ser contracultural? A inculturação de uma pessoa é a rejeição ao Evangelho contracultural por parte de outra. Outra preocupação sobre Fiducia supplicans é que não parece ter havido nenhuma consulta – nem mesmo com bispos ou outros dicastérios do Vaticano – antes de o documento ser divulgado – o que talvez não seja um bom exemplo de sinodalidade. Os bispos africanos estão sob grande pressão dos evangélicos com dinheiro estadunidense; dos ortodoxos russos com dinheiro russo; e dos muçulmanos com dinheiro de países ricos do Golfo. Deveria ter havido uma discussão com eles antes, e não depois, da publicação da declaração. Independentemente do que pensemos sobre a declaração, quando estamos diante de tensões, a fim de avançarmos, todos temos de pensar e nos envolver uns com os outros em um nível profundo.
A terceira maneira pela qual eu vejo o Espírito agindo no Sínodo é ao nos conduzir à plenitude da verdade. Essa é outra espécie de Sexta-Feira Santa. De vez em quando, na vida da Igreja, temos momentos dolorosos em que morremos para uma certa compreensão da nossa fé e da vida cristã, para que possamos avançar mais profundamente no mistério de Deus. É como beijar alguém. Você vê alguém do outro lado da sala. Você vê todas as pessoas. Elas se aproximam, e você as abraça. Agora, elas desaparecem, exceto seu rosto. Você as beija, e elas se tornam invisíveis, não porque tenham ido embora, mas devido a uma nova intimidade. E assim é com Deus. De vez em quando, parecemos perder Deus, entrar em uma noite escura, mas apenas para que nos reaproximemos mais.
Isso tem acontecido ao longo da história da Igreja. Aconteceu no século XIII, quando o Ocidente redescobriu as obras perdidas de Aristóteles. Isso levou a uma transformação teológica, em grande parte mediante os ensinamentos de Tomás de Aquino. Aconteceu novamente na Renascença, muitas vezes por meio de teólogos jesuítas. O Sínodo está continuando a mudança sísmica que começou no Concílio Vaticano II. Cada um desses momentos foi uma morte e uma ressurreição.
Isso é alarmante para muitas pessoas. Amigos meus protestam porque se tornaram católicos porque ansiavam por certeza, por clareza. A certeza permanece: que Deus se fez humano, morreu e ressuscitou e se entregou a nós na Eucaristia. Todas as doutrinas do Credo permanecem inabaláveis. Mas a nossa busca para entender mais profundamente o que essas doutrinas significam leva-nos, às vezes, à perplexidade. No século XIII, Tomás de Aquino observou que a frase “bem-aventurados os que choram” era uma bem-aventurança especialmente para quem busca conhecimento e compreensão: “Estamos unidos a Deus assim como ao desconhecido”, dizia ele. Temos de morrer para as velhas formas de pensar para podermos entrar mais profundamente no mistério. Isso pode ser difícil.
Nem toda essa busca da verdade pode ser feita apenas pelo Sínodo. Francisco criou várias comissões para refletir sobre questões urgentes, desde o papel do bispo até às diferentes formas de ministério e ao papel das mulheres. Isso faz parte do nosso testemunho a um mundo que perdeu o amor pela verdade, que está inundado de fake news e de teorias da conspiração malucas, com a “sua” verdade e a “minha” verdade em vez da verdade. Como o Papa Bento XVI gostava de dizer, perdemos o sentido da grandeza da razão.
A Sexta-Feira Santa é um bom dia para se pensar no Sínodo. Ela nos convoca a diferentes formas de morrer para que possamos viver. A semente deve cair na terra e morrer para dar frutos. Em um mundo que vê a identidade como algo a ser escolhido ou construído, a amizade divina nos convida a abandonar as autoimagens e a descobrir quem somos no mistério de Cristo. Há também uma morte para a nossa própria identidade centrada no Ocidente, à medida que procuramos entender o que significa viver como cidadãos e cidadãs do Reino. E, finalmente, o Espírito nos convida a morrer aos velhos modos de pensar, para que possamos entrar mais profundamente no mistério de Deus. Esse será o trabalho dos próximos meses. No século IV, Gregório de Nissa dizia que estaremos para sempre apenas no início do entendimento de Deus, mas Jesus “é o mesmo ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8).
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O Espírito do Sínodo. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU