12 Julho 2023
Direitos como a liberdade de expressão só são significativos quando os reconhecemos para pessoas de quem discordamos, às vezes veementemente.
A opinião é de William Dailey, CSC, padre da Congregação de Santa Cruz e atualmente professor de Direito na Notre Dame Law School. O artigo foi publicado por America, 10-07-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A leitura em um domingo recente do Segundo Livro dos Reis relatava a encantadora história da mulher anônima de Suném, cuja hospitalidade ao profeta Eliseu floresceu em uma amizade cheia de graça e levou até ao nascimento – e eventual ressurreição – de um filho. A história tem sido celebrada como aquela em que a empatia radical redunda em benefício tanto da mulher quanto do profeta.
Lembrei-me disso ao refletir sobre dois casos decididos pela Suprema Corte dos Estados Unidos em seu mandato recém-encerrado, ambos os quais abordavam a acolhida ao próximo e o desafio específico que isso pode representar em uma sociedade pluralista.
Em um caso – Groff v. DeJoy – a corte, por unanimidade, reafirmou nosso compromisso com os direitos religiosos de acordo com a Lei dos Direitos Civis de 1964, pedindo a um tribunal inferior que reconsiderasse uma decisão contra um funcionário do Serviço Postal dos Estados Unidos e cristão evangélico que se recusou a trabalhar aos domingos.
Mas houve menos unidade no caso 303 Creative LLC v. Elenis, no qual seis dos nove juízes decidiram que uma designer de sites podia se recusar legalmente a criar sites para casamentos entre pessoas do mesmo sexo com base na liberdade de expressão. A demandante, Lorie Smith, havia decidido expandir seus negócios para incluir sites personalizados para casamentos, mas não queria criar conteúdo que violasse suas crenças religiosas no modelo bíblico de casamento entre um homem e uma mulher. Então, ela recorreu ao tribunal antes de aceitar clientes, de acordo com uma doutrina há muito reconhecida de “pré-execução” em casos envolvendo os direitos de liberdade de expressão (apesar de muitos comentários imprecisos perguntarem por que ela foi autorizada a abrir o processo antes que algo ocorresse com ela). Ela antecipou que seria acusada de violar a lei estadual do Colorado que proíbe todos os “locais de acomodações públicas” de negarem serviço a pessoas com base em seu status LGBT.
(Os leitores da America provavelmente se lembrarão de um caso de 2018, Masterpiece Cakeshop, que invocou questões semelhantes, sobre se um padeiro podia ser forçado a assar um bolo para um casamento que violasse suas crenças religiosas sobre o casamento. Nesse caso, o tribunal decidiu que o Colorado havia indevidamente demonstrado hostilidade à religião em sua aplicação de uma lei de não discriminação, mas evitou a questão de decidir se o padeiro tinha o direito constitucional de negar seu serviço.)
Smith disse ao tribunal que atende a todos os clientes, independentemente de sua orientação sexual, mas se recusaria a criar mensagens que violassem suas crenças para qualquer cliente. A incapacidade de recusar tais serviços, argumentou ela, constituiria um discurso forçado, remontando ao caso histórico de 1943, no qual a Suprema Corte derrubou o esforço da Virgínia Ocidental de obrigar crianças Testemunhas de Jeová a saudarem a bandeira. É importante notar que o caso 303 Creative foi discutido e decidido não segundo as cláusulas religiosas da Primeira Emenda, mas segundo a Cláusula de Liberdade de Expressão.
A maioria de seis ministros, segundo um parecer do juiz Neil Gorsuch, foi persuadida pelos argumentos de Smith de que decidir contra ela significaria, teoricamente, que o governo poderia forçar um homem casado com outro homem a criar um site opondo-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo ou um escritor judeu a criar conteúdo cristão cujo significado rejeitasse.
Em dissidência, a juíza Sonia Sotomayor sustentou que a opinião da maioria “concede a uma empresa aberta ao público o direito constitucional de se recusar a atender membros de uma classe protegida”. Isso é verdade em um certo nível de abstração, mas colocar dessa forma é bastante enganoso. Lembremos que Smith estipulou que serviria aos membros da classe protegida de todas as formas, exceto aquelas que exigissem que ela criasse um discurso do qual ela discordasse. Então, embora ela se recusasse a criar o site de casamento de um casal de lésbicas, ela ficaria feliz em trabalhar com elas em seu site de negócios. Seria mais correto dizer que a Suprema Corte decidiu que, embora Smith não pudesse recusar clientes com base em sua orientação sexual, ela também não poderia ser forçada a dizer coisas nas quais não acredita em nome deles.
Muitos expressaram mágoa e tristeza com a decisão do caso 303 Creative. Eles alegam que isso consagra o direito à “intolerância” e ao “fanatismo” ou, pelo menos, favorece uma violação que prejudica uma comunidade vulnerável. Mas nada na opinião sugere que a proverbial porta possa agora se fechar às pessoas LGBT. Em vez disso, a decisão estreita em torno de uma doutrina tradicional alinhada com vários precedentes deixa tanto a lei de acomodação pública quanto a lei de liberdade de expressão ainda em vigor.
Ainda em 2018, os editores da America sugeriram que era “improvável que as profundas questões de justiça e tolerância – tanto de crença religiosa quanto de diferenças de orientação sexual – girassem em torno do tipo de bolo que alguém pode comprar ou pode ser obrigado a assar. Mas elas podem muito bem se voltar para o fato de buscarmos suas respostas por meio do confronto jurídico ou do encontro humano”.
Os católicos, em particular, têm lutado contra o perigo de que o chamado à castidade para as pessoas LGBT possa se fundir com o insulto ou o escárnio, e documentos como “Always Our Children”, de 1997, nos exortam a respeitar a dignidade inerente a todos e, ao mesmo tempo, defender os ensinamentos da Igreja. Portanto, a questão de como lidar com o desacordo moral na caridade não é fácil.
O absolutismo de direitos pode dificultar o envolvimento mútuo como vizinhos e não apenas como litigantes. Como escreveu Jamal Greene, da Columbia Law School, em seu livro “How Rights Went Wrong: Why Our Obsession with Rights is Tering America Apart”, é improvável que sugestões de compromisso satisfaçam: “Muitos, em ambos os lados, podem pensar que nenhum compromisso é necessário aqui. Mas o trabalho dos tribunais em uma democracia pluralista não é agradar sua base. É trabalhar para resolver conflitos e reduzi-los, em vez de aumentá-los. Os tribunais deveriam nos lembrar do que temos em comum”. Os tribunais devem seguir a lei, é claro, mas, quanto ao modo como eles exercem o julgamento e a persuasão, Greene oferece uma orientação prudente.
Livro de Jamal Greene, "How Rights went Wrong". (Foto: Divulgação)
Em outro caso importante que aborda a crença religiosa – Groff v. DeJoy – o tribunal ficou menos dividido. Gerald Groff foi funcionário do Serviço Postal dos Estados Unidos por vários anos antes de começar a fazer entregas aos domingos como parte de um acordo com a Amazon. Groff, um cristão evangélico, enfrentou ações disciplinares por se recusar a trabalhar aos domingos e, por fim, renunciou ao cargo.
Assim como meu colega da Notre Dame Rick Garnett expõe com mais detalhes aqui, Groff apresentou sua ação legal não como uma questão constitucional, mas sim estatutária: a Lei dos Direitos Civis de 1964 e uma subsequente decisão regulatória da Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego (mais tarde ratificada pelo Congresso) exigem que os empregadores “façam acomodações razoáveis às necessidades religiosas dos funcionários”, sem impor “dificuldades indevidas” ao empregador. A questão no caso deste ano era como interpretar a expressão “dificuldades indevidas”.
Um caso de 1977 – Trans World Airlines Inc. v. Hardison – definiu que qualquer coisa além de um custo de minimis (ou insignificante) para um empregador satisfaz o qualificativo “dificuldade indevida” e isenta o empregador do dever de abrir exceções. Mas, por algum tempo, grupos religiosos em um amplo espectro reclamaram que um padrão de minimis era tão baixo que a obrigação de fazer acomodações se tornava ineficaz.
Argumentando em prol do Serviço Postal no caso Groff v. DeJoy, a procuradora-geral Elizabeth Prelogar pareceu oferecer um ramo de oliveira: o tribunal pode encontrar espaço para adotar outra linguagem a partir do caso Hardison, referindo-se aos custos “substanciais” aos empregadores, em vez da formulação de minimis, e, assim, refinar em vez de anular a decisão Hardison. Essa concessão abriu espaço para um sinal verdadeiramente esperançoso: todos os nove ministros assinaram o parecer esclarecedor do ministro Samuel Alito, enviando o caso de volta às instâncias inferiores para reconsideração. O próprio Groff ainda pode ganhar ou perder, mas isso dependerá de determinações sobre as implicações práticas de acomodar seu desejo de folga aos domingos, assim como a disponibilidade de outros funcionários para cumprir suas obrigações. Esses casos exigem ponderação e julgamento: nem todas as acomodações serão viáveis, mas o compromisso da Lei dos Direitos Civis de fazer um esforço razoável para permitir que os nossos vizinhos vivam seus compromissos mais sagrados deve ser honrado por esforços mais do que simbólicos.
Por unanimidade, o tribunal seguiu o caminho de envolver uns aos outros como vizinhos em vez de litigantes no caso Groff, mas estava dividido sobre como fazer isso no caso 303 Creative. Isso significa que continuaremos a ter o desafio e a oportunidade de aprender a ser mais hospitaleiros com aqueles de quem discordamos. Afinal, direitos como a liberdade de expressão só são significativos quando os reconhecemos para pessoas de quem discordamos, às vezes veementemente. As pessoas também podem discordar sobre se pressionar pelo direito de alguém em uma dada instância é obrigatório ou sensato. Ao considerar tal caminho de conciliação, podemos constatar que as graças abundam para nós, assim como para aquela mulher anônima de Suném e o grande profeta Eliseu.
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Liberdade de expressão e acolhida às pessoas LGBT: desafios jurídicos em uma sociedade pluralista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU