14 Mai 2024
"A experiência das comunidades de base é, de fato, a profecia existencial da sinodalidade", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano Fidei Donum atuante na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e na Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Todas as vezes que se fala em sinodalidade, não consigo evitar de retornar com o pensamento à caminhada das décadas de 80 e 90 junto às famílias camponesas do Maranhão, à época do protagonismo laical das Comunidades de Base e da luta pela conquista da terra e da dignidade, quando os pobres enfrentavam a violência secular do latifúndio e os poderes inimigos do estado.
Vivíamos a sinodalidade e fazíamos experiências concretas do exercício colegial de animação-coordenação de comunidades, paróquias e pastorais, num processo de valorização do protagonismo laical, do Povo de Deus, do sacerdócio de todos os batizados, numa Igreja pobre, samaritana, martirial.
A experiência das comunidades de base é, de fato, a profecia existencial da sinodalidade: uma Igreja pobre, não edificada sobre critérios hierárquicos, testemunha do Reino, martirial. Igreja que nasce e cresce fora do Templo, nas casas, à volta de uma mesa, sob um telhado de palha, partilhando a Vida e a Páscoa de Jesus. Uma Igreja que casava a Palavra de Deus com a vida. Uma Igreja que rezava e cantava. E assumia como missão a luta amorosa pela justiça do Reino.
Era uma experiência comunitária, que redefinia o papel dos padres em termos de serviço fraterno nos caminhos de formação bíblica e sócio-política. Um padre formador, que assumia o estilo pedagógico sugerido por Paulo Freire. Um padre absolutamente não clerical, que não abandonava o altar, mas não ficava confinado na liturgia e na administração dos sacramentos. Um padre itinerante, não identificado com a centralidade da matriz.
Uma Igreja que ainda podia se enxertar num tecido comunitário herdeiro de ancestralidades indígenas e africanas, seduzidas pelo Evangelho de Jesus. Dimensão comunitária esta, que foi agredida mortalmente pelos processos de modernização capitalista. Dimensão que ainda resiste na luta dos povos originários e tradicionais, mas é quase totalmente esquecida no catolicismo popular hodierno.
E é por isto que me sinto obrigado a falar em sinodalidade como algo que pertence ao passado.
Recentemente, porém, Papa Francisco nos surpreende com a proposta de um Sínodo, que tenta envolver, desde 2021, toda a Igreja Católica na busca da participação e contribuição das comunidades dos cinco continentes em vista de uma caminhada comum. Proposta que se revela complicada e cheia de dificuldades, numa Igreja, hoje, bastante dividida entre quem vai à direita, quem à esquerda e quem prefere ficar em cima do muro.
Existem, além disto, outros entraves.
Com efeito, o que mais deveria nos preocupar é a distância entre palavras e práticas, entre documentos e efetivas conversões pastorais, ‘síndrome’ que caracteriza os processos destes últimos cinquenta anos da história da Igreja a partir do próprio Concílio Ecumênico Vaticano II.
Assumimos e repetimos as palavras-chave – pensem, como exemplos, aos “discípulos/as missionários/as” de Aparecida ou a outro lema, amplamente popular e logo esquecido: “Igreja em saída” – mais não se consegue ir além do discurso ortodoxo e vazio.
Isto se repete com o tema da sinodalidade, tema que é objeto de estudos, reflexões, comentários, diretrizes, encontros paroquiais, diocesanos e regionais, na maioria das vezes repetitivos e desvinculados de decisões e de eventos que possam traduzi-lo. Em suma, vistas estas considerações, teríamos dois momentos históricos bem distintos.
No primeiro caso, estamos fazendo memória de eventos protagonizados pelos pobres, sinodalidade e colegialidade, que vingaram no passado, irrupção surpreendente do Espírito na nossa história, e que, sucessivamente, definharam, redimensionados pelas imprevisíveis mudanças econômicas e sociopolíticas e, também, pelas pressões e perseguições hierárquicas durante dois longos pontificados.
Pelo contrário, no segundo caso, não lidamos com experiências concretas, mas com discursos, que, às vezes, aparecem inutilmente repetidos e inflacionados.
Tudo começa com a decisão pastoral de papa Francisco, que propõe um debate sinodal sobre a sinodalidade, convidando os católicos do mundo inteiro a se converter à fraternidade evangélica e a participar de um diálogo permanente sobre os novos desafios que o mundo atual nos apresenta e as estratégias do anúncio do Evangelho. Projeto que é acompanhado por frequentes críticas ao clericalismo, o que me parece uma atitude sutil e prudentemente anti-hierárquica.
Ultimamente, porém, refletindo sobre as tensões entre tendências igualitárias e hierárquicas, fui obrigado a olhar para a história ocidental com outros olhares e outras lentes e concluí que lidamos com a impossibilidade ontológica de resolver politicamente esta oposição e hostilidade. Ficamos também com uma aporia filosófica, que continua desde as explicações sobre a relação entre os seres humanos e o estado de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Nos três, a figura do contrato social comporta a existência do poder do estado: o absoluto e incontestável Leviatã em Hobbes, a monarquia parlamentarista em Locke e a democracia direta em Rousseau. Talvez, somente este último revela-se otimisticamente anti-hierárquico.
Precisa lembrar que oposição ao poder está presente como motivação teológica fundamental na Reforma Luterana. O espirito antirromano, antiautoritário, anti-hierárquico, porém não gerou alternativas organizativas das comunidades. Lutero se livrou do direito canônico, mas continuou fiel ao direito civil, delegando aos príncipes a tarefa de administrar a Igreja, quase fossem bispos de emergência, submetendo-se assim ao controle do Estado e renunciando a tarefa de construir e pensar a igualdade fraterna no espaço da convivência política.
Quem conseguiu ir além da mera reforma da Igreja foi Thomas Müntzer, que liderou a Guerra Camponesa. Ele se considerava um profeta enviado para realizar o Reinado de Deus, através de uma revolução que reivindicava a abolição da servidão nos campos e a divisão comunitária das terras, a eliminação de todo privilegio, toda desigualdade, toda opressão. Obviamente, as nobrezas católica e luterana não podiam adiar o enfrentamento dos rebeldes camponeses e os esmagaram em Frankenhausen (1525).
Bem antes de Lutero, houve a tentativa revolucionária de Francisco e Clara, que enfrentaram o direito canônico com uma estratégia amorosa e extremamente criativa: não o atacaram frontalmente e nem pensaram em queimá-lo, mas simplesmente viviam a vida comunitária “come se” o direito canônico não existisse, guiados simplesmente pela Evangelho lido e obedecido sine glossa. O debate sobre a necessidade de uma regra acabou com o movimento franciscano e o próprio Francisco, ainda em vida, foi respeitosamente derrotado e marginalizado. E, depois de morto, obviamente, foi santificado e, por séculos, até hoje, admirado e contemplado, mas sem o convite, o chamado claro e incontestável, a imitá-lo.
Tensão, que se revela trágica, quando, a igualdade e a fraternidade, inspiradoras de movimentos revolucionários, são sucessivamente, sempre, renegadas e traídas por regimes ditatoriais.
Movimentos novos, evangélicos, carismáticos, revolucionários, amorosos, fraternos, comunitários, antijurídicos e anárquicos, aliados da verdade, da paz, da justiça, aparecem insistentemente na história do Ocidente e da Cristandade e são invariavelmente derrotados pelos leviatãs dos estados e das instituições. Mas, se ganhassem o confronto, se instalariam num processo de inevitável traição das suas esperanças.
O confronto com as instituições deve ser permanente, não simplesmente para resguardar a nossa fidelidade, mas para construir processo de autonomia e autogestão e insistir numa versão do estado e das instituições como poder obediente à Vida. A insistência e perseverança da Esperança contra qualquer desmentida, em oposição radical ao cinismo do realismo político, deve ser a característica fundamental de que faz oposição.
É a questão do estado e do direito constituído, abordados na sua identidade constitutiva, ocidental, violenta e colonialista.
Abordagem a partir do “direito” das culturas indígenas, da profecia zapatista de Chiapas, Davi Kopenawa Yanomami, Nego Bispo... Sem descuidar de grandes e imprescindíveis ocidentais invisibilizados, como Fiódor Dostoievski, Enrique Dussel, Emmanuel Lévinas, René Girard, Jacques Ellul e, sobretudo, Simone Weil, a atualização, no nosso tempo, da profecia de Francisco e Clara.
Aqui caberia também uma reflexão sobre a secular relação da Igreja católica com o estado. O estado, como “garçonete do mercado capitalista” (subcomandante Marcos do EZLN) se apresenta novamente como inimigo mortal da Vida e dos pequeninhos. Gerenciado pela direita ou pela dita esquerda radicalizou a sua essência violenta de uma forma tal que repetir as metodologias eclesiásticas tradicionais, via direito, concordata, advocacy, incidência, é aposta equivocada e estéril. Trata-se, enfim, de provocar um debate mais amplo do que a mera repetição do tema “Fé e Política”, que parece pautar simplesmente a redução da política às questões partidária e eleitoral.
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Ainda sobre a sinodalidade. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU