Acaba de ser lançado o livro “Missionários no ambiente digital: em nome de quem?” (Ed. Santuário/Paulinas), de autoria de Moisés Sbardelotto, professor da PUC Minas e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
À luz dos debates em torno do Sínodo sobre a Sinodalidade e com base nos documentos do processo sinodal iniciado em 2021, a obra reflete sobre a missão da Igreja e o papel de cada cristã e cristão nos ambientes digitais.
Essa questão aparece em destaque no Relatório de Síntese da Assembleia Geral do Sínodo de outubro passado e foi escolhido pelo Papa Francisco como um dos 10 temas a serem aprofundados em grupos de trabalho específicos, em vista da próxima Assembleia Geral de outubro deste ano.
Inspirado pelo chamado do Papa Francisco a uma “Igreja em saída missionária”, o livro analisa ainda o fenômeno da influência digital na Igreja. E defende que a missão cristã em rede deve ser entendida, de modo contracultural, como anti-influência digital, evitando a propagação de uma fé desencarnada, individualista e descontextualizada da realidade.
Para isso, propõe o “método Emaús” como um estilo evangelizador que o próprio Jesus encarna em sua prática e que continua válido e muito atual em tempos de redes digitais.
Novo livro aborda o tema da missão no ambiente digital, central nos debates em torno do Sínodo sobre a Sinodalidade (Foto: Divulgação)
Publicamos abaixo o capítulo introdutório e também o sumário do livro.
Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco vem convocando a Igreja a uma “saída missionária”. Esse dinamismo impulsiona a comunidade eclesial principalmente a “sair da própria comodidade e a ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” [1]. Por isso, entre uma Igreja acidentada que sai pelas estradas e uma Igreja doente de autorreferencialidade, o papa não hesita em preferir a primeira. “Entre estas estradas estão também as digitais, congestionadas de humanidade, muitas vezes ferida: homens e mulheres que procuram uma salvação ou uma esperança” [2].
Como veremos ao longo deste livro, a Igreja se encontra atualmente em meio a uma “Reforma digital”, uma verdadeira revolução sociocultural impulsionada pela cultura digital que está provocando também uma transformação religiosa. Com isso, os ambientes digitais não só oferecem os meios para que as pessoas pratiquem de um modo mais autônomo e comuniquem publicamente sua fé em rede, como também para que se interconectem de modo global e instantâneo. Dada a facilidade de acesso e de participação social nos ambientes digitais, as práticas religiosas neles realizadas vêm ressignificando processos basilares da experiência do catolicismo, como a sua própria missão e sua comunhão.
De sua parte, especialmente a partir de 2020, a Igreja assumiu como foco de sua reflexão justamente a “sinodalidade”, o “caminhar juntos” (syn + odos, no grego) em meio a essa “mudança de época”, como reitera Francisco. Em março daquele ano, foi anunciada a convocação pelo pontífice de um novo Sínodo dos Bispos, a assembleia consultiva de representantes do episcopado e de membros da Igreja Católica em geral, voltada a ajudar o papa no governo da Igreja. O tema escolhido pelo papa foi “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Em seu discurso inaugural desse processo sinodal em outubro de 2021, Francisco afirmou que se trata de “uma grande oportunidade para a conversão pastoral em chave missionária” e, citando o teólogo francês Yves Congar, explicou: “Não é preciso fazer outra Igreja; é preciso fazer uma Igreja diferente” [3].
O processo sinodal contemplava duas sessões da Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizadas no Vaticano em outubro de 2023 e em outubro de 2024. A preparação para essas sessões foi bastante inovadora em relação aos Sínodos anteriores, tendo sido subdivida em três fases distintas: a fase diocesana, de outubro de 2021 a abril de 2022, que promoveu um grande e inédito processo de escuta dos fiéis nas dioceses do mundo inteiro; a fase continental, de setembro de 2022 a março de 2023, na qual foram realizadas assembleias das Conferências Episcopais dos diversos continentes; e a fase da Igreja universal, ou seja, as duas sessões da Assembleia Geral do Sínodo, no Vaticano, ambas com a presença de mais de 400 delegadas e delegados do mundo inteiro.
Francisco já deixou claro que “o caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio” [4]. A sinodalidade, portanto, deve se manifestar como o estilo em que a Igreja vive e atua em seu cotidiano. Uma Igreja sinodal, no desejo do papa, é “um lugar aberto, onde todos se sintam em casa e possam participar”. É ainda uma “Igreja da escuta”, que ouve os apelos do Espírito e também dos irmãos e das irmãs, a partir dos sinais que provêm das realidades locais. Por fim, é uma “Igreja da proximidade”, que se baseia no próprio estilo de Deus, que é compaixão e ternura, a fim de estabelecer laços de amizade mais fortes com a sociedade, “uma Igreja que não se alheie da vida, mas cuide das fragilidades e pobrezas do nosso tempo, curando as feridas e sarando os corações dilacerados com o bálsamo de Deus” [5].
Uma Igreja sinodal, portanto, é uma Igreja profundamente comunicativa. Missão, participação e comunhão são processos fundamentalmente comunicacionais. E hoje, em tempos de “Reforma digital”, a Igreja se encontra em meio a uma efervescência de novas linguagens, práticas e tecnologias comunicacionais. Nesse sentido, os ambientes digitais adquirem uma relevância muito significativa frente ao desafio de “caminhar juntos” em missão, em comunhão e com participação.
Essa preocupação aparece nas diversas fases do Sínodo e nos vários documentos compilados pela Secretaria Geral no processo sinodal. Nas fases diocesana e continental, realizou-se ainda um inédito “Sínodo digital”, como passou a ser chamado oficialmente. Esse projeto-piloto buscou promover a reflexão sinodal nas principais redes e plataformas digitais. Por sua vez, a primeira sessão da Assembleia Geral enfatizou justamente os “Missionários no ambiente digital” como título de um dos 20 capítulos de seu Relatório de Síntese sobre as principais questões abordadas. E a “missão no ambiente digital” também foi o tema escolhido pelo próprio Papa Francisco para ser aprofundados por um dos 10 grupos de trabalho solicitados por ele em preparação à segunda sessão da Assembleia Geral.
Se, então, a sinodalidade é o “modo de vida” característico da Igreja, e se a cultura digital é hoje um ambiente de vida das sociedades contemporâneas, essa inter-relação precisa ser pensada e praticada de forma consciente e crítica. Isso envolve o discernimento das possibilidades e também dos limites, tanto do ponto de vista da cultura digital em geral, quanto da atuação dos “missionários digitais” em particular, segundo uma perspectiva sinodal da Igreja.
Por isso, neste livro, aprofundaremos, primeiramente, qual é, afinal, a missão da Igreja, seja nos ambientes digitais ou fora deles, com base na sabedoria do próprio magistério eclesial (capítulo 1).
Em seguida, reconheceremos o território desses ambientes a partir de um olhar sociocultural e de uma análise poítico-econômica (capítulo 2), a fim de explorarmos os efeitos da “Reforma digital” sobre a própria Igreja (capítulo 3).
Com isso, valendo-nos dos “frutos maduros” do amplo esforço eclesial do mundo inteiro presentes nos documentos do processo sinodal, poderemos examinar as reflexões e desdobrar as questões ainda em aberto sobre a “missão nos ambientes digitais”, tanto do ponto de vista de suas sombras e limitações, quando de suas luzes e possibilidades (capítulo 4).
A partir disso, refletiremos sobre o fenômeno contemporâneo da influência digital que afeta também a Igreja, propondo, por outro lado, que a missão cristã seja um esforço de anti-influência digital (capítulo 5).
Por fim, apresentarei aquilo que chamo de “método Emaús”, um estilo evangelizador que o próprio Jesus nos ensinou em sua prática e que continua válido e muito atual para estes tempos de redes digitais (capítulo 6).
Espero, assim, dar minha pequena contribuição ao debate, à luz do sonho do Papa Francisco com uma “opção missionária capaz de transformar tudo”, a fim de que a pastoral “em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta” [6].
1. Francisco. Exortação apostólica pós-sinodal Evangelii Gaudium [= EG], n. 20.
2. Francisco. Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, 2014.
3. Francisco. Discurso no momento de reflexão para o início do percurso sinodal, 9 out. 2021.
4. Francisco. Discurso na comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 out. 2015.
5. Francisco, cit., 2021.
6. EG 27.