01 Novembro 2023
A perspectiva de um “nós” comunitário que não se centre em um único “eu” individual nem se referencie unicamente a ele é fortemente contracultural em tempos de redes digitais. E isso constitui um grande desafio à luz da sinodalidade.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, professor da PUC Minas, atuando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e no Programa de Pós-Graduação Profissional em Teologia Prática, e coordenador do Grupo de Reflexão sobre Comunicação da CNBB (Grecom/CNBB).
O relatório de síntese da primeira assembleia do Sínodo sobre a Sinodalidade foi publicado, e muitos comentários vêm sendo feitos sobre os vários aspectos de suas quase 40 páginas, cinco seções e 20 tópicos “considerados prioritários” (Introdução, p. 3).
Gostaria aqui de contribuir com esse debate, focando-me em um tema que aparece na terceira seção, dedicada ao desafio de “Tecer laços, construir comunidade”. Trata-se do item 17, intitulado “Missionários no ambiente digital”.
Nesse item, o relatório de síntese afirma a convergência entre os membros sinodais de que a cultura digital é uma “mudança fundamental” na percepção e na experiência contemporâneas de si mesmo, da relação com os outros e com o mundo. E, portanto, um desafio também à Igreja.
Essa convergência ganha ainda mais significado ao se reiterar que “o dualismo entre real e virtual não descreve adequadamente a realidade e a experiência de todos nós” (17a). Por isso, a síntese sinodal reconhece que a cultura digital “não é tanto uma área distinta da missão, mas sim uma dimensão crucial do testemunho da Igreja na cultura contemporânea” e, portanto, “reveste-se de um significado particular em uma Igreja sinodal” (17b).
Para caminhar juntos não apenas como Igreja, mas também como sociedade em geral, é preciso levar em conta macroprocessos sociais contemporâneos como a digitalização e a midiatização, que ressignificam não somente o socius, mas também a própria noção de sacrus e religio. A Igreja não pode se conceber meramente (ou altivamente) como uma “observadora participante” de tais processos, pois ela é perpassada e embebida por práticas digitais diversas, que, inclusive, desdobram novos significados para a própria ideia de “comunhão, participação e missão”.
Se a cultura digital é entendida como uma dimensão crucial do testemunho da Igreja, a leitura eclesial, contudo, ainda está ligada a concepções geográficas e espaciais das práticas digitais, que podem empobrecer os desdobramentos pastorais. O relatório de síntese, ao falar da cultura atual “em todos os seus espaços”, recorre à imagem dos missionários que sempre “partiram com Cristo para novas fronteiras” (17c). Essa concepção de uma Igreja “aqui” e de uma cultura “acolá”, além de ignorar a complexidade da própria cultura digital, que borra as fronteiras existentes, soma-se a uma compreensão e a uma identificação de tal cultura apenas com “celulares e tablets” (17c), negligenciando linguagens, lógicas e cosmovisões que vão muito além de tais materialidades tecnológicas.
Segundo a síntese, o Sínodo também convergiu no sentido de que “não podemos evangelizar a cultura digital sem antes tê-la compreendido” (17d). Na frase seguinte, o texto começa a falar dos jovens – especialmente os seminaristas, os jovens padres e os jovens consagrados e consagradas –, dando a impressão de que eles também precisariam de tal esforço de compreensão. Mas não. Pelo contrário, o relatório os apresenta como aqueles que praticamente não precisam se esforçar para compreender essa cultura, pois teriam uma “experiência direta profunda” dela e, assim, seriam os “mais aptos a levar adiante a missão da Igreja no ambiente digital”, pois supostamente teriam uma “maior familiaridade com as suas dinâmicas”.
Esse viés de leitura também pode ser um risco do ponto de vista pastoral, ligado à concepção de “nativos digitais”, que aparece no início dessa seção (cf. 17a). Segundo essa leitura, crianças, jovens e adolescentes contemporâneos estariam naturaliter inculturados digitalmente. O que, entretanto, é uma falácia: “cultura” é muito mais do que o uso de aparatos tecnológicos e o domínio de certas técnicas e/ou linguagens. Habitar a cultura digital não significa necessariamente compreendê-la. Há todo um universo simbólico, de valores, de sentidos e também de práticas que não surgem por processos espontâneos ou naturalmente, mas demandam formação e intercâmbio intergeracional, particularmente do ponto de vista de uma “Tradição viva” (como o próprio relatório reconhece desde suas primeiras páginas, nos itens 1f e 1o).
Entre as “questões a serem enfrentadas” do ponto de vista digital, o texto destaca especialmente os danos e as feridas que podem ser causados via internet, citando o bullying, a desinformação, a exploração sexual e a dependência tecnológica. Por isso, pede que a comunidade cristã reflita sobre como tornar o espaço on-line “não apenas seguro, mas também espiritualmente vivificante” (17f).
Aqui, o texto se confronta com a própria realidade intracatólica, em que certos ambientes digitais abordam a fé “de modo superficial, polarizado e até carregado de ódio” (17g), contribuindo, portanto, com a própria insegurança digital denunciada no ponto anterior. O desafio principal, nesse sentido, é “garantir que a nossa presença on-line constitua uma experiência de crescimento para aqueles com quem nos comunicamos” (17g).
Outra questão grave a ser enfrentada, segundo a síntese sinodal, são justamente as “iniciativas apostólicas on-line [que] têm um alcance e um raio de ação que se estende para além dos das fronteiras territoriais tradicionalmente entendidas” (17h). A questão em aberto para a próxima assembleia sinodal, conforme o relatório, é justamente como regulamentar tais iniciativas e a qual autoridade eclesiástica compete a sua vigilância. É uma questão séria, e é por isso que uma concepção geográfico-espacial das práticas e digitais não faz sentido e é prejudicial para a própria ação evangelizadora. Isso porque tais práticas e redes justamente atravessam e simplesmente desconhecem quaisquer “fronteiras” e “territorialidades” eclesiásticas.
Um exemplo disso foi o decreto emitido recentemente por uma diocese amazônica, no qual o bispo local informava que não desejava ter “aqui na área da prelazia” um presbítero cuja atuação digital é bastante reconhecida (embora controversa), somando mais de três milhões de seguidores no Instagram e mais de quatro milhões no YouTube. Segundo o bispo, a “forma de ‘evangelização’ [desse padre] não está de acordo com o nosso caminho de Igreja na prelazia”, devido ao “devocionismo” e à “espiritualidade desencarnada” promovidas por tal presbítero.
A medida é totalmente justa e cabível. Entretanto, rebatendo essa medida, outro padre influenciador digital, de outra diocese, postou uma réplica em suas redes, afirmando entre outras coisas:
“Em tempos de internet e redes sociais, proibir a presença física de alguém é irrelevante, já que através do celular, todo mundo chega em todo canto, sem precisar de permissão. [...] Quem proíbe de pregar numa igreja para 200 pessoas não consegue proibir de falar para milhões na internet [...]”.
Como se percebe, entram em xeque aqui noções como autoridade e comunidade, assim como colegialidade e sinodalidade. Por um lado, o bispo tem plena jurisdição sobre o território de sua diocese, que, por sua vez, tem fronteiras geográficas claras. Entretanto, presbíteros incardinados em outras dioceses ultrapassam tais barreiras digitalmente, em muitos casos realizando uma verdadeira “invasão” eclesial, promovendo outros estilos de ser Igreja (nem sempre aceitos e aceitáveis) no interior de outra Igreja local. O bispo, porém, nada pode fazer institucionalmente a respeito dessa “invasão”. Exceto pela via colegial, solicitando que o coirmão bispo responsável pelo presbítero em questão tome medidas para evitar ou minimizar o impacto de tais “invasões” ou até para punir excessos cometidos por tais clérigos – mas, mesmo assim, há muitos “poréns” quanto à efetividade de tais medidas.
Além disso, tais medidas podem até funcionar para as relações no interior do clero, mas o que fazer perante as “invasões” promovidas por leigos e leigas? Quem tem (ou pode ter) jurisdição e autoridade sobre certos “lobos selvagens” da internet católica, que “mordem” toda e qualquer pessoa ou comunidade que vive a fé de um modo diferente? Será que também na Igreja “liberdade de expressão” pode se tornar sinônimo de “liberdade de agressão” (velada ou explícita)?
As questões, aqui, se sobrepõem. Como ser verdadeiramente sinodais em tempos de internet? Qual o papel dos bispos, individualmente e como colégio reunido em conferência episcopal, perante certos excessos digitais marcados por superficialidades, polarizações e expressões de ódio, como denuncia o relatório de síntese, frequentemente por parte de membros do próprio clero?
Ao mesmo tempo, aparece um paradoxo no ponto 17i, no qual a síntese sinodal fala das “implicações da nova fronteira missionária digital para a renovação das estruturas paroquiais e diocesanas existentes”. Fala-se até da necessidade de “evitar permanecer prisioneiros da lógica da conservação e liberar energias para novas formas de exercício da missão”. Não fica claro se o texto está considerando as estruturas paroquiais e diocesanas como “prisões” que explicitam tal lógica da conservação e se estaria entendendo os ambientes digitais como capazes, por si sós, de liberar energias novas para novas formas de exercício da missão.
Sem dúvida, repensar a estrutura paroquial, definida a partir de fronteiras geográficas, é crucial nestes tempos de des/reterritorialização promovida pelos espaço-fluxos das redes digitais. Mas a renovação de tais estruturas não se dará pelo mero investimento (simbólico ou financeiro) em tecnologias e ações digitais. Antes, é preciso um investimento sério e articulado no desenvolvimento de concepções teológicas, eclesiológicas e pastorais na linha da própria sinodalidade, que deem conta dos novos ambientes de vida, complexos e híbridos, da contemporaneidade. Que, por sua vez, envolvem aquilo que se faz em frente a uma tela, mas absolutamente não se restringem a isso.
No ponto 17k, ao comentar os efeitos da pandemia de Covid-19, por exemplo no sentido de estimular a criatividade pastoral on-line, a síntese sinodal aponta que muitos jovens teriam abandonado os “espaços físicos da Igreja em que tentamos convidá-los em favor dos espaços on-line”. Por isso, afirma serem necessários “modos novos para envolvê-los e lhes oferecer formação e catequese”. A questão é se esses jovens abandonaram apenas os “espaços físicos” da Igreja, mantendo-se presentes nos “espaços on-line” eclesiais, ou se eles abandonaram todo e qualquer espaço “da Igreja”.
De fato, evidencia-se cada vez mais uma busca de experiências religiosas deliberadamente não vinculadas a uma Igreja considerada pelas juventudes como incoerente e anacrônica, ou ainda a busca de experiências não necessariamente religiosas em outros ambientes socioculturais (físicos ou on-line que sejam), a fim de encontrar sentido para a vida. O relatório de síntese, porém, continua enfatizando uma dualidade entre “físico” e “on-line”, quando a questão parece ser muito mais grave. Isso não apenas no sentido de uma opção dualística entre um espaço (a ser abandonado) por outro, mas sim da busca de outras opções que vão muito além das ofertas eclesiais e até cristãs e religiosas em geral, em que as experiências on-line são apenas um sintoma e a ponta de um “iceberg” muito maior e mais profundo.
A síntese sinodal finaliza o item 17 propondo que as Igrejas ofereçam “reconhecimento, formação e acompanhamento aos missionários digitais já operantes, facilitando também o encontro entre eles” (17l). Sabemos que essa proposta é realmente necessária e cada vez mais urgente, mas igualmente desafiadora.
Muitos influenciadores digitais que se dizem católicos evitam toda e qualquer experiência de partilha comunitária da missão em rede, pois seu foco está apenas em sua própria visibilidade pessoal, convertida em elevadas métricas digitais, geralmente muito lucrativas. A perspectiva de um “nós” comunitário que não se centre em um único “eu” individual nem se referencie unicamente a ele é fortemente contracultural em tempos de redes digitais.
Ao contrário do título do já clássico livro da psicóloga estadunidense Sherry Turkle “Alone Together” (sozinhos juntos), existem inúmeros influenciadores digitais da fé que optam por realizar uma missão “together alone” (teoricamente juntos, mas intencionalmente sozinhos). Isto é, supostamente comungam da mesma fé, mas, na prática, buscam sua independência das comunidades e instituições eclesiais existentes, exacerbam sua autonomia em relação às autoridades religiosas, criam suas próprias igrejas à sua própria imagem e semelhança. Nessa “comunhão solitária”, quem não comunga comigo não é digno de mim, e, portanto, está excomungado e deve ser também excomunicado – inclusive o bispo local ou o próprio papa.
Pelo contrário, a comunhão cristã só é possível ao menos quando há abertura e reconhecimento recíprocos da dignidade cristã e do papel eclesial das pessoas envolvidas. O “nós” eclesial envolve uma “comum união” com todo o Povo de Deus, em sua complexa diversidade, mas principalmente com seu magistério – particularmente do papa, dos bispos quando se pronunciam colegialmente e do bispo local no interior da jurisdição que lhe compete. De modo particular, esse “nós” se expressa no testemunho de irmandade e amor entre aquelas pessoas que se apresentam publicamente como cristãs: “Se vos amardes uns aos outros...” (Jo 13,35).
A proposta final do relatório de síntese, no sentido de “criar redes colaborativas de influenciadores que incluam até pessoas de outras religiões ou que não professam fé nenhuma” (17m), também parece bastante interessante, principalmente na busca de promover a dignidade da pessoa humana, da justiça e do cuidado da casa comum, como aponta o texto. Esse “ecumenismo digital” para além das fronteiras católicas parece ser muito mais viável e produtivo para a colaboração entre as pessoas de boa vontade engajadas com esses desafios pastorais do nosso tempo.
Pelo contrário, a construção de redes de influenciadores digitais unicamente católicos, dado o nível de polarização e individualização existente no interior da Igreja hoje, particularmente no Brasil, demandaria um esforço muito maior, assim como um reforço muito maior daquilo que, em tese, deveria orientar a “performance digital” católica: fidelidade e obediência aos Evangelhos, à “Tradição viva” da Igreja, ao “espírito e letra” do Concílio Ecumênico Vaticano II, ao magistério do Papa Francisco e ao dos bispos quando se pronunciam de modo colegial como CNBB. Parece muito, mas, na verdade, é o “mínimo denominador comum”, que, infelizmente, acaba sendo confundido e substituído por teologias e eclesiologias mais convenientes.
Enfim, o caminho, a reflexão e o debate sinodais continuam. O relatório de síntese apresenta uma grande panorâmica sobre as várias questões em jogo hoje, sem respostas prontas. Agora, é preciso um aprofundamento discernente a partir de uma reflexão teológica e das várias ciências à altura dos tempos. Desse modo, os desafios contemporâneos, como a cultura digital, podem ser abordados não apenas a partir de “convergências”, “questões” em aberto e “propostas” eclesiais teóricas, mas também podem encontrar, por parte da Igreja, ações e decisões concretas e práticas frente à complexidade da realidade de hoje – que avança em uma “rapidação” (Laudato si’, n. 18) cada vez maior, não apenas do ponto de vista tecnológico, mas principalmente sociocultural e comunicacional.
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Missionários digitais: como conectar individualidade e sinodalidade? Artigo de Moisés Sbardelotto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU