16 Julho 2024
O artigo é de José Arregi, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 12-07-2024.
Não esperava que este quarto Sínodo do pontificado de Francisco, assim como os três primeiros, fosse dar nenhum passo decisivo no caminho da irrenunciável e urgente reforma institucional da Igreja Católica Romana. Visto o que foi visto, não esperava que fosse cumprir a condição indispensável de uma tal reforma: a supressão do obstáculo estrutural decisivo, a saber, o modelo clerical hierárquico. O Instrumentum Laboris que acaba de ser publicado me reafirma no meu ceticismo: o clericalismo continua intacto e fechado, e condena o Sínodo a um beco sem saída.
Explico-me. Neste documento que servirá de base de reflexão para a segunda sessão ordinária dos bispos no próximo mês de outubro, continuam a distinguir e separar claramente dois tipos de serviços e poderes na Igreja: os “ministérios” e poderes que dependem da decisão comunitária (histórica, contingente, variável) e os que dependem da vontade divina (eterna, absoluta, imutável). Os primeiros são ministérios e poderes comuns, vêm de “baixo”, e qualquer batizado adulto pode desempenhá-los, se a comunidade o nomear. Os segundos são ministérios e poderes superiores, “ordenados” (diáconos, sacerdotes e bispos), vêm de “cima”, são conferidos por Deus aos seus “escolhidos” (em grego, klerikói) através de um rito ou sacramento de “ordenação” validamente executado por um bispo; estes ministérios superiores somente podem ser desempenhados por homens, e conferem exclusivamente o poder de absolver os pecados e de presidir a eucaristia ou missa, convertendo o pão e o vinho em “corpo e sangue” de Jesus.
Assim têm sido as coisas nas Igrejas dependentes de Roma desde os séculos III-IV, não certamente desde Jesus, e assim seguiram na Idade Média, e no Concílio de Trento (século XVI) contra a Reforma Protestante, e no Concílio Vaticano I (1869) contra a Modernidade. E assim continuaram no Concílio Vaticano II (1962-1965), apesar de alguns tímidos intentos de reforma. O mesmo têm continuado durante os 11 anos do pontificado do papa Francisco com seus três sínodos. E, no fundo, tudo segue igual no Instrumentum laboris para a segunda sessão ordinária do Sínodo sobre a sinodalidade em curso (e já vai para três anos).
Não nos enganemos: nada mudará na instituição eclesial. Ou sim: em um mundo que muda a um ritmo que assusta, em uma humanidade que busca sobreviver como pode diante de tanto poder opressivo e do alarmante desenvolvimento da Inteligência Artificial, a Igreja institucional continuará repetindo velhos moldes vazios, formas e palavras sem alma nem vida. “Sínodo” significa “caminhar juntos”, mas este Sínodo sobre a Sinodalidade nem sequer levantará a possibilidade de que, nem agora nem nunca, se derrogue nesta Igreja a lei humana que separa e segrega, que consagra o domínio e a subordinação. A lei canônica, antievangélica, que impede que possamos realmente caminhar juntos. O sínodo, mais uma vez, continuará dando voltas no mesmo beco. Jesus nos diria o mesmo que dizia aos clérigos legalistas de seu tempo: “Deixais de lado o mandamento da Vida (Jesus lhe chama 'Deus', eu também o faço) e vos apegais à tradição dos homens” (Mc 7,8).
O texto formula certamente critérios gerais acertados e muitos bons propósitos. Por exemplo: a bela chamada “a nos acompanharmos uns aos outros como Povo de peregrinos que percorre a história rumo a um destino comum” (Introdução), a afirmação da “identidade mística, dinâmica e comunitária do Povo de Deus” (n. 1), o reiterado apelo ao diálogo, à escuta e ao discernimento compartilhado, a necessidade de uma “conversão sinodal” (Introdução), uma “conversão das relações e das estruturas” (n. 14), o convite a “refletir concretamente sobre as relações, as estruturas e os processos que podem favorecer uma visão renovada do ministério ordenado, passando de um modo piramidal de exercer a autoridade a um modo sinodal” (n. 36).
Muito bem. O que acontece é que esses critérios e propósitos estão não apenas contrabalançados, mas de fato bloqueados pela afirmação de outra instância última, inapelável: a instância clerical. E aí não se vislumbra nenhum avanço neste documento. Em nenhum momento reivindica, nem sequer sugere, a abolição – indispensável e possível – do vigente modelo clerical, piramidal, autoritário e patriarcal da instituição eclesial. De modo que não há brechas para uma conversão estrutural radical da Igreja. Afirma, é claro, que a autoridade deve ser exercida como serviço e que é preciso “favorecer uma visão renovada do ministério ordenado, passando de um modo piramidal de exercer a autoridade a um modo sinodal” (n. 36).
Mas nunca coloca em questão o modelo hierárquico clerical como tal. Insiste também que a autoridade deve ser exercida com “transparência e prestação de contas” (n. 74, 75, 78, 92), mas não questiona de onde ou de quem provém a autoridade nem propõe meios para um controle efetivo de seu exercício. As condições democráticas elementares de legitimidade da autoridade na Igreja brilham por sua ausência. A palavra democracia não é conhecida. A transparência e a prestação de contas são cruciais, mas serão quimeras enquanto o sistema clerical permanecer intacto, enquanto a potestade primeira e a última palavra, emanadas de cima, pertencerem à hierarquia. É a hierarquia que escolhe a hierarquia e se considera a si mesma como eleita por Deus. Fecha-se em círculo.
O texto deixa isso muito claro: “A sinodalidade não supõe de modo algum a depreciação da autoridade particular e da tarefa específica que Cristo mesmo confia aos Pastores: os Bispos com os Presbíteros, seus colaboradores, e o Romano Pontífice como ‘princípio e fundamento perpétuo e visível da unidade tanto dos Bispos quanto da multidão dos Fiéis’” (n. 8, citando a Constituição Lumen Gentium, 23). (O mesmo se repete nos n. 10, 37, 38, 69, 88, 101…). Para quem ainda tiver alguma dúvida: “Em uma Igreja sinodal, a competência decisória do Bispo, do Colégio episcopal e do Romano Pontífice é inalienável, pois tem suas raízes na estrutura hierárquica da Igreja estabelecida por Cristo” (n. 70). Está dito.
Não há melhor reflexo nem pior efeito do clericalismo sacralizado e inamovível do que o lugar e o papel que se reconhece à mulher na Igreja. E o que diz o Instrumentum laboris a esse respeito me parece algo patético. Insiste na “necessidade de dar um reconhecimento mais pleno aos carismas, à vocação e ao papel das mulheres em todas as esferas da vida da Igreja” (n. 13), defende “uma participação mais ativa da mulher em todos os âmbitos eclesiais" (n. 15), “um acesso mais amplo aos postos de responsabilidade nas dioceses e nas instituições eclesiásticas”, até mesmo “um aumento do número de juízas nos processos canônicos” (!), mas tudo isso “de acordo com as disposições existentes” (n. 16) (clericais, claro). Apenas surge uma referência, muito breve, à “admissão das mulheres no ministério diaconal”, para dizer que não há acordo a esse respeito, que “essa questão não será objeto dos trabalhos da Segunda Sessão” do Sínodo (devemos entender que o Sínodo é para tratar sobre aquilo em que todos estão de acordo?) e que... “é bom que continue a reflexão teológica” (n. 17).
Doutores tem a Igreja que saberão responder-vos. E aumenta minha perplexidade ao constatar que a pedra de toque do clericalismo, a questão da “ordenação sacerdotal” da mulher, nem sequer é mencionada no documento, quando esteve presente em todas as mesas, paróquias, países e continentes, em todas as etapas, fases e relatórios. Que cada um interprete como quiser. Pessoalmente, nos números sobre o papel da mulher na Igreja, percebo certo tom de má consciência, como se os redatores (presumo que quase todos clérigos) nos dissessem: “Perdão, sentimos muito, mas assim o quis Cristo, assim o quer Deus”. Como eles sabem disso?
Assim temos estado por décadas, séculos e milênios, presos no beco sem saída do clericalismo. Não será possível um verdadeiro sínodo, um caminho compartilhado, uma Igreja de irmãs e irmãos, livres e iguais, enquanto não se derrubar o muro, o sistema, o modelo clerical. E este Instrumentum laboris não o rompe, nem o questiona, nem sequer o olha, apesar de usar duas vezes o termo “clericalismo” e até denunciar seus “efeitos tóxicos” (n. 35; cf. n. 75).
Mas o Espírito (grande ausente deste documento) não se deixa possuir nem se deixa aprisionar. O Espírito vibra no coração de todos os seres sem exceção e sem exclusão. O Espírito é o verdor da vida, o movimento, a relação, a criatividade universal, a novidade permanente. O Espírito atravessa todos os credos e sistemas, muros e muralhas, e abre incessantemente novos caminhos de luz e de alento.
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O Sínodo em um beco sem saída: o clericalismo continua intacto e fechado. Artigo de José Arregi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU