Sim, aqueles que defendem o retorno à tradição não estão totalmente equivocados. É preciso voltar com urgência às raízes da Igreja do Vaticano II, tempo fecundo de refundação de um seguimento cristão comprometido com a vida do povo, principalmente, com os deserdados da terra. E entre os Padres da Igreja Latino-Americana estão duas figuras fundamentais e inspiradoras, o chileno Dom Manuel Larraín Errázuriz (1900-1966) e o brasileiro Dom Hélder Pessoa Câmara (1909-1999). Amigos fiéis, trabalharam juntos por uma Igreja renovada e mais próxima de Jesus.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Em tempos de extremismos políticos, em que uma ultradireita neofacista parece avançar implacável em todo mundo, no cenário eclesial, apesar da primavera bergogliana, a reação dos setores conservadores é intensa. O Papa, que tomou seu nome do Pobrezinho de Assis, há mais de uma década vem insistindo em uma “Igreja pobre e para os pobres”, como disse seu predecessor São João XXIII. Entretanto, como não se via desde antes do advento do Concílio Vaticano II, explodiu o número de jovens padres e seminaristas fechados nas sacristias e encantados pelo mundo das rendas litúrgicas.
Com raras e valiosas exceções, o episcopado, no mesmo sentido, parece mais preocupado com questões administrativas internas do que com a vitalidade de um cristianismo em saída. Alguns falam em um “cisma branco”, em que a preocupante maioria das autoridades eclesiásticas se não entra em confronto direto com o magistério de Francisco, segue ignorando solenemente suas orientações. Afinal, basta se perguntar pelos bispos que ainda falam “com autoridade” nas questões mais importantes da sociedade? Ou então se estará a Igreja relegada a uma irrelevância de meras práticas piedosas de caráter privado?
Sim, aqueles que defendem o retorno à tradição não estão totalmente equivocados. É preciso voltar com urgência às raízes da Igreja do Vaticano II, tempo fecundo de refundação de um seguimento cristão comprometido com a vida do povo, principalmente, com os deserdados da terra. E entre os Padres da Igreja Latino-Americana estão duas figuras fundamentais e inspiradoras, o chileno Dom Manuel Larraín Errázuriz (1900-1966) e o brasileiro Dom Hélder Pessoa Câmara (1909-1999). Amigos fiéis, trabalharam juntos por uma Igreja renovada e mais próxima de Jesus.
Natural de Santiago, Manuel Larraín estudou no tradicional Colégio Santo Inácio. Entre seus amigos estava o futuro padre jesuíta Alberto Hurtado, com quem também cursou Direito na Universidade Católica. Nessa época houve uma grande crise social causada pelo fechamento das salinas, no norte do pais. Os trabalhadores dessas minas foram para a capital em busca de solução para o problema, lotando os albergues da cidade. Sensíveis ao drama dos mineiros, Larraín e Hurtado vão visitá-los e expressar sua solidariedade em face das injustiças sofridas.
Esse contato com o mundo dos empobrecidos vai marcar fortemente a história do futuro bispo. “Minha vocação ao sacerdócio, sendo estudante universitário, nasceu de conhecer a miséria material e moral de nosso povo e do convencimento de que só a Doutrina Social da Igreja, plenamente conhecida e aplicada”, aponta Larraín “pode colocar o nosso pobre povo naquele ‘mínimum de bem-estar material’ que Santo Tomás disse ser necessário para a prática da virtude” (carta ao Núncio Mario Zanin, 15 de janeiro de 1948).
Com Santo Alberto Hurtado, companheiro de toda vida, sonhou um cristianismo na linha de frente da luta pela justiça social. Sem dúvida, ambos foram fogos que acenderam outros fogos, contagiando aqueles que lhes conheceram. Convidado para fazer a homilia do funeral do jesuíta, em 1952, as palavras dirigidas ante a partida de seu querido amigo, também revelam suas profundas convicções pessoais. Entusiasta do Ensino Social da Igreja, o bispo chileno percebia as oposições enfrentadas, ontem e hoje, no seio das paróquias e movimentos eclesiais sobre a aliança com os empobrecidos:
“O Padre Hurtado compreendeu plenamente o que a Doutrina Social da Igreja contém e representa. Sabia bem claro que o Cristianismo ou era social ou não era. Com seu realismo de Apóstolo genuíno, viu o que SS. Pio XI chamara ‘o grande escândalo do século XX; os trabalhadores afastados de sua Mãe a Igreja’ e com outro grande Apóstolo moderno, sentiu que ‘a Igreja sem a classe operária não é a Igreja de Cristo’. E a curar esta grande chaga se deu por inteiro a essa sua transcendente e vasta missão social. Deu sua mente e o fruto dela foram as suas obras de sociologia, que serviram para recordar os grandes postulados sociais da Igreja e a urgir aos católicos a sua aplicação”.[1]
Importante destacar a influência daquele que vai ficar conhecido como o grande apóstolo chileno do catolicismo social, o padre Fernando Vives, S.J. Professor de História no colégio jesuíta, vai marcar uma geração de alunos com uma forte sensibilidade para com as questões sociais. Padre Vives (1871-1935) sofreu uma intensa perseguição da elite conservadora e teve que deixar o Chile, vivendo quatorze anos na Europa. Mas, apaixonado pelo Ensino Social da Igreja, nunca deixou de se dedicar aos excluídos da sociedade. Seus frutos apostólicos floresceram e alguns de seus discípulos, entre eles Manuel Larraín e Alberto Hurtado, superaram o mestre.
Professor universitário e pró-reitor da Universidade Católica por oito anos, Dom Larraín cultivou uma robusta vida intelectual, que o preparará para assumir papéis de liderança entre o episcopado nacional e da América Latina. Nomeado bispo-coadjutor de Talca com apenas 38 anos, tornou-se um personagem imprescindível para compreender a história da Igreja no século XX.
No seu discurso de chegada à nova diocese, o jovem pastor já mostrava o seu comprometimento com os explorados e marginalizados, em uma clareza difícil de encontrar atualmente. Talca era uma região fortemente agrícola, com alta concentração de terra e grandes proprietários. Todavia, Dom Larraín irá romper com essa aliança histórica entre a Igreja e os latifundiários, colocando-se ao lado dos trabalhadores oprimidos. Será, pois, o prenúncio de um pastoreio que será marcado pelo apoio a Democracia Cristã, ao sindicalismo agrícola engajado e a tão almejada reforma agrária, pela qual tantas vezes propugnou:
“Para os trabalhadores, para os que sofrem, para os que levam sobre seus ombros o peso do dia e do calor, para os pobres de Cristo, os privilegiados de seu Reino e os preferidos de seu coração, os ensinamentos sociais da Igreja, as admiráveis doutrinas de Leão XIII e Pio XI devem ser o arco-íris da esperança que lhes assinale que nelas e por elas não está longe o dia da sua verdadeira redenção. Fazer com que essas doutrinas, que cristão algum pode não ouvir, se incorporem nas consciências, penetrem nas legislações, inspirem os costumes e sobretudo façam dar o abraço de irmãos as classes sociais hoje divididas por egoísmos e ódios destruidores, é uma urgente necessidade ao qual desejo consagrar minhas melhores, mesmo que fracas energias, porque quero a exemplo do Mestre, sejam os pobres a porção mais amada do meu rebanho de Pastor”[2].
Isso mais de vinte anos antes da convocação do último Concílio Ecumênico, o que mostra seu ser inquieto e visionário. Preocupado com os problemas sociais e os impactos causados nas massas marginalizadas, assessorou a Ação Católica Chilena e o seu Secretariado Interamericano (1952-1962). Nessa oportunidade conheceu outra das maiores lideranças eclesiais do continente, aquele que vai ficar conhecido como o ”bispo vermelho”, pela vibrante resistência que opôs à ditadura civil-militar brasileira. Dom Hélder Câmara esteve à frente da Ação Católica Brasileira por longos anos (1948-1962), em um período que o aproximará de Dom Manuelito, como chamava seu homólogo chileno.
O bispo brasileiro fundou e foi secretário-geral (1952-1964) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), exercendo uma grande influência no episcopado local. Feito bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, em 1952, colocou sua imensa capacidade organizativa para realizar o Congresso Eucarístico Internacional e a 1ª Conferência do Episcopado Latino-Americano, em 1955.
Na ocasião, com a articulação da dupla de bispos, fundou-se o Conselho do Episcopado Latino-Americano (CELAM). Ambos irão assumir posições relevantes na nascente organização, chegando Dom Larraín ocupar a presidência (1964-1966) e Dom Hélder a vice-presidência, colaborando na condução da Igreja da América Latina durante o transcurso do emblemático concílio.
A intuição de fortalecer as Igrejas locais frente a uma grande centralização romana provou ser acertada e será posteriormente confirmada pelas reformas conciliares, como se depreende desta percepção de Dom Hélder ainda na primeira sessão: “reafirmo que é fora de dúvida que as Conferências vão sair fortalecidas do Concílio. E se Deus quiser o CELAM ganhará muito na linha da autonomia. (...) Organizam-se os Episcopados, em âmbito continental, não para se trancarem: para dialogar”[3] (18ª Circ., 1/11/1962).
Em preparação para a segunda sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, prevista para acontecer em outubro próximo, ocorreu durante essa semana a divulgação do Instrumentum Laboris, a base para as discussões dos padres e das madres sinodais. Frustrante para alguns, genérico e abstrato demais para outros, o documento pareceu não agradar os especialistas. Convocado pelo Papa Francisco, o sínodo é mais uma iniciativa, entre outras, desde que assumiu em 2013, para promover as mudanças necessárias na Igreja.
O papa jesuíta, defensor convicto do Concílio Vaticano II, vem arduamente procurando possibilitar a sua efetiva implementação, depois de alguns retrocessos dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Por isso, os inimigos do maior evento eclesial do século XX talvez nunca tenham estado tão fortes como nesses tempos. Todavia, vale constatar que as dificuldades impostas pelo conservadorismo de agora já estavam presentes há mais de sessenta anos. E, como se pode ver em uma das famosas cartas circulares que Dom Hélder escrevia diariamente, não foi suficiente para barrar a primavera do Espírito:
“O Concílio vai ser dificílimo. As Sagradas Congregações pensavam que seria fácil pensar pelos Bispos e decidir por eles. Acontece por exemplo que o esquema da parte teológica parece, a muitos Bispos do mundo inteiro, em dissonância com que o Papa anuncia como espírito do Concílio”[4].
Dom Hélder e Dom Larraín tiveram um papel importante na articulação para que os bispos pudessem escolher os 16 membros de cada uma das 10 comissões, rejeitando as listas apresentadas pela Cúria Romana. Integrantes do grupo que se reunia sob a liderança do cardeal belga Suenens, opuseram-se à manobra da Secretaria do evento. Não só nesse ponto, mas durante as quatro sessões do Concílio (1962-1965), os bispos rebeldes foram fundamentais na resistência a um catolicismo retrógrado que insistia em querer controlar a renovação. Na Domus Mariae, local onde se hospedava o episcopado latino-americano, ambos confabularam muitos encontros em que vários sonhos puderam ser tecidos em comum, em meio a jantares e conversas descontraídas até altas horas da noite. Ali se deram, provavelmente, os momentos mais memoráveis!
Sem proferir uma só alocução na aula conciliar, Dom Hélder foi um protagonista fundamental para o avanço das discussões. Sabia que uma visão eurocêntrica soava a autoritarismo e que era preciso catolicizar a Igreja, dando mais liberdade para as conferências de cada país. Afinal, “temos em comum o desejo de universalizar a visão da Igreja; a decisão de evitar que problemas de Continentes tão distantes e diferentes sejam tratados com medidas europeias”[5]. Mal imaginava, que nos pontificados seguintes, muitas incompreensões e sofrimentos seriam infligidos a ele e a uma longa lista de bispos e teólogos da região, porque só se conseguia enxergar sob a ótica de Roma.
Em carta enviada a Dom Manuelito, em 20 de agosto de 1962, o Dom – como Câmara era chamado pelos amigos – fala de um “sonho comum dos dois e do Pe. Houtart” de criar um grupo de peritos de alto nível para auxiliá-los durante o Concílio, com o nome de Opus Angeli ou Ação de Anjos. Conseguiram! Foram assessorados pelos maiores teólogos da época, entre eles, Henri De Lucac, Yves Congar, Hans Küng e Karl Rahner. Seria inimaginável conceber os avanços dessa época sem considerar a relevância das conferências e estudos promovidos pelas mentes mais avançadas do cristianismo de então. Santa ousadia desses bispos-profetas que arriscaram avançar!
Incansável, apesar de sua frágil estrutura física, o futuro arcebispo de Olinda e Recife, tinha uma lucidez invejável e que faz falta nos dias atuais. Incomodado com a ausência de discussão sobre as injustiças sociais, tão avassaladoras em sua amada América Latina, e sem desprezar a importância da renovação litúrgica, Dom Hélder queria ir além dos debates teológico-litúrgicos:
“Mas seria incrível que, ao chegarmos aos nossos países (...), respondêssemos a quem nos perguntasse pelo Concílio: tratamos de Liturgia e de Teologia. Isto é ótimo para nós. O povo, no entanto, se escandalizaria, não sem razão, se não tivéssemos antenas para os problemas gravíssimos que pesam sobre ele”[6].
Sensível às desigualdades sociais que mantinham numa inaceitável miséria grande parte do povo, o bispo nordestino não perdeu tempo: “Larraín e eu vamos tentar uma operação difícil: salvar plenamente o tema Pobreza, mas distingui-lo do tema 3º mundo”[7] (23ª Cir., 4/11/1962). Dom Manuelito estava afinado com os pensamentos e desejos do amigo brasileiro: “se o Concílio não devolve à Igreja seu título de ‘Mãe dos pobres’, a evangelização do Terceiro Mundo – e não nos esqueçamos que dentro dele se encontra o Chile – vai ser terrivelmente freada”.
A ideia – ousada e corajosa – era apresentar uma petição com a assinatura de 2 mil bispos pedindo a criação de uma Comissão específica para tratar do tema. Dom Hélder, homem de profunda fé que vivia longas vigílias nas madrugadas, estava longe de ser ingênuo e mesmo correndo o risco de ser mal interpretado, lançou-se confiante em águas mais profundas, na busca incessante por uma Igreja mais viva e mais humilde:
“Se de repente tudo der para trás; se o que é feito com o mais puro amor à Igreja for mal interpretado; se parecer conspiração, desejo de aparecer, vaidade o que é correspondência ao sopro da graça, ah, então, será a alegria perfeita. Será sinal que Deus nos quis para grão a cair na terra e apodrecer”[8] (24ª Cir., 4-5/11/1962).
Dom Hélder já se deparava com o problema do rigorismo de grupos fundamentalistas que queriam monopolizar a interpretação da vontade divina e impedir os avanços imprescindíveis, tão comum nesse começo do século XXI. Diante da acolhida do Papa Francisco às pessoas LGBTs e a sua firme condenação de quaisquer e inadmissíveis abusos, a reação desses setores reacionários tem sido acusá-lo de heresia e destilarem odiosos ataques pessoais.
Com sagacidade, o então secretário-geral da CNBB, observava que a dureza desses ultraconservadores causava rechaço dos demais, tamanho o extremismo adotado: “Deus tem ajudado de tal modo que os apologetas da imutabilidade se excedem tanto e assumem uma posição tão antipática e antipsicológica que mais têm servido de ajuda que de desserviço”[9] (25ª Cir., 7/11/1962). Assim, dentro dessa lógica helderiana, evidente constatar que a maioria do povo de Deus nutre um especial respeito e um afetuoso apoio ao Papa Francisco.
Àqueles que não conseguem perceber o frescor radical do caminho do Evangelho e advogam pela manutenção do status quo, acusando de “fazer política” os que lutam pelo fim da exploração, deveriam tomar consciência de quão cansativo tem sido esse discurso. Nesse sentido, já reagia Dom Hélder, “estamos certos em não nos apavorar diante do comunismo. (...) Estamos certos em ajudar a deseuropeizar a Igreja, em desprendê-la do passado, em jogá-la para a frente, para o futuro”[10] (27ª Cir., 9/11/1962).
Mesmo porque, “o que me preocupa”, admitiu Dom Larraín, “não é o que os marxistas propugnam, mas se os cristãos somos capazes de fazer em nome da nossa doutrina, as justas e necessárias reformas estruturais que urge realizar”. “Antes de examinar o que os marxistas pretendem fazer, pensemos no que os cristãos temos que fazer... e acrescento, rapidamente; amanhã será tarde”[11]. E a provocação do bispo chileno poderia ser dirigida a alguém em 2024: fizeram ou estão fazendo os cristãos as reformas que deveriam ter sido feitas ou já é tarde demais?
É sempre tempo de rever os caminhos e tomar decisões corajosas. E a Igreja se encontra em um desses momentos definidores que irão marcar a história do cristianismo. Oxalá a próxima sessão do Sínodo possa contar com personalidades inspiradoras como Dom Manuel Larraín e Dom Hélder Câmara. Homens e mulheres que possam falar com a liberdade desses dois padres da Igreja Latino-Americana, que souberam liderá-la com destemor em um momento conturbado como foram as décadas de 1950 e 1960. Mesmo contra toda a desesperança possam os padres e as madres sinodais, como disse o Dom antes de partir desse mundo, “não deixar cair a profecia”! Que não lhes falte a santa teimosia!
[1] DE LA NOI, Pedro. Textos de Manuel Larraín. Santiago: Paulinas, 1976, p. 376.
[2] Idem, p. 315.
[3] CÂMARA, Dom Hélder. Cartas Circulares. Vol. 1, Tomo I. Recife: Cepe, 2015, p. 258.
[4] Idem, p. 124
[5] Id., p. 125.
[6] Id., p. 301.
[7] Id., p. 302.
[8] Id., p. 312.
[9] Id., p. 316.
[10] Id., p. 334.
[11] DE LA NOI, Pedro. Textos de Manuel Larraín. Santiago: Paulinas, 1976, p. 137/138.