E se fossem todos embora as religiosas, os religiosos e os padres LGBTQ+? Artigo de Gabriel Vilardi

Escuta amorosa do papa aos LGBTQ+

29 Mai 2024

Tal qual a mulher siro-fenícia (Mc 7, 24-30), os cristãos queers permaneceram e insistem em ficar, mesmo que seja para comer as migalhas dos cachorrinhos. Tocado por esses testemunhos, o pontífice disse ao chileno vítima dos abusos sexuais: “Juan Carlos, que você é gay não importa. Deus te fez assim e te ama assim, e eu não me importo. O Papa te ama assim. Você precisa estar feliz como você é”. Sim, Deus ama as pessoas LGBTQ+, o Papa ama as pessoas LGBTQ+... Mas por que a Igreja ainda não consegue sequer aceitar os religiosos, as religiosas e os padres queers que buscam o caminho da castidade, tal qual os religiosos, as religiosas e os padres heterossexuais? 

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Eis o artigo.

"Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?”, afirmou corajosamente o Papa Francisco no início do seu pontificado, em julho de 2013. E, nesses quase onze anos, muitas outras declarações e gestos positivos foram feitos em direção aos católicos LGBTQ+, para o horror dos setores conservadores. Entretanto, para surpresa de muitos, em recente encontro reservado com a Conferência Episcopal Italiana (CEI), Bergoglio teria reiterado a proibição de aceitar nos seminários candidatos homossexuais.

A despeito da polêmica sobre o uso consciente ou não de uma expressão com conotação ofensiva, este não se trata do foco principal da questão. Apesar de se reconhecer que pela linguagem se perpetuam discriminações e estigmatizações intoleráveis, nesse caso há o benefício da dúvida em razão do italiano não ser a língua materna do papa. O que causa perplexidade para alguns é como uma pessoa, que tem se mostrado tão aberta à acolhida amorosa dos católicos queers, pode reafirmar um posicionamento tão duro e excludente como esse?

Conforme oportuno texto escrito pelo jesuíta Ty Wahlbrink, em agosto de 2023, muitos movimentos concretos foram feitos pelo papa jesuíta a fim de ajudar a Igreja a ser um espaço amigável para as pessoas LGBTQ+. Mais do que avançar no magistério oficial, foram as atitudes pastorais do pontífice que mudaram a atmosfera eclesial. Entre eles pode-se destacar seu pedido de perdão pelas ofensas causadas pela Igreja às pessoas gays (2016), o apoio dado às uniões civis entre casais do mesmo sexo (2020) e a orientação para que os bispos não apoiem leis que criminalizem a homossexualidade (2023).

Em uma carta manuscrita em espanhol (sem os muitos filtros da Cúria) ao encontro de Pastoral LGBTQ+ Outreach, por meio do padre jesuíta James Martin, Francisco disse que “Deus é Pai e não renega nenhum de seus filhos” pois “o ‘estilo’ de Deus é ‘proximidade, misericórdia e ternura’". Ao professar que a “Igreja é uma mãe e reúne todos os seus filhos”, o papa argentino foi além e denunciou que ‘uma Igreja seletiva’, de ‘puro sangue’, não é a Santa Madre Igreja, mas sim uma seita”. Mãe, não uma malvada madrasta!

Perseguida e condenada ao ostracismo por décadas, a religiosa estadunidense Jeannine Gramick, cofundadora do New Ways Ministry (importante espaço de acolhida a pessoas LGBTQ+ nos EUA), foi “reabilitada” por meio de uma intensa correspondência trocada com o pontífice, que culminou em 2023 com uma, alguns anos antes inimaginada, visita cheia de significados. Em uma dessas cartas, agradecendo o apostolado de Ir. Gramick, Francisco reconheceu: “você não teve medo da proximidade e na proximidade você ‘sentiu a dor’ e sem condenar ninguém, mas com ‘ternura’ de uma irmã e uma mãe’”.

No final do ano passado veio a declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé Fiducia Supplicans em que se autorizou as bençãos aos casais do mesmo sexo. Uma verdadeira brecha para alguns, uma posição de coragem para outros, a medida trouxe esperança para a comunidade católica queer. Em entrevista a revista Credere, no dia 8 de fevereiro, o jesuíta foi firme às reações histéricas dos fiscais da moral e dos bons costumes:

"Os pecados mais graves são aqueles que se disfarçam com uma aparência mais 'angelical'. Ninguém se escandaliza se eu abençoo um empresário que talvez explore as pessoas: e isso é um pecado muito grave. Enquanto se escandaliza se eu abençoo um homossexual... Isso é hipocrisia! Devemos respeitar a todos. Todos! O cerne do documento é a acolhida".

Contudo, deve-se frisar que a doutrina sobre a família e o casamento foram reafirmadas também nos últimos anos e inúmeras declarações foram dadas condenando uma suposta “ideologia de gênero”. No mais recente documento Dignitas Infinitas se condenou a transição de gênero. Tal rechaço trouxe dor e incompreensão por parte das pessoas transexuais e suas respectivas famílias, que já vivem um grau de marginalização imensurável.

No encontro que manteve com os bispos italianos, na semana passada, o papa voltou à posição do Dicastério para o Clero de 2016, que por sua vez reafirmava uma decisão da Congregação para a Educação Católica de 2005 – aprovada por Bento XVI, com “critérios de discernimento vocacional relativos às pessoas com tendências homossexuais em vista de sua admissão ao seminário e às ordens sagradas”. Nesse sentido aponta o parágrafo 199 da Ratio Fundamentalis:

"Em relação às pessoas com tendências homossexuais que se aproximam dos Seminários, ou que descobrem tal situação no decurso da formação, em coerência com o próprio magistério, a Igreja, embora respeitando profundamente as pessoas em questão, não pode admitir ao Seminário e às Ordens Sagradas aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente radicadas ou apoiam a chamada cultura gay”.

Não é a primeira vez que o pontífice entra nessa questão. Já em 2018 em reunião similar a essa, Francisco teria dito “se houver dúvida de homossexualidade, melhor não deixar entrar no seminário”. Daquela vez, também como essa, as reações de consternação e decepção foram veementes. Afinal, para além das discussões teológicas ou dos estudos de gênero pertinentes, uma pergunta se sobressalta com perplexidade. Desconhece o pontífice que existem centenas de milhares de religiosos e religiosas, bem como padres diocesanos homossexuais?

Obviamente, a resposta deve ser negativa. Afinal, mesmo do alto dos seus 87 anos, sendo filho do seu tempo e da formação recebida, Francisco é um homem inteligente, sensível e perspicaz. Com toda a certeza se relacionou, ao longo de sua vida como religioso e bispo, com muitos outros consagrados, consagradas e padres LGBTQ+. Tenha vindo tal condição ao seu conhecimento – de modo direto ou indireto – ou não, esse é um fato. Essas pessoas existiram e existem!

É quase uma certeza que tenha tido, inclusive, amigos e companheiros LGBTQ+ próximos, sem mencionar alguns professores e superiores, que lhe marcaram indelevelmente a própria vida e vocação. No mesmo sentido ocorreu quando foi bispo de Buenos Aires. Pessoas que foram e lhe são caras, sendo incontestável e estando fora de qualquer dúvida o bem que fizeram e fazem ao santo Povo de Deus, na e como Igreja. Estaria disposto Francisco a abrir mão e a descartar todas essas pessoas que incansavelmente dedicam suas vidas para cumprir sua missão, na construção do Reino de Deus?

Por ainda ser um temido tabu, existem poucos dados sobre a real proporção de pessoas LGBTQ+ que fazem parte da vida religiosa consagrada e do clero secular. Todavia, deve-se evitar a hipocrisia como vem pedindo o papa, sabe-se que a proporção é considerável e não pode ser desprezada. Assim como os heterossexuais, entre os padres e os religiosos queers existem os que vivem sua vocação com mais ou menos fidelidade, vivendo crises e alegrias, momentos de consolação e de desolação. Como qualquer ser humano no seu seguimento de Jesus.

Para qualquer observador atento – e nem é preciso ser um dos pares para o afirmar, como o podem atestar inúmeros leigos e leigas comprometidos – sãos muitos os consagrados, as consagradas e os padres homossexuais que vivem um apostolado frutuoso e dão testemunho do amor de Deus em paróquias, colégios e obras sociais. Está consciente o Papa Bergoglio do sofrimento que sua posição e suas declarações causam a essas pessoas?

Na própria assembleia dos bispos italianos, não imaginava Francisco que entre seus irmãos de episcopado haveria alguns que são gays? Quando insiste em fechar as portas para os candidatos e as candidatas à vida religiosa e ao sacerdócio, entende o papa que está prescindindo de um número relevante de trabalhadores e trabalhadoras apaixonados para a messe do Senhor? O que aconteceria com a Igreja se os cristãos e as cristãs LGBTQ+ deixassem não só os seminários, as paróquias e as ordens e congregações religiosas, mas também as pastorais, as comunidades eclesiais e o todo o trabalho voluntário que prestam como membros do Povo de Deus?

Certa feita, a teóloga feminista Ivone Gebara, religiosa da Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, observou com lucidez “não sei falar do futuro, mas no presente o que ocorre é que muitas mulheres saem da Igreja”, continua, “a Igreja já perdeu os operários, já perdeu o campesinato, e irá perder as mulheres que pensam”. Também os religiosos e os padres LGBTQ+, se não são bem-vindos e bem-vindas, deveriam sair do corpo eclesial deixando a Igreja ainda mais mutilada?

O papa provavelmente não possui noção – ou talvez a tenha e por isso siga nesse caminho – da magnitude de como seus gestos de ternura e acolhida misericordiosa repercutem na comunidade dos católicos queers. Aqui no Brasil, em julho de 2014, foi criada a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, com um manifesto que afirmava “nós, cristãs e cristãos católic@s LGBT reunid@s em nosso I Encontro Nacional, no Rio de Janeiro, somos filhas e filhos de Deus e da Igreja”. Sem dúvida, um sopro alentador de vitalidade da Igreja dos últimos e perseguidos, tal qual Jesus de Nazaré.

Desde o princípio, Francisco tem buscado romper muros e fossos ao se reunir com os católicos LGBTQ+ e abrir-se à escuta atenciosa de seus dramas e sonhos. Deve ter ouvido seguidas vezes a humilhação de relatos perpassados por discriminações e exclusões eclesiais, ao mesmo passo que deve ter visto em seus olhos o desejo de serem tratados como membros plenos da Igreja. Esse contato amoroso certamente ajudou a desfazer inúmeras barreiras e preconceitos que o velho religioso poderia ainda humanamente carregar.

Tal qual a mulher siro-fenícia (Mc 7, 24-30), os cristãos queers permaneceram e insistem em ficar, mesmo que seja para comer as migalhas dos cachorrinhos. Tocado por esses testemunhos, o pontífice disse ao chileno vítima dos abusos sexuais: “Juan Carlos, que você é gay não importa. Deus te fez assim e te ama assim, e eu não me importo. O Papa te ama assim. Você precisa estar feliz como você é”. Sim, Deus ama as pessoas LGBTQ+, o Papa ama as pessoas LGBTQ+... Mas por que a Igreja ainda não consegue sequer aceitar os religiosos, as religiosas e os padres queers que buscam o caminho da castidade, tal qual os religiosos, as religiosas e os padres heterossexuais?

Nesta terça-feira (28), o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, leu um comunicado que diz que “o Papa nunca pretendeu ofender ou expressar-se em termos homofóbicos, e se desculpa com quem se sentiu ofendido pelo uso de um termo, referido por outros”. Por fim, reiterou que “na Igreja há lugar para todos, para todos! Ninguém é inútil, ninguém é supérfluo, há espaço para todos. Assim como somos, todos”. Todos, todos, todos... Até os LGBTQ+!

O Papa Francisco é o papa da misericórdia e tem feito muito bem à Igreja e como Igreja. Um sucessor de Pedro amado e admirado não só pela imensa maioria do Povo de Deus, mas também e especialmente, pela vida religiosa consagrada e por muitos do clero. Não se desconhece a complexidade de muitas situações e os fortes grupos de pressão com que precisa hábil e pacientemente lidar.

Por isso, a via da escuta aberta e desarmada deve continuar a ser valorizada. Um caminho para aprofundar ou confirmar suas convicções seria se reunir com algumas das pessoas LGBTQ+ que integram a vida religiosa e o sacerdócio – e não se terá dificuldade em encontrá-las, bem como com as jovens vocações queers que estão em busca de responder ao chamado do Senhor. 

Ao se romper uma perniciosa e doentia cultura do silenciamento – que deseja manter tantos trancafiados nos armários das sacristias, muitos testemunhos genuínos da vida religiosa e do clero LGBTQ+ aflorariam com uma intensidade que surpreenderia a muitos e edificaria a outros tantos. Afinal, as relações deveriam sempre estar assentadas sobre a confiança e a transparência entre bispos e superiores religiosos e os consagrados e padres LGBTQ+, sem quaisquer receios de perseguição ou incompreensão excludentes. Se Deus criou tais pessoas e as ama assim, como já afirmou sabiamente o papa do fim do mundo, por que Ele as excluiria dessas vocações? É tempo de escutar e discernir o que diz o Espírito! Que a Divina Ruah afaste qualquer medo e continue a dar força e coragem ao Papa Francisco para implementar as reformas necessárias! Que a revolução do amor não seja interrompida!

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