27 Março 2018
O dia 25 de março de 2004, Festa da Anunciação, pareceu ser o dia mais longo da minha vida. Naquela noite, eu estava sendo homenageado pela United Way pelas pastorais da minha paróquia junto aos pobres e marginalizados na comunidade. Pouco antes da cerimônia, uma jovem repórter do jornal local me entrevistou. Ela notou que eu falava abertamente sobre muitas questões sociais e apoiava particularmente a comunidade LGBT. Eu sabia que este era o momento para “sair do armário” publicamente como padre gay católico romano.
O depoimento é do padre estadunidense Fred Daley, pároco da Igreja de Todos os Santos, em Syracuse, Nova York. O artigo foi publicado por America, 23-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A jornada até aquele momento foi longa e muitas vezes dolorosa. Eu sabia que queria ser padre desde que estava no Ensino Médio. Como os padres são chamados ao celibato, devo ter reprimido minha sexualidade plena até o Ensino Médio, o seminário e os primeiros anos de sacerdócio. A sociedade e a Igreja Católica me ensinaram que o sexo antes do casamento era pecaminoso e que a homossexualidade era abominável.
Desde o momento em que fui ordenado, senti-me realizado em minha vocação e amei todos os aspectos do meu ministério: presidir as liturgias, visitar os doentes, ensinar as crianças e aproveitar a vida paroquial. Fui abençoado por ter um pároco que me ensinou que servir ao povo era o coração do sacerdócio.
Depois de alguns anos, no entanto, comecei a notar uma dor dentro de mim. Essa dor se aprofundou quando reconheci o surgimento de uma energia sexual que eu tentara resistir por tanto tempo. Logo, a dor se tornou pavor. Quando comecei a admitir para mim mesmo as minhas atrações a pessoas do mesmo sexo, esse pavor se tornou horror.
Durante um retiro, compartilhei a verdade sobre minha sexualidade pela primeira vez com o padre jesuíta designado como meu diretor espiritual. Eu rezei para que ele me ajudasse a voltar aos trilhos. Eu queria aprender a reprimir esses pensamentos impuros.
Em vez disso, o Pe. Paul explicou que a minha orientação sexual faz parte de quem Deus me criou para ser. Eu fui e sou totalmente amado por Deus.
Pouco a pouco, com a ajuda de alguns aconselhamentos e de orientação espiritual, comecei a me aceitar e, no fim, a me amar como homem gay. Finalmente, entendi o verdadeiro sacrifício do celibato. Embora eu nunca tenha praticado nenhum dos meus desejos, eu precisava me comprometer de novo, conscientemente, com esse modo de vida, a fim de viver como padre, com integridade. Gradualmente, eu disse a alguns amigos e familiares que eu era gay. Mas, em geral, eu fiquei ‘dentro do armário’.
Essa jornada interior de autoaceitação mudou dramaticamente a minha relação com Deus. Eu experimentei o amor incondicional de Deus na minha alma, nas minhas entranhas e na minha cabeça. Esse amor por Deus se transformou em amor pelos meus paroquianos. Minha capacidade de amizade e empatia se aprofundou muito.
Mas eu também comecei a ficar cada vez mais frustrado pelo fato de que ficar “dentro do armário” me impedia de compartilhar minha história de uma maneira que pudesse beneficiar a outros. Eu queria acompanhar e ministrar aos pobres, aos excluídos e aos marginalizados na Igreja e na sociedade, e isso incluía o ministério à comunidade LGBT.
Então, em 2002, o escândalo dos abusos sexuais irrompeu nos Estados Unidos, e várias lideranças da Igreja começaram a culpar os padres gays como a causa da crise. Eu sabia que isso não era verdade. Concluí que, se devia viver com integridade e pregar o Evangelho sem concessões desonrosas, eu precisava “sair do armário” publicamente. Não foi uma decisão impulsiva. Ela foi precedida de oração e foi fortalecida por consultas com o meu diretor espiritual e com o bispo auxiliar. Eu confiei no Espírito Santo para me mostrar o momento certo para “sair”. A entrevista na Festa da Anunciação acabou sendo esse momento.
Eu compartilhei com a repórter que, nos meus anos acompanhando membros da comunidade LGBT, eu reconheci, em sua dor profunda, a minha própria luta de autoaceitação como homem gay.
Esperei o jornal na manhã seguinte com um pouco de medo e tremor. Será que a repórter relataria o que eu disse com precisão? Será que eu seria suspenso pelo bispo? Será que os meus paroquianos me rejeitariam? Será que eu feriria as pessoas que não entendessem?
A manchete na primeira página dizia: “Padre Daley revela que é gay”. Enquanto o título “Padre Daley recebe o prêmio ‘Herói de Verdade’ da United Way por seu trabalho com os pobres” foi relegado a uma seção interna do jornal.
Naquele fim de semana, compartilhei minha história nas liturgias paroquiais. Deparei-me com ovações em pé. Uma das minhas preocupações em discernir se eu devia “sair do armário” ou não era um medo de que eu estivesse ferindo ou confundindo paroquianos que talvez não entendessem. Uma paroquiana irlandesa idosa e muito tradicional – ela odiava “aquelas malditas guitarras na missa” – aliviou meus medos. Mary sempre contava a coleta do ofertório depois da missa dominical das 8h da manhã. Prendendo a respiração, eu bati na porta da secretaria paroquial. Mary se levantou da cadeira, me deu um abraço e disse: “Não se preocupe, padre, eu também gosto de homens!”.
Eu recebi centenas de cartas de todo o país oferecendo apoio. Algumas pessoas enviaram cartas negativas, expressando preocupação com o fato de a minha alma homossexual ir para o inferno – mas até mesmo elas me asseguraram suas orações. Meu bispo na época e seu sucessor me respeitaram e apoiaram meu ministério.
Muitas pessoas me perguntam se eu acho que outros padres gays deveriam “sair do armário”. Dar esse passo é uma decisão muito pessoal e sagrada para cada pessoa. Eu só pediria que meus irmãos padres homossexuais rezassem pela graça de refletir profundamente sobre a questão. Eu posso dizer que, para mim, “sair do armário” foi e continua sendo uma bênção.
As pessoas que estão enfrentando lutas pessoais me percebem como mais acessível, porque sabem que eu também tive lutas pessoais. Qualquer ilusão de estar em um pedestal clerical, felizmente, se desfez.
Sendo uma pessoa pública, tenho muitas oportunidades para combater os preconceitos homofóbicos que ainda existem na nossa Igreja e sociedade. Um dos meus temas espirituais favoritos vem dos escritos e dos ensinamentos do Pe. Henri Nouwen, que disse: “Nós tendemos a ser compassivos na medida em que sofremos a Paixão em nossas próprias vidas”.
Quando olho para trás, para aqueles dias em que estava no “armário”, sou muito grato porque, através do dom do Espírito, aquela porta do armário foi escancarada. Através desse dom, eu pude me tornar a pessoa que Deus pretendia que eu fosse. Se eu tenho algum arrependimento? Nenhum! Nos últimos 14 anos, eu aguardo ansiosamente pelo dia 25 de março, Festa da Anunciação do Senhor, como o dia em que um anjo sussurrou no meu ouvido: “Fred, ‘não tenha medo’”.
Naquele dia, o amor derrotou o medo nas minhas relações com Deus, com meus vizinhos e comigo mesmo. Muitas vezes, com gratidão, eu reflito sobre as palavras: “Estamos tão doentes quanto os nossos segredos”.
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''Sou padre católico e 'saí do armário' na festa da Anunciação'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU