03 Janeiro 2024
"Cristãos e cristãs LGBT+ têm redescoberto a potência do seu Batismo e a alegria da vida comunitária, sacramental e de oração. Dela surgem frutos que atestam a presença da Ruah Divina: apoio às pessoas vulneráveis, desejo de conhecer mais e melhor a Bíblia e a Teologia, famílias reconciliadas, inserção pastoral e coragem para ações afirmativas", escreve Edelson Soler, escritor, professor, membro da Coordenação do Grupo de Ação Pastoral da Diversidade - GAPD SP, um dos mais antigos grupos da Diversidade no Brasil. Faz parte da equipe de assessoria da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+ e da Comissão Regional para o Diálogo com a Diversidade, na região Sé de São Paulo-SP.
Tomando de empréstimo a canção eucarística de Antonio Cardoso e desejando fazer uma justa homenagem a Cris Serra, autora do livro Viemos pra comungar (Editora Metanoia) e pioneira na liderança da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+, que nos deixou em 2023, quero esboçar aqui o que considero serem as principais características dos grupos católicos da Diversidade, provavelmente o movimento eclesial que mais cresceu durante o pontificado de Francisco. Embora existam graus diferentes de crescimento e desenvolvimento, bem como identidades e modelos de funcionamento autônomo desses grupos, é possível apontar-lhes alguns atributos fundamentais e traçar horizontes para o movimento. Destacarei SEIS aspectos que caracterizam essa obra do Espírito Santo, que vai se fortalecendo, surpreendendo e renovando a Igreja do século XXI.
Os chamados grupos católicos da Diversidade constituem um movimento espiritual e pastoral eminentemente laical. Sacerdotes, religiosos/as e bispos podem (e devem), por fidelidade ao Evangelho, apoiar e abrir espaços para a inclusão dos grupos em suas comunidades, planos pastorais, paróquias e dioceses, porém o Espírito Santo tem suscitado uma liderança evidente de leigos e leigas. Os grupos católicos LGBT+ integram a vivência sinodal, que o Espírito tem inspirado em toda Igreja e que valoriza o protagonismo laical.
Cris Serra costumava contar que, certa feita, alguém fez a ela a seguinte pergunta: "Quem deixa vocês existirem?". Em que pese a naturalidade com a qual esse tipo de pergunta ainda é feito em alguns ambientes eclesiais, ela é obviamente sem nexo para quem já experimentou, com profundidade, a ação transformadora de Deus vivida a partir do acolhimento e da inserção nos grupos da Diversidade.
Provavelmente, uma das razões da (r)existência e do crescimento dos grupos está justamente no seu caráter laical. Nos momentos em que houve (e ainda há) pressão de grupos poderosos que se recusam a compreender a ação de Deus na vida de seus integrantes, frequentemente padres e religiosos foram silenciados ou instados a serem "discretos" em seu apoio. Foram, então, os leigos e leigas que mantiveram as atividades vivas e buscaram formas criativas de cuidado e evangelização, nos grupos da Diversidade. Como em tantas outras atividades eclesiais, é o laicato que mantém, muitas vezes apenas com sua disposição e confiança, essa ação de Deus que já resgatou inúmeras vidas.
Como toda ação enraizada no Evangelho e na vida de Jesus de Nazaré, a espiritualidade e ação pastoral da Diversidade não é infensa à perseguição e a difamação, mesmo dentro da própria Igreja. Assim como o poder de Deus se manifestou na cruz e na vulnerabilidade de seu Filho, as perseguições e até mesmo algumas aparentes derrotas, podem surgir como sinais da fidelidade profunda ao Espírito de Deus, que não pode ser domesticado e enquadrado em estruturas humanas.
Alguns cristãos e cristãs dos grupos da Diversidade já foram submetidos a inúmeras ocasiões de difamação e violência verbal, especialmente nas redes sociais. O conceito mal ajambrado e repetido de "ideologia de gênero" tem sido usado como arma para ofender, ferir e desqualificar cristãos e cristãs que procuram viver a sua fé com maior maturidade afetiva e moral. Alguns bispos já foram pressionados (e pressionaram!) para que os grupos da Diversidade desistissem de suas atividades ou dissimulassem sua característica essencial e constitutiva (serem cristãos atuantes e LGBT+), recolhendo-se a espaços fechados ou enquadrando-se como meros destinatários de assistência social ou caritativa. Algumas pessoas católicas LGBT+ são ainda convidadas a "voltar para o armário" depois de terem experimentado a liberdade de se perceberem amadas e acolhidas por Deus e vocacionadas ao protagonismo na evangelização.
Ainda não é incomum que alguns padres apoiadores (felizmente em número cada vez maior!) sejam poupados de serem fotografados ou filmados nos encontros da Diversidade, a fim de evitar a perseguição. É fato que alguns grupos foram obrigados a se repensar, a orar mais, a trocar de nome, a virar nômades em busca de um local de reunião e a se unir simplesmente para continuar existindo. Resistiram na oração, inclusive pelos perseguidores, a fim de continuarem a servir a Deus e à Igreja. Perceberam claramente que a sua força não vem apenas de si mesmos, mas da participação na grande obra que Deus realiza em favor da Humanidade. Como afirmou a Irmã Jeannine Gramick, pioneira norte-americana no trabalho com pessoas LGBTQIAPN+, citando uma das fundadoras das Irmãs Escolares de Notre Dame (Maria Teresa Gerhardinger): "Todas as obras de Deus acontecem lentamente e com dor. Mas então, suas raízes são mais robustas e seu florescimento mais lindo."
O direito à fé e à prática religiosa é descoberto e afirmado, nos grupos da Diversidade, como uma graça que foi dada a partir do Batismo, e não como mérito por enquadrar-se à rigidez de algumas regras morais. Em 2022, em resposta à pergunta: "O que o senhor diz a um católico LGBT que foi rejeitado pela Igreja?”, feita pelo padre James Martin sj, o Papa Francisco acentuou, entre outras coisas, que "a Igreja é uma mãe e reúne todos os seus filhos. Uma Igreja ‘seletiva’, de 'puro sangue', não é a Santa Madre Igreja, mas sim uma seita”.
O caminho trilhado pelos grupos católicos LGBT+ tem ampliado a necessidade de aprofundamento da Teologia do Batismo. A maioria de seus integrantes realiza o resgate daquele momento fundante que lhe dá acesso ao Mistério de Deus, inserindo-a na Igreja Corpo de Cristo e inspirando ações de humanização do mundo. A presença cada vez maior de leigos e leigas assumidamente LGBT+ nas pastorais diocesanas e paroquiais acaba por promover o amadurecimento de sua relação com a Igreja institucional. Já no documento consultivo do Sínodo da Família (2014), reconhecia-se que "os homossexuais têm dons e atributos para oferecer à comunidade cristã", ou seja, não são meramente destinatários de uma suposta ação de conversão de seu comportamento. Embora as outras pessoas do espectro da Diversidade (bissexuais, trans, intersexo, assexuais...) até recentemente sequer tenham sido mencionadas em qualquer documento eclesial, este foi um passo, ainda incipiente, em direção a uma mudança que já não está apenas no horizonte.
A declaração Fiducia supplicans, publicada em 2023 pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, autorizando a bênção não litúrgica de casais homoafetivos, vai na mesma direção: abre espaço para ultrapassar finalmente uma tradição de insistente policiamento doutrinário das pessoas LGBT+. A grita de grupos ultraconservadores, que se permitem criticar agressivamente o documento e o Papa, sugere um ponto de virada histórica. Cristãos e cristãs LGBT+ têm redescoberto a potência do seu Batismo e a alegria da vida comunitária, sacramental e de oração. Dela surgem frutos que atestam a presença da Ruah Divina: apoio às pessoas vulneráveis, desejo de conhecer mais e melhor a Bíblia e a Teologia, famílias reconciliadas, inserção pastoral e coragem para ações afirmativas. Seus membros tornaram-se evangelicamente "sal da terra", dando mais sabor (e saber) à Igreja.
Grupos da Diversidade são sobretudo espaços seguros de acolhimento, cuidado e vivência profunda da fé, a partir da ultrapassagem das ideologias patriarcal e machista que permeiam as estruturas mundanas e das igrejas, causando mais medo do que salvação. Nesses grupos, se experimenta com intensidade a revelação de Provérbios 29, 25: “Ter medo das pessoas é cair numa armadilha, mas confiar no Senhor é estar seguro”.
Há pessoas que procuram os grupos da Diversidade após experiências traumáticas e abusivas vividas em suas famílias ou em comunidades cristãs despreparadas para cuidar da realidade das pessoas LGBT+. A afirmação da diversidade e a valorização das experiências individuais produz um conforto das pessoas LGBT+ com seus corpos, como expressão da criação de um Deus amoroso e não de uma entidade moralista que lhes exige uma mutilação afetiva.
É preciso urgentemente ampliar esses espaços seguros para que pessoas sejam resgatadas em sua vida emocional e espiritual através de uma ação pastoral afirmativa e de uma rede afetiva de apoio. As pessoas que sofrem abusos, afastamento injusto ou difamações devem poder contar com uma comunidade na qual possam ser acolhidas e exercer o seu direito à prática religiosa.
Cristãos da Diversidade são chamados ao protagonismo na evangelização e na transformação da Igreja, tanto quanto qualquer cristão, e não apenas destinatários de ações pastorais e sociais de inclusão nas estruturas históricas que perpetuam a discriminação e a violência. Uma realidade que vem de há muito tempo é a de líderes de comunidade, inclusive pertencentes ao clero, que vivem vida dupla ou reprimem silenciosamente a sua sexualidade diversa.
Esse é o resultado de séculos de pregações que reafirmam uma visão superficial e enquadra cristãos e cristãs numa performatividade excludente. As comunidades cristãs do mundo todo estão cheias de pessoas diversas, que muitas vezes sustentam a fé e a atividade pastoral local. No entanto, não são poucos os relatos de perdas de liderança quando essas pessoas assumem sua sexualidade ou performam fora dos padrões heterossexual e cisgênero.
O que os grupos católicos LGBT+ trazem de novidade é a reinserção de seus participantes na vida comunitária, não só como ouvintes distantes, mas como participantes ativos e como lideranças pastorais qualificadas. Líderes LGBT+ são pecadores e pecadoras, como todos os seres humanos, e chamados a partir de sua condição a espalhar a Boa Nova da compaixão de Deus e a socorrer as pessoas mais vulneráveis.
A espiritualidade vivida nos grupos da Diversidade é a atualização da fé de Jesus e dos primeiros discípulos e discípulas. Embora a vivência pessoal e comunitária de pessoas LGBT+ na Igreja seja uma conquista contemporânea, impensável há algumas décadas, ela é sobretudo um resgate daquela "surpresa" original dos discípulos e discípulas que acompanharam Jesus de Nazaré e as primeiras comunidades cristãs, deixando-se guiar pelo Espírito Santo.
Os sinais que acompanham a vivência dos grupos da Diversidade são os mesmos dos cristãos e cristãs de todas as épocas: vidas recuperadas, curadas e transformadas, fidelidade a Jesus Cristo e ao Evangelho, amor fraterno, transparência de vida, dedicação aos que sofrem, desejo de servir e fortalecer uma Igreja também servidora da Humanidade. Pode-se dizer que a Espiritualidade da Diversidade se insere na longa tradição de movimentos espirituais que, por obra e graça de Deus, renovaram a Igreja e o mundo, em diversas épocas.
As pessoas que integram os grupos católicos da Diversidade, já aos milhares e espalhados por todo o mundo, dão hoje um novo testemunho de que Deus está presente e ativo na vida da Igreja. Sua (r)existência destrói a suposição de que as pessoas heterossexuais e cisgênero são as únicas cujas práticas são lícitas e detêm a exclusividade da bênção divina. Os novos grupos experimentam a graça e a vocação que foi dada a "todos, todos, todos...", como disse o Papa Francisco: aquela de fazer com que o eterno irrompa no mundo através da transformação de suas vidas
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Viemos para comungar! Artigo de Edelson Soler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU