12 Fevereiro 2021
“É preciso superar o medo de escutar as experiências e vivências das pessoas LGBTQI+ para poder construir práticas de fraternidade e de comunhão. Em um contexto socialmente agressivo e politicamente reacionário e extremista, a história de vida daqueles e daquelas que estão às margens da vida pastoral faz ‘cair as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces’ (FT 70)”, escreve o teólogo Danilo Pena.
E propõe: “Portanto, é hora dos documentos eclesiais, textos, e abordagens pastorais abandonarem expressões antiquadas que nenhuma pessoa gay, lésbica ou trans utiliza para referir-se à sua própria identidade. Além disso, como a comunidade LGBTQI+ poderá ouvir os convites da evangelização se a Igreja persistir em usar linguagem retórica e opaca aos seus ouvidos?”.
Danilo Pena, especialista em Direitos Humanos pela PUCGO, mestre em Filosofia e doutorando em Teologia pela PUCPR, pesquisa caminhos pastorais com as pessoas “trans” a partir da empatia em Edith Stein. Padre da Diocese de Jacarezinho, PR, atualmente trabalha em Curitiba, onde coordena a Comissão da Dimensão Social e participa da equipe permanente para as campanhas da fraternidade na arquidiocese.
Compreender a Campanha da Fraternidade é um exercício que exige um olhar contextualizado entre o ontem da Igreja e o hoje da sociedade. Isso evita interpretações apressadas sobre a sua importância pastoral. Ela surgiu vocacionada a dar respostas concretas aos desafios sociais, criando, quando necessário, organismos para fomentar o diálogo e a cooperação mútua da comunidade de fé com a sociedade e os poderes instituídos. O texto-base da Campanha da Fraternidade de 2021, em suas primeiras páginas, reafirma o propósito de evangelizar a partir de Jesus Cristo e na força do Espírito Santo, afim de “florescer a cultura da paz como consequência da transformação de todas as estruturas desiguais” (Texto-Base 2021, 7).
Embora seja um documento disposto a refletir a paz, o diálogo e o compromisso cristão, a pauta que vem ocupando a atenção dos católicos no início deste tempo de campanha é a presença da sigla LGBTQI+ em parágrafos que abordam a violência diuturnamente sentida pelas minorias sexuais e o convite à revisão de postura da comunidade de fé, quando não se posiciona a favor da vida, em todas as suas circunstâncias.
Vídeos reativos, argumentos teóricos, respostas apressadas, notas de repúdio, estratégias midiáticas, afirmação de metodologia... uma série de ações multiplicaram-se neste cenário. Embora nos últimos anos enfrentamentos à Campanha da Fraternidade sejam comuns, chama a atenção a chave que abriu a porta aos ataques mais diretos e organizados ao conjunto do texto-base neste ano: os parágrafos 31, 58 e 68 que citam as minorias sexuais pela nomenclatura LGBTQI+. Daí cabe o questionamento: qual é a gravidade em utilizar, com clareza e responsabilidade, a sigla que identifica pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexo em textos pastorais da Igreja?
O sacerdote jesuíta James Martin, com sua obra lançada em 2016, Building a Bridge, ilumina a questão ao enfatizar a relação entre a comunidade LGBTQI+ e os católicos. É um livro (não traduzido para o português) que indica a necessidade de uma linguagem pastoral mais solícita com essa realidade. Trata-se de pessoas que podem encontrar o seu lugar na Igreja, mas também a Igreja, por sua vez, deve pensar um caminho mais profundo e empático, na leitura sensível e respeitosa das pessoas LGBTQI+. O jesuíta aborda as virtudes do respeito da compaixão e do diálogo como instrumentos para reestabelecer as pontes em direção à reconciliação e ao amor.
É necessário rasgar o véu das meias palavras e gerar uma aproximação concreta a partir da Igreja institucional: as minorias sexuais precisam ser ouvidas em suas vozes e a Igreja interagir com suas histórias e potencialidades de fé. Logo, faz-se necessário uma mudança de atitude oficial da hierarquia. Por isso, a estratégia primeiramente recai sobre a Igreja institucional, inclusive em seus textos e documentos, para que se faça católica com os LGBTQI+, chegando a eles em uma reciprocidade comunicativa capaz de acolher, acompanhar, estudar, discernir e integrar tais realidades.
“A Igreja institucional tem a responsabilidade principal pelo ministério do diálogo e da reconciliação, porque foi a Igreja institucional que fez os católicos LGBT se sentirem marginalizados, e não o contrário” (MARTIN, 2016, p. 3. Tradução livre). Respeito, acolhida, amor, em pastoreio samaritano, significam reconhecer que o outro existe. O Papa Francisco renova o apelo da presença significativa e verdadeira junto a subjetividades que desafiam a estabilidade canônica ao indicar na Fratelli Tutti: “com os seus gestos, o bom samaritano fez ver que ‘a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro’” (FT 66).
É preciso superar o medo de escutar as experiências e vivências das pessoas LGBTQI+ para poder construir práticas de fraternidade e de comunhão. Em um contexto socialmente agressivo e politicamente reacionário e extremista, a história de vida daqueles e daquelas que estão às margens da vida pastoral faz “cair as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces” (FT 70). A oposição agressiva e midiática de grupos independentes, quando textos oficiais citam nominalmente a sigla LGBTQI+, não pode impedir a pastoral de integrar aquelas pessoas que tantas vezes foram feridas nas searas da própria Igreja, acolhendo-as na caminhada religiosa.
Portanto, é hora dos documentos eclesiais, textos, e abordagens pastorais abandonarem expressões antiquadas que nenhuma pessoa gay, lésbica ou trans utiliza para referir-se à sua própria identidade. Além disso, como a comunidade LGBTQI+ poderá ouvir os convites da evangelização se a Igreja persistir em usar linguagem retórica e opaca aos seus ouvidos? (MARTIN, 2016). Ilustra essa mudança de postura a própria maneira como Jesus falou ao povo de seu tempo, usando uma comunicação cristalina e sincera, que seus seguidores podiam entender, palavras e frases feitas sob medida para suas próprias situações.
Essa condição comunicativa não pode ser substituída por um léxico que seja mais confortável à Igreja. Processos de reconciliação precisam respeitar a dignidade do fenômeno sem analogias. Assim, a Igreja acerta quando, ao invés de prescrever expressões alternativas, respeita e utiliza os nomes que já pertencem às pessoas que se sentem representadas por eles: “gay”, “lésbica”, “queer”, “LGBT” e “LGBTQI+”, por exemplo. Usar estas expressões, sem medo do tribunal da internet e do juízo dos católicos farisaicos, faz parte de uma opção eclesial que busca a abertura para um necessário avanço pastoral.
O modelo de “Igreja em saída” (EG 20) não é somente uma disposição geográfica ou uma reanimação missionária nos moldes habituais. Refere-se a uma saída no plano das ideias, da cultura, da história. O desafio descortinado pelo Papa Francisco é o de fazer uma teologia a partir daí. “O pensamento fronteiriço é a singularidade epistêmica de qualquer projeto decolonial” (MIGNOLO, 2015, p. 175). Cabe à teologia superar o problema já diagnosticado por Paulo VI em 1975: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida alguma o drama de nosso tempo” (Evangelii Nuntiandi, 20).
Mas não basta enumerar intuitivamente as questões. É preciso passar do amálgama do diálogo, para o pastoreio com cheiro, presença e sabor. Nesse sentido, um ato de revisão pastoral a favor da paz, da comunhão e do bem comum, passa por uma reavaliação da linguagem, por vezes instrumento de poder e violência implícita. A Campanha da Fraternidade 2021, à luz da espiritualidade ecumênica, avança corajosamente nessa discussão.
CONIC/CNBB. Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2020.
FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. A alegria do Evangelho. São Paulo: Paulinas, 2013.
__________. Carta Encíclica Fratelli Tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social. São Paulo: Paulinas, 2020.
MARTIN, James. Building a Bridge. How the catolic church and the LGBT Comunity Can Enter into a Relationship of respect, Compassion, and sensivity. Harper One, 2016.
MIGNOLO, Walter; SOUZA, Júlio Roberto de. A modernidade é de fato universal? Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Revista Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 3, jul.-set. 2015.
PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Paulinas, 1975.
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Há espaço para a sigla LGBTQI+ nos textos da Igreja? Um olhar sobre as críticas à Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU