10 Outubro 2014
A assembleia dos bispos que ocorre em Roma se orienta rumo a uma descentralização do poder em favor dos bispos e das suas Igrejas locais.
A reportagem é de Marie-Lucile Kubacki, publicada no sítio da revista La Vie, 07-10-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 7 de outubro de 1999, o cardeal Carlo Maria Martini, por ocasião do Sínodo para a Europa, colocou a Igreja em agitação, falando, no seu discurso, de um "sonho...". O seu sonho é um novo Concílio, um Vaticano III, mesmo que não pronunciou o seu nome. Ele disse que gostaria de ver "se repetir uma experiência de encontro universal entre os bispos que permita que se desfaçam certos nós disciplinares e doutrinais".
Ele colocou sobre a mesa todos os assuntos que causam problema e que cresciam por baixo da pele como abscessos desde o fim do Vaticano II: falta de vocações, lugar das mulheres e dos leigos na Igreja, sexualidade, divorciados em segunda união.
Francisco, o reformador
Neste momento em que Francisco abre o seu sínodo sobre a família, que se realiza em Roma de 5 a 19 de outubro, alguns lembram o sonho de Martini, e são inúmeras as comparações com o Vaticano II. Encontra-se a mesma empolgação midiática e, segundo alguns, a mesma impressão de descompasso entre o que se vive na sala e o que se lê na imprensa.
Por exemplo, o cardeal Vingt-Trois, um dos três presidentes delegados do Sínodo, explicou por ocasião de uma coletiva de imprensa que os jornalistas às vezes confundem o método sinodal com um debate parlamentar, que deve "tomar decisões e fazer surgir uma maioria".
A sua posição lembra a de Bento XVI na releitura do Vaticano II: "Para a mídia, o Concílio era uma luta política, uma luta pelo poder entre diversas correntes dentro da Igreja", dizia ele em um discurso aos padres no dia 14 de fevereiro de 2013, poucos dias antes da sua renúncia. "Havia aqueles que buscavam a descentralização da Igreja, o poder para os bispos, depois, através da expressão "povo de Deus", o poder do povo, dos leigos...".
Também no que diz respeito à forma, Francisco adquiriu, aos olhos da multidão, o título de reformador pela sua atitude direta, a sua fala franca, o seu modo de denunciar o clericalismo e de enfrentar de peito aberto a reforma da Cúria desde o primeiro ano do seu pontificado.
Dois dias antes da abertura do Sínodo, ele exortara os padres sinodais a ouvir o "grito do povo". E, na sua breve homilia, na missa de início, no domingo, 5 de outubro, ele denunciara "os maus pastores que carregam sobre as costas das pessoas fardos insuportáveis, que eles não movem nem mesmo com um dedo". Uma alusão nada velada aos padres e aos bispos doutrinários demais.
Um Sínodo pastoral e não doutrinal
Nos conteúdos, o Sínodo foi apresentado pelo cardeal húngaro Péter Erdö, relator, que introduziu o debate, como um Sínodo pastoral e não doutrinal, assim como o Papa João XXIII havia declarado que o Vaticano II seria um Concílio puramente pastoral. E, assim como na época do Vaticano II, o problema da possibilidade de mudar a pastoral sem que isso tenha repercussões doutrinais não tardou a vir à baila.
Em suma, se a assembleia não chegar a mudanças doutrinais, como parece que se prospecta, isso significa que ela dará à luz grande diretrizes, orientações gerais que cada bispo deverá implementar concretamente na sua diocese.
E, como André Vingt-Trois enunciou claramente na primeira coletiva de imprensa do Sínodo, não se sabe ainda como será estabelecida a linha de distinção entre o que entrará na ordem dos princípios universais, que o papa anunciará como um dos frutos do Sínodo, e o que entrará na ordem da aplicação concreta nos âmbitos específicos.
A chave talvez esteja nas mãos do teólogo Walter Kasper, um dos mentores de Francisco. Quatro dias depois da sua eleição, o papa o citou como um "teólogo em forma". Um dos pontos fundamentais da teologia desse cardeal é a crítica de uma Igreja romanocêntrica, à la Ratzinger, em que tudo se decide no Vaticano.
Em um artigo da revista America, o cardeal Kasper, respondendo ao futuro Papa Bento XVI, denunciara em 2001 a sua visão de Igreja "totalmente problemática se a única Igreja for tacitamente identificada com a Igreja romana, de facto, ao papa e à Cúria".
Isso, segundo ele, não era "de ajuda para esclarecer a eclesiologia de comunhão, mas sim (…) o seu abandono e uma tentativa de restauração da centralização romana".
O Papa Francisco, que privilegia a simplicidade da casa Santa Marta aos tradicionais apartamentos pontifícios, não é um homem da Cúria e compartilha essa visão das coisas. Ele também acha que é preciso restituir poder às Igrejas locais, o que ele expressou amplamente na sua exortação apostólica Evangelii gaudium.
Seguindo essa lógica, podemos considerar que, para ele, o problema dos divorciados em segunda união não deve ser resolvido em nível romano, mas nas Igrejas locais, em nível de diocese.
Risco de desunião
"O problema – considera o filósofo Thibaud Collin, que recém publicou o livro Divorcés remariés. L'Église va-t-elle (enfin) évoluer? (Desclée de Brouwer, 2014) – é que, fundamentalmente, Cristo ordenou apóstolos (dos quais os bispos são sucessores) e não estruturas. Evitar um Vaticano III confiando maior responsabilidade doutrinal às Conferências Episcopais levaria não acima de tudo a diminuir o papado, mas a uma relativização do dogma e, a longo prazo, isso poderia ameaçar a unidade da Igreja, no modelo das Igrejas protestantes".
Com efeito, a inversão dos polos de decisão leva, em germe, fortíssimos riscos de desunião. Sobre a controversa questão do celibato presbiteral, o papa reconheceu oficialmente que a "porta estava aberta" para uma mudança. Mesmo que não tenha especificado, sem dúvida, isso ocorrerá a partir da base e não mais por decisão de um hipotético Concílio Vaticano III.
O jesuíta Francisco foi além em relação ao jesuíta Martini, que, em 1999, via as mudanças a partir de Roma. Francisco quer deslocalizar o Concílio nas "regiões". Dar o poder à base. Mais do que uma reforma, seria uma verdadeira mudança de paradigma. Quase uma revolução.
As origens do Vaticano III
A ideia de um terceiro concílio nasceu em 1977 em uma reunião de teólogos da revista Concilium, dentre os quais se encontrava o suíço Hans Küng. Os objetivos eram os seguintes: que o papa renunciasse aos 75 anos; que o Sínodo dos bispos não fosse mais só um órgão consultivo, mas que também pudesse deliberar; que a regra do celibato presbiteral fosse abolida; e que as mulheres pudessem ser ordenadas sacerdotisas.
A proposta, que nascia originalmente de ambientes bastante progressistas, voltou à baila nos anos 1990. Mas, desta vez, eram as pessoas próximas a João Paulo II que a assumiam.
"A intenção era de realizar um concílio reparador que colocasse novamente na linha os progressistas e os rebeldes, e limitasse as tentativas das Conferências Episcopais de obter prerrogativas mais amplas", explica o vaticanista Andrea Tornielli.
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Sínodo sobre a família: quase um Concílio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU