Dá-nos sempre desse pão. Artigo de Silvano Fausti

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09 Agosto 2024

Jesus revela que a vida nos vem precisamente de sua humanidade, de sua carne oferecida pela vida do mundo. Ela é o dom total de si mesmo que Deus faz ao ser humano. De fato, Jesus é a palavra que se fez carne, para que nele toda carne reencontre a Palavra.

A reflexão é do jesuíta italiano Silvano Fausti (1940-2015), conhecido como o “biblista das periferias”.

O artigo póstumo, que reflete sobre os Evangelhos dos próximos domingos do Tempo Comum, foi publicado em Comboni2000 – Spiritualità e Missione, 14-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Eu sou o pão da vida (Jo 6,22-47)

1. Mensagem no contexto

Eu-Sou o pão da vida”, diz Jesus à multidão que correu ao seu encontro. Sua linguagem é “mística”; ilustra, de fato, um “mistério”, o da eucaristia, centro da fé cristã. Mística e mistério evocam para nós algo que tem sabor de magia e irrealidade. Mas isso não é apenas um desvio, infelizmente​ fácil, do grande destino do ser humano: o ser humano é, por natureza, um místico em busca do mistério escondido em todas as coisas. Na verdade, para ele, o que ele vê deve ser compreendido e interpretado: é um sinal de cujo significado só ele tem a chave em mãos. O universo é um livro aberto, e só o é se alguém souber lê-lo. No ser humano, o sinal encontra seu significado; a realidade, a palavra que o traz à tona. Nele, a obra da criação chega a seu cumprimento, e ele redescobre aquela palavra pela qual e para a qual foi feita.

Quando Jesus afirma ser o pão da vida, ele está obviamente usando uma metáfora. Metáfora significa aquilo que “leva para além”. A linguagem é sempre metafórica: leva-nos para além de nós mesmos, para a realidade a ser entendida e comunicada. Se não somos místicos que captam o mistério dos sinais, ainda não somos seres humanos; só ouvimos sons que associamos a um objeto ou a uma série de objetos, como o nosso cachorro também faz. Uma certa mentalidade positivista não vai além desse nível, embora conheça muito mais associações, que lhe permitem dominar, mas certamente não entender o mundo.

Jesus diz que o pão, símbolo da vida, é Ele, o Filho que ama o Pai e os irmãos. Com efeito, a vida do ser humano é constituída por aquelas relações de amor que a tornam humana e vivível: “Quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14b). Jesus aplica a si mesmo as características do pão, que é ao mesmo tempo dom do céu e fruto do trabalho: humilde e útil, apetitoso e disponível, simples e saboroso, cansativo e alegre, força de quem o assimila e comunhão entre quem o come.

As multidões buscam Jesus porque comeram. Querem garantir sua vida material; ainda não compreenderam que a vida do ser humano é entrar em relação com Ele e viver como Ele, o Filho que se faz pão para os irmãos. Não desejam tanto ele, mas sim o que vem dele; e querem se apoderar da fonte do pão. São como as galinhas, que vão atrás da dona de casa por causa da ração. Ainda são animais, voltados à comida que perece. Ignoram o pão que não perece, aquele que nos põe em comunhão com Deus e com as pessoas.

Israel, no primeiro dia em que entrou na terra prometida, disse: “Que Deus bom!”; e dançou e se calou de espanto. No segundo dia, disse: “Que Deus bom, que nos deu a terra!”; e cantou e olhou com alegria para o céu e para a terra. No terceiro dia, disse: “Que boa é a terra que Deus nos deu!”; e olhou com prazer para a terra e para o céu. No quarto dia, disse: “Que boa a terra!”; e olhou avidamente para a terra. No quinto dia, calou-se, esqueceu-se do Pai e olhou com inveja para o vizinho. No sexto dia, todos começaram a brigar com o irmão, para ampliar suas próprias fronteiras. Assim, começou e continuou tudo o que lemos nos livros de história e nos jornais: furtos e homicídios, trapaças e mentiras, violências e injustiças, opressões e males de todos os tipos. O jardim se tornou deserto, e todos acabaram no exílio, sem terra, sem Pai e sem irmãos.

O pão que Jesus quer nos dar é o do sétimo dia, que nos leva de volta do deserto ao jardim, do exílio à pátria. Esse pão é sua própria vida: seu amor de Filho pelo Pai e pelos irmãos. Só isso é que nos mantém livres e nos permite habitar a terra com tranquilidade (cf. Lv 25,18f).

O Senhor deu três dons a cada pessoa. O primeiro é o universo inteiro, o segundo é seu próprio eu, o terceiro é Deus mesmo. De fato, o fim de todo dom é o dom de si mesmo. Tudo nos é dado gratuitamente, sem que façamos nada; porém, cabe a nós recebê-lo com gratidão e viver nele o dom que Deus faz de si mesmo.

O pão alimenta a vida, mas não é a vida. A vida é acolher o mundo e o próprio eu como dom do amor de Deus. A relação com Ele é a felicidade que cada pessoa deseja: a vida eterna é dizer sim a quem é sim para cada uma de suas criaturas desde sempre.

Quem faz do pão, de si mesmo ou de qualquer outra coisa, inclusive a lei e a aliança, seu próprio fetiche é como quem se apaixona pelo anel de noivado e não por quem o deu. Então, aquilo que é sinal perde seu significado, aquilo que é meio passa a ser fim: a vida se reduz a um acúmulo de sinais sem significado e de meios sem finalidade. Come-se o pão que perece. Ou, melhor, pão envenenado, que faz perecer.

O pão que Jesus “tomou, dando graças e distribuindo”, é Ele mesmo, seu corpo entregue por nós. Como “pão”, Ele nos dá sua vida de Filho; “comê-lo” significa assimilá-lo ou, melhor, ser comido e assimilado por ele, para viver dele e como ele. No diálogo, o pão e a fé em Jesus estão intimamente entrelaçados.

Em um longo discurso que ocupa o resto do capítulo, Jesus explica o que é esse pão (vv. 22-47) e como comê-lo (vv. 48-58). Mais do que um discurso, é, como sempre em João, um diálogo entre a Palavra e nós que a ouvimos. No diálogo, emergem as diversas reações, que, no fim, determinam a tomada de posição em relação a Jesus: ou decidimos por Ele ou nos separamos dele, o único que tem a palavra de vida eterna (vv. 59-71).

O texto é unitário e articulado, com uma progressão contínua, mas gradual, para um nível cada vez mais alto.

Essa primeira parte começa com a multidão, que, não encontrando mais nem o Mestre nem os discípulos, vai em busca de Jesus (vv. 22-24). Quando o encontram, Jesus os repreende por procurá-lo pelo pão que perece e os exorta a se esforçarem por aquele que não perece, que traz sobre si o selo do Pai (vv. 25-27). Para obter esse pão, é preciso crer nele (vv. 28-29).

Quando lhe pedem um sinal, semelhante ao maná, para que possam crer nele (vv. 30-31), Jesus responde que o maná do deserto, assim como o pão que haviam acabado de comer no monte, é um sinal do verdadeiro alimento que vem do Pai: o dom do Filho que dá a vida ao mundo (vv. 32-33). Quando solicitado a ter esse pão, Jesus revela: “Eu-Sou o pão da vida”, que sacia plenamente a fome e a sede do ser humano (vv. 34-36), porque é o Filho que faz a vontade do Pai, testemunhando seu amor pelos irmãos até dar a vida; aderir a ele é ter a vida eterna (vv. 37-40). Para crer nele, é preciso superar “o escândalo” de sua carne, na qual se cumpre todo dom de Deus ao ser humano (vv. 41-47).

Jesus tenta fazer com que a multidão e os discípulos recolham o “excedente” do pão que haviam comido. Existem duas formas opostas de considerar o alimento, que são dois modos opostos de viver: o animal faz dele um objeto de presa e compete por ele com o vizinho; o filho o toma como um dom do amor do Pai e o compartilha com o irmão. O primeiro nega a humanidade do ser humano: ele tem fome de cada vez mais pão, que, longe de o saciar, faz com que ele morra, tornando impossível a vida na terra. O segundo realiza sua humanidade: sacia-o, tornando-o filho do Pai e irmão de todos. A nossa existência cotidiana pode ser um inferno ou um paraíso: podemos viver como homo homini lupus ou como homo homini Deus!

Jesus diz de si mesmo: “Eu-Sou o pão da vida”. De fato, é o Filho quem comunica aos irmãos a vida do Pai, seu amor. Não se trata de algo impalpável e vago, mas sim do modo concreto de “comer o pão”, todo pão: em vez de consumi-lo em solidão, deve-se partilhá-lo com os irmãos ao redor da mesa do Pai, “tomando, dando graças e distribuindo”.

Igreja vive em plenitude cada vez maior o “excedente” do pão que recolheu no dom de Jesus. Fazendo memória dele, realiza um êxodo contínuo de um egoísmo que desumaniza rumo a um amor que diviniza o ser humano, dando-lhe sua verdadeira identidade de filho no Filho.

2. Leitura do texto

Versículo 22: “No dia seguinte, a multidão, que tinha ficado do outro lado do mar...” – A multidão permaneceu no local do pão, à espera da continuação do que tinha experimentado. Porém, percebe que o único barco no qual Jesus viera com seus discípulos não está mais lá. O Mestre desapareceu sozinho na montanha para não se tornar rei; enquanto isso, os discípulos foram embora por conta própria, decepcionados com a ausência dele. Jesus, discípulos e multidão, unidos no dom do pão, estão agora separados uns dos outros.

O texto, um pouco complexo em sua formulação, pode parecer supérfluo: para os fins do relato, basta o versículo 24. Na realidade, ele sublinha bem a confusão da multidão que não sabe mais onde encontrar o Senhor quando sua comunidade abandona “o lugar” do pão. É o desconcerto de quem vê a nós, seus discípulos, distantes daquele pão que nos torna testemunhas do Senhor.

Nos vv. 22-24, fala-se quatro vezes da “barca”. A atenção está totalmente na barca dos discípulos, que desapareceu sem o Mestre, e nas outras barcas que vêm para procurar Jesus.

Versículo 23: “Então chegaram outras barcas de Tiberíades...” – Outras pessoas também souberam do ocorrido e correram para o “lugar” do pão. Espera-se uma repetição do evento. Mas o Senhor não vai ao encontro de suas expectativas. Ao redor do pão, João concentra as três tentações que os sinóticos situam no deserto, depois do batismo de Jesus: a do pão (cf. v. 5s), a do poder (v. 15) e agora a de um sinal do céu (v.30).

“... perto do lugar onde eles tinham comido o pão, depois que o Senhor havia dado graças” – Com uma linguagem claramente eucarística para o leitor, refere-se em síntese ao que aconteceu no dia anterior: “comer o pão” (não os pães!) e “dar graças”. Jesus é chamado de “o Senhor”, o que é excepcional fora do discurso direto (somente aqui e em 11,2; 20,20; 21,12). De fato, no dom do pão, o povo saberá quem é o Senhor, seu Deus (cf. Ex 16,12b).

Versículo 24: “Quando a multidão viu...” – A multidão, tendo chegado ao “lugar”, vê que nem Jesus nem seus discípulos estão ali: não encontra o que espera. Então, volta para Cafarnaum, de onde partira. Ali, como por uma mão invisível, reúnem-se aqueles que participaram do dom do pão. O diálogo que Jesus terá com eles na sinagoga os levará a captar o significado do que ocorrera no dia anterior.

“... foram à procura de Jesus...” – A multidão procura Jesus, como os dois primeiros discípulos (1,38) e depois Judas e Madalena (18,8; 20,15). A busca tem resultados diferentes, dependendo do espírito que a move: pode levar a habitar junto dele e abraçá-lo ou a sequestrá-lo e a traí-lo.

Versículo 25: “Quando encontraram Jesus no outro lado do mar... – Em seu trabalho de libertação dos irmãos, o Filho é paciente com eles: guia-os no êxodo, mas os segue e se deixa encontrar também no contra-êxodo.

“...perguntaram-lhe” – É a primeira vez que a multidão fala com Jesus. O pão do Filho, do qual todos temos necessidade, faz de todos nós seus interlocutores.

“Quando chegaste aqui?” – Tentam conhecer os movimentos de Jesus. Querem, senão possuir, ao menos controlar a fonte do pão.

Versículo 26: “Em verdade, em verdade, eu vos digo” – Jesus não responde à pergunta deles, mas sim àquilo que a motiva. Desloca a atenção para outro nível: é o Senhor quem fala, com a intenção de endireitar a ambiguidade da busca deles.

“Estais me procurando” – Procurar Jesus é buscar o pão, a vida.

“... não porque vistes sinais...” – Pode-se buscar Jesus apenas porque Ele garante o pão material para sobreviver ou porque foi possível ver no pão o “sinal” d’Ele, que se doa. Pode-se buscar o dom do Senhor ou o Senhor do dom. Jesus quer “e-ducá-los” (e-ducare = e-ducere, tirar fora, arrancar: esse é o verdadeiro êxodo!) de seu horizonte egoísta, para que acolham seu amor.

Versículo 27: “Esforçai-vos não pelo alimento que perece” – O ser humano é chamado a “cultivar e cuidar” da terra (Gn 2,15), a se esforçar-se, depois do pecado, para obter o pão (cf. Gn 3,17b-19). Mas esse pão perece, assim como quem o come.

“... mas pelo alimento que permanece até a vida eterna” – Com efeito, a vida do ser humano é a comunhão com Deus (Dt 30,19s). Ela é dada a quem, em seu trabalho cotidiano, age segundo sua palavra. O alimento que dá a vida é a escuta da “lei da vida e da inteligência” (Eclo 45,5). De fato, o ser humano não vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca do Senhor (cf. Dt 8,3). “Não é a produção de frutos que alimenta o homem, mas é a tua palavra que sustenta os que acreditam em ti” (cf. Sb 16,26); “Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar: mais do que mel à minha boca” (Sl 119,103). O verdadeiro alimento do ser humano, que o distingue dos animais, é a palavra, que dá sentido a toda realidade e cria relações entre as pessoas. Por isso, a Sabedoria diz: “Vinde comer do meu pão”, “abandonai a insensatez e vivereis” (Pr 9,5s).

O alimento de que se fala não é uma ambrosia ou um néctar que garante a imortalidade; é, antes, um modo concreto de viver o pão de cada dia, como palavra de amor intercambiada com o Pai: é o dom do Espírito, que nos faz viver como filhos e como irmãos.

“...que o Filho do Homem vos dará” – Esse alimento é dom do Filho do Homem, ao qual o céu se abre (1,51). Ele no-lo “dará”, no futuro, em seu “corpo entregue por nós”. O pão que eles comeram no dia anterior é sinal antecipado desse dom. Ele só vem d’Ele, e só o obtém quem adere a Ele: é Ele mesmo, sua carne.

“Pois este é quem o Pai marcou com seu selo” – O selo indica consagração, pertencimento, autenticação. Trata-se do sinal que o Pai colocou em Jesus no batismo: o dom do Espírito, que o autentica como Filho (3,33).

Versículo 28: “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” –  A multidão entende que deve buscar o pão que não perece e que isso consiste em observar a palavra do Senhor, “realizando as obras de Deus”. Por isso, perguntam o que fazer para realizar seu beneplácito. Em outras palavras: como viver concretamente o mandamento do amor, seu preceito fundamental? É a pergunta e o drama de quem quer ser justo (cf. Rm 7,14ss).

Versículo 29: “A obra de Deus é que...” – Às nossas tantas obras, Jesus contrapõe “a obra” de Deus, aquela que verdadeiramente lhe agrada e que Ele mesmo realiza em nós (cf. v. 37).

“... que acrediteis naquele que ele enviou” – A grande obra que Deus faz é que acolhamos o dom do Filho (cf. 3.16), no qual se cumpre a salvação da criação inteira. Acolher Jesus, Palavra do Pai, luz e vida da criação (cf. 1,1ss), é realizar o desígnio de Deus, que nos quer todos filhos no Filho.

Versículo 30: “Que sinal realizas?” – O pedido de um sinal é visto pelos sinóticos como incredulidade (cf. Mt 12,38; 16,1; Mc 8,11; Lc 11,16). Jesus acaba de oferecer o sinal do pão; em vez de dar um novo, dá a explicação do que fez, para que vejamos nisso o cumprimento da obra de Deus e creiamos n’Ele.

Versículo 31: “Nossos pais comeram o maná no deserto” – Assim como a Samaritana junto ao poço fala da água dada por seu pai Jacó (4,12), assim como mais tarde se falará do pai Abraão (cf. 8,53), a multidão fala agora dos “nossos pais”, aos quais foi dado o maná. Os interlocutores de Jesus reconhecem a ação de Deus no passado, mas são incapazes de vê-la no presente. Não entendem que o que Deus fez pelos pais é um sinal do que ainda faz por nós. Esse é o salto da fé, que nos permite olhar além do simples fato para lê-lo como um sinal da mão e do coração do Pai, sempre em ação por seus filhos.

“... como está na Escritura: ‘Pão do céu deu-lhes a comer” – Essa citação não está literalmente na Bíblia. Fala-se de pão do céu no Êxodo 16,4 e no Salmo 78,24 (cf. Sb 16,20; Sl 105,40). Trata-se do maná, do alimento do êxodo, que está no centro do diálogo entre Jesus e a multidão.

Versículo 32: “Em verdade, em verdade vos digo, não foi Moisés quem vos deu o pão que veio do céu. É meu Pai que vos dá...” – Jesus desloca a atenção de Moisés para Deus mesmo (chamado de “meu Pai”), do passado (“vos deu”) para o presente (“vos dá”) e dos “pais” a “vós”, os ouvintes. O pão do céu não vem de um homem, não é algo do passado e não diz respeito aos nossos pais: é do “meu Pai”, que o “dá” no presente a “vós” que me escutais, diz Jesus.

“... o verdadeiro pão do céu” – Por três vezes seguidas, menciona-se o “pão do céu”. O maná é um pão do céu, mas não o verdadeiro. Ele é um sinal que prenuncia o verdadeiro pão, aquele que não perece e que dá a vida eterna. Jesus ajuda seus ouvintes a lerem os dons do passado como uma referência ao que Deus está fazendo agora por eles.

Versículo 33: “... o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” – No versículo 35, há a identificação entre o pão e Jesus. Ele não é apenas “pão do céu”, mas também “pão de Deus”: é Deus que desce do céu e se faz pão para comunicar sua vida ao mundo inteiro (cf. 3,16; 4,42).

Versículo 34: “... dá-nos sempre desse pão.” Assim como a Samaritana pediu a água que jorra para a vida eterna (4,15), estes pedem aquele pão que realiza a obra de Deus e dá vida ao mundo.

O andamento do diálogo na sinagoga de Cafarnaum é semelhante àquele diante do poço de Jacó: é um jogo de provocações e reações, que culmina na autorrevelação do Senhor e no desejo de seu dom por parte de quem o escuta.

Versículo 35: “Eu-Sou o pão da vida.” Jesus identifica a si mesmo com o pão de Deus que desce do céu e dá vida ao mundo. É típico de João fazer Jesus dizer: “Eu-Sou”, seguido por um predicado (6,35.51; 8,12.18.23; 10,7.9.11.14; 11,25; 14,6; 15,1.5), ou mesmo sem (8,24.28.58; 13,19; cf. também 6,20; 18,5.8). “Eu-Sou” é “o Nome” com o qual Deus se revelou a Moisés (Ex 3,14). O predicado, quando segue, revela quem é esse Nome e o que ele faz. Aqui, o predicado é o pão, que comunica sua vida a quem o come. Estamos no mais alto nível da compreensão do sinal. O pão, a vida que desejamos e recebemos, é o próprio Jesus, o Filho que dá a vida por nós.

“Quem vem a mim...” Vir a Jesus indica o movimento da fé, que se cumpre ao “comê-lo e bebê-lo”, para viver dele.

“... não terá mais fome/sede” (cf. 4,14; 7,37-39). Fome e sede indicam aquela necessidade de vida, feliz e plena, a que o ser humano aspira. “Aqueles que de mim se alimentam ainda terão fome e aqueles que de mim bebem ainda terão sede”, diz a sabedoria (Eclo 24,20), sublinhando a qualidade de seu dom, que desperta um desejo cada vez maior sem nunca enjoar. Aqui, porém, Jesus sublinha a satisfação; caso contrário, seria uma frustração contínua. Até mesmo o desejo original de Adão é saciado: tornar-se como Deus (Gn 3,5).

Versículo 36: “... vós me vistes e não credes.” Seus ouvintes “veem” o pão da vida, do qual o pão do deserto e o da montanha são sinais, mas não acreditam nele. A ignorância deles não é simples ignorância do dom (cf. 4,10). Eles viram os sinais e ouviram seu significado. Há no coração deles um impedimento para crer, que não havia na Samaritana. O Senhor não pode ser o pão deles enquanto os outros pães forem o senhor deles: eles não podem crer em Deus enquanto o deus deles for o próprio eu (5,44). Eles preferem as trevas à luz, porque as obras deles são más (3,19ss). As resistências que temos para crer no Filho vêm da mentira que nos impede de aceitar que Deus é Pai e que nós somos seus filhos.

Versículo 37: “Tudo o que o Pai me dá virá a mim...” A obra de Deus, como Pai, é atrair a todos, sem excluir ninguém, ao Filho, no qual ele é nosso Pai e nós somos seus filhos. Vir ao Filho e unir-se a Ele é o fim do ser humano, feito no sexto dia para que nele a criação alcance o sétimo e Deus seja tudo em todos (1Cor 15,28).

“... não lançarei fora o que vem a mim.” Jesus não “lança fora” e “não perde” (v. 39) nenhum dos seus irmãos que o Pai lhe deu. Pelo contrário, ele lhes dá a vida eterna e os ressuscitará no último dia (vv. 39-40).

Versículo 38: ... porque desci do céu.” Jesus é o pão que desce do céu, enviado pelo Pai e sempre em comunhão com Ele, para nos comunicar sua vida. Sua descida é o seu tornar-se carne para nos manifestar e nos dar o Pai.

Versículo 39: “E a vontade daquele que me enviou é esta...” A vontade do Pai é comunicar a própria vida a seus filhos. Jesus, descendo do céu, realiza a obra do Pai, para que nada daquilo que Ele ama se perca, para que o último dia seja vida para todos, e não morte.

Versículo 40: “... esta é a vontade de meu Pai.” Ele é o Filho (“meu Pai”), que conhece sua vontade. Essa palavra aparece quatro vezes nos versículos 38-40. “Vontade” significa amor, não só como paixão, mas também como capacidade de ação. A vontade do Pai é dar-nos o Filho, para que nele “vejamos” seu amor por nós e o acolhamos.

“... eu o ressuscitarei no último dia” (cf. v. 39). Aderir ao Filho é já ter agora a vida eterna, que consiste em amar o Pai e os irmãos. Esse amor é vitória sobre a morte e garantia da ressurreição futura: unidos a Ele, estamos em comunhão com o próprio princípio da vida.

Versículo 41: “Os judeus começaram a murmurar...” Os ouvintes, embora estejamos na Galileia, são chamados de “judeus”, o que em João tem uma conotação negativa. De fato, eles “começaram a murmurar” contra o Senhor, como o povo incrédulo no deserto. Às suas murmurações sobre a falta de alimentos (Ex 16,2.7.8.12), Deus responde enviando pão e carne do céu, para que saibam que o Senhor é seu Deus (Ex 16,11). O povo se queixa de que seus olhos “só veem este maná” (Nm 11,6), sem perceberem que é um alimento cheio de todas as delícias (Sb 16,20). Aqui os judeus murmuram contra “o pão” que veem, perguntando como ele pode ter descido do céu: não captam a revelação de Deus na humanidade de Jesus. Mas, se Deus quiser se comunicar conosco, ele só pode se fazer carne e sangue, como nós.

Versículo 42: “Não é este Jesus, o filho de José?” Jesus é homem: como pode ser de origem divina? Por que chama Deus de “meu Pai” e promete aos homens a vida de Deus? Como pode um homem tornar-se igual a Deus (5.18)? É o mistério de Jesus. Ele é carne, como todos nós. Porém, é a Palavra que se tornou carne, o Filho de Deus que se fez Filho do homem, escândalo inevitável para todo filho do homem se tornar filho de Deus.

Versículo 43: “Não murmureis entre vós.” Jesus não se justifica nem se corrige. Pede para não murmurarmos e aceitarmos esse escândalo, que é necessário para a nossa salvação.

Versículo 44: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai...” Jesus reitera que acolhê-lo é um dom do Pai, sua obra por excelência (cf. vv. 29.37): ele atrai cada pessoa ao Filho, para que se torne filha. Essa atração do Pai, ainda que misteriosa, é inata no ser humano, precisamente porque é seu filho; expressa-se nas multíplices pedidos de sentido que cada um se faz.

Versículo 45: “Está escrito nos Profetas: ‘Todos serão discípulos de Deus’” (Is 54,13). Todos somos instruídos diretamente por Deus, discípulos da voz interior que dá testemunho da Palavra, luz verdadeira que ilumina todo ser humano (1,6-9). Somos “teodidatas”, ensinados por Deus (Is 54,13): ele atua no coração de cada ser humano, atraindo-o para a luz e a vida, para o Filho, no qual ele se doa a nós como Pai. Se antes havia a lei, escrita em tábuas de pedra, agora Deus mesmo escreve sua palavra nos nossos corações (cf. Ez 36,26s; Jr 4,4; 2Cor 3,2s), pondo em nós um coração novo, cheio de seu amor. Quem escuta essa atração interna adere ao Filho e conhece o Pai. Sem ela, é absolutamente incompreensível que alguém possa se tornar cristão. Certamente não por meio de doutrinações ou cruzadas!

Versículo 46: “Não que alguém já tenha visto o Pai. Só aquele...” (1,18). A atração interna não nos faz ver diretamente o Pai; em vez disso, leva-nos ao Filho, o único que vê o Pai e pode revelá-lo (1,18): ao vê-lo, vemos o Pai (14,9). Somente no Filho é que se conhece o Pai, porque só podemos conhecê-lo como filhos. Em última análise, não podemos conhecer nada além do que somos.

Versículo 47: “... quem crê [em mim] possui a vida eterna.” Quem crê no Filho tem a vida eterna: sua vida de Filho, que é a mesma do Pai. Porque a vida eterna, o pão da vida, o pão descido do céu é o próprio filho que nos doa sua comunhão com o Pai. Os versículos seguintes terão o tom de uma homilia eucarística, que nos revela como se “come” esse pão (vv. 48-58).

O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo (Jo 6,48-59)

1. Mensagem no contexto

“O pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo”, diz Jesus depois de dizer que ele é o pão da vida. Até aqui, ele levou a multidão a procurar aquele pão que não perece, que é Ele. O maná, assim como todo dom, é sinal daquele pão que Deus quer dar a todos: a vida do Filho, que nos faz filhos.

Mas a multidão não aceita que ele possa ser o pão descido do céu, que dá a vida eterna. Não reconhece sua origem divina, porque é um homem, como todo mundo. Jesus revela então que a vida nos vem precisamente de sua humanidade, de sua carne oferecida pela vida do mundo. Ela é o dom total de si mesmo que Deus faz ao ser humano. De fato, Jesus é a palavra que se fez carne, para que nele toda carne reencontre a Palavra.

Os termos “carne, carne e sangue” substituem a metáfora do pão; “comer, mastigar e beber” substitui o verbo crer. Crer em Jesus, pão vivo, é comer e mastigar sua carne, beber seu sangue. Dez vezes se fala de “comer” ou de “mastigar”, seis vezes de “carne”, e quatro vezes de “beber sangue”.

“Carne”, como “carne e sangue”, significa o ser humano em sua humanidade concreta. “Comer” não só mantém vivo – a função do cordão umbilical é substituída primeiro pela sucção e depois pela mastigação –, mas, ainda mais profundamente, é um ato de comunhão entre quem dá a vida e quem a recebe. O que distingue o comer humana do animal é o fato de ser comunicação de amor interpessoal, que culmina na palavra trocada com o outro. “Nem só de leite vive o bebê, mas de toda palavra que sai da boca da mãe”, disse alguém, parafraseando o ditado bíblico: nem só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor (Dt 8,3).

Comer a carne e beber o sangue – mastigá-lo e bebê-lo! – é uma linguagem muito crua e dura (cf. v. 60). Mas o que isso significa é ainda mais surpreendente: comer o Filho do homem significa assimilar o Filho de Deus, até viver dele. De fato, comer é ingerir, engolir e assimilar o alimento. Crer em Jesus, aderir a ele e amá-lo é aqui chamado de “comer”. O homem se torna o que come ou, melhor, aquilo que ama. O Filho de Deus nos amou até ser devorado pelo seu amor por nós (cf. 2,17!) e tornar-se Filho do homem exaltado; nós, ao amá-lo e comê-lo, nos tornamos filhos de Deus.

O texto tem dois níveis de leitura. Uma segunda leitura é sempre possível, porque cada palavra diz outra coisa e, no fim, diz o Outro. Isso vale em particular ao Evangelho de João, que, em vez de narrar a transfiguração, faz dela a lente através da qual podemos olhar para todo o resto. De fato, ele observa com o olhar e o coração novos de quem ama, que vê em tudo o rosto do amado. Essa visão, longe de ser “visionária”, é a mais real de todas, porque é feita à luz daquele que é luz e vida de tudo o que existe.

O primeiro nível de leitura, embora escandaloso, é compreensível também para os ouvintes de Jesus. Ao afirmar que Ele é o pão da vida e que sua carne é o verdadeiro maná do novo êxodo, Jesus atribui a si mesmo as prerrogativas da Palavra. Revela-se assim como o cumprimento daquilo que o êxodo e a aliança, e mesmo antes a criação, significam: o desígnio de Deus de comunicar sua vida ao ser humano. Comer e assimilá-lo, o Filho amado pelo Pai que ama os irmãos, é a nova lei. Trata-se de uma retomada do tema anterior, com um desenvolvimento ulterior e decisivo: a quem não crê que ele possa dar a vida eterna porque é homem, ele responde que justamente sua humanidade é a revelação definitiva de Deus. Por isso, quem não o aceita não realiza as obras de Deus e não recebe a vida.

O segundo nível de leitura é transparente para o leitor cristão: é uma verdadeira homilia sobre a eucaristia. Sua carne não é metafórica: é realmente seu corpo dado por nós. Quem come sua carne, pão verdadeiro, e se alimenta dele recebe o dom supremo de Deus: o corpo e o sangue do Filho, que o põe em comunhão de vida com Ele e com o Pai. João, segundo o estilo que lhe é próprio, não narra a instituição da eucaristia, que os leitores conhecem; em vez disso, prefere fazer-nos compreender o mistério profundo, explicitando o que os outros evangelhos deixam implícito.

Falando de carne e sangue, aludimos à cruz, onde Jesus dará seu corpo e derramará seu sangue. Precisamente sua humanidade dá ao ser humano aquilo de que tudo é sinal: o próprio Deus como dom de si mesmo. Por meio dela, entramos em comunhão com o Filho de Deus que se tornou filho do homem. Qualquer outro pão é símbolo disso, que é a realidade. Por isso, tomamos cada migalha de pão – cada realidade, por menor que seja – como sinal do amor do Pai, damos graças a ele e partilhamos com os irmãos, fazendo circular em tudo e por todos a vida do Filho. A eucaristia é verdadeiramente salvação nossa e do mundo inteiro. De fato, torna-nos filhos no Filho, em comunhão com o Pai, com os irmãos e com toda a criação. Aquilo que não é objeto da Eucaristia está morto e infectado pela morte.

Esse final do diálogo permite-nos entrar no mistério daquele “excedente” de pão que agora está presente em cada fragmento da criação: é Deus mesmo que nos dá o dom de viver dele, de seu amor. Vale repetir: quem dá alguma coisa na realidade dá a si mesmo. Com efeito, todo dom implica o dom de si mesmo. No dom da carne e do sangue do Filho, revela-se e realiza-se o dom de Deus: acolhemo-lo como Pai e nós mesmos como filhos. E disso nós nos alegramos dizendo: “Amém”.

Criação, êxodo e aliança encontram sua plenitude na eucaristia: é a festa do sétimo dia, a liberdade dos filhos, o casamento entre Criador e criatura, o repouso de um no outro. Diante de um Deus que se dá a nós – como pode não se dar, se é amor? – só há estupor e alegria sem fim.

Jesus dá sua carne e seu sangue como comida e bebida do novo êxodo. A sua humanidade, totalmente oferecida a nós, torna visível aquele Deus invisível que é todo e único amor: nele, celebra-se a aliança nova e definitiva entre céu e terra.

A Igreja come e bebe dele, verdadeiro pão que nos assimila a Ele e nos torna capazes de amar com o mesmo amor com que somos amados (13,34; 15,9; 17,23). Participamos, assim, da vida trinitária, amor eterno entre Pai e Filho que se estende a todas as criaturas (cf. Sl 145,9), para que Deus seja tudo em todos (1Cor 15,28).

Leitura do texto

Versículo 48: “Eu-Sou o pão da vida”. O pão relembra a palavra de Deus, princípio da vida. O verdadeiro pão é Jesus. Palavra que se tornou carne. No AT, fala-se em comer no banquete da sabedoria (Pr 9,5s; Eclo 24,18-33; Is 55.1ss), até mesmo em comer o rolo da Palavra (Ez 3.3). As palavras de Jesus são compreensíveis à luz desta tradição bíblica.

Versículo 49: “Os vossos pais comeram o maná no deserto

e, no entanto, morreram.” Os “vossos pais” comeram-no, mas não chegaram à terra prometida (Nm 14,21-23; Jos 5,6; Sl 95,8ss); falharam no caminho e não obtiveram a vida eterna, porque não deram ouvidos ao Senhor. Jesus fala dos “vossos pais”, em oposição ao “meu Pai”, ao “maná” em oposição ao “pão que desce do céu” e do “morrer” em oposição à “vida eterna”.

Versículo 50: “Este é o pão que desce do céu.” O maná veio do céu, mas só no passado; além disso, quem comeu não obteve a vida. O pão de que fala Jesus agora “desce” do céu, para o presente, e quem dele come não morre.

“... para que não morra quem dele comer.” Crer em Jesus, pão da vida, torna-se agora “comê-lo”: ao assimilá-lo, a Palavra que se faz carne, não morremos, ao contrário dos nossos pais.

Versículo 51: “Eu-Sou o pão vivo.” Jesus, pão da vida (cf. v. 48), aqui ele é o “pão vivo”, vivo e vital, capaz de transmitir vida. A vida que está nele é a mesma do “Pai vivo” (cf. v. 57).

“que desceu do céu.” No versículo 50, dizemos “que desce”, aqui “quem desceu”, para indicar aquele momento preciso da história em que se ofereceu: é a hora da cruz, antecipada no seu fazer-se carne.

“quem dele comer.” Quem dele come tem a vida eterna: vive como filho e ressuscitará no último dia (cf. vv. 40,54). Não é dito que ele não sofrerá a morte física, mas que esta será seguida pela ressurreição (“ele viverá para sempre”). A vida eterna, que já possui quem dele come, é a comunhão de amor com ele; a morte, longe de interrompê-la, irá completá-la plenamente.

“o pão que eu darei

é a minha carne dada para a vida do mundo o pão que darei é a minha carne para a vida do mundo. Passamos do pão, que lembra a dádiva do maná, à carne, que lembra o sacrifício do cordeiro. São alusões ao êxodo e à Páscoa. O pão que Jesus dará, quando chegar a sua hora, é a sua carne: o seu corpo entregue por nós. É um prenúncio da paixão e do seu fruto. Jesus é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (cf. 1,29), tornando-se, no seu sacrifício, fonte de vida e de bênção para todos (cf. 19,34).

A carne de Jesus, sua humanidade oferecida na cruz como dom total de amor, é a epifania daquele Deus que ninguém jamais viu. Nele o Verbo se fez carne para que a própria carne se torne Verbo, história de Deus, presença do seu Espírito que anima o mundo. Caro salutis caro: a carne é o eixo da salvação!

A expressão: “a minha carne para a vida do mundo” corresponde à de Lucas 22,19: “O meu corpo entregue por vós”, que Jesus disse na última ceia (cf. Mc 14,22; Mt 26,26). João prefere “carne” a “corpo”, como no prólogo; explicita “para” com “para a vida” e diz “mundo” em vez de “vós” (cf. “muitos” de Mc 14,24, referindo-se ao sangue): esclarece, com termos que lhe são caros, o significado da eucaristia que a comunidade celebra em memória de seu Senhor.

Versículo 52: “Os judeus começaram a discutir entre si.” Se no versículo 41 eles murmuravam, agora há uma discussão mais viva, uma discussão.

“Como pode esse homem dar-nos a sua carne para comer?” Primeiro eles murmuravam porque Jesus, sendo homem, age como Deus, dizendo que é “do céu”. Agora, discutem porque ele diz que a vida divina vem do fato de comer sua carne humana. É o escândalo fundamental da encarnação: Jesus é Palavra e carne, Deus e homem. A salvação vem precisamente do fato de que ele é ao, mesmo tempo, Filho do homem e Filho de Deus.

Versículo 53: “Em verdade, em verdade, eu vos digo...” Em vez de responder, Jesus reitera sua afirmação com autoridade divina. O que ele disse é claro e verdadeiro. Só precisa ser aceito.

“Se não comerdes a carne do Filho do homem...” Jesus não é só o verdadeiro pão, alimento para o caminho do êxodo; como Filho do homem crucificado, é também “carne” do cordeiro, alimento que nos faz sair da escravidão (cf. Ex 12,1-14). Só quem o come tem a vida que Deus quer lhe dar.

“... e não beberdes seu sangue.” É uma recordação da morte em cruz, da qual brota o sangue do cordeiro que salva da morte (cf. Ex 12,13). Para os semitas, o sangue é a vida, e a vida pertence a Deus; por isso, é proibido “beber” sangue. Jesus, ao contrário, afirma que quem “come” a carne do Filho do homem “bebe” seu sangue: quem assimila sua vida como Filho de Deus fica inebriado pelo seu Espírito.

“...não tereis a vida em vós.” Comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem comunica-nos sua vida de filho, que, como o Pai, tem a vida em si mesmo (cf. 5,26). Participamos na vida do Pai e do Filho, em seu amor recíproco.

Versículo 54: “... quem mastiga a minha carne”. Jesus reitera de forma positiva o que acaba de dizer de forma negativa: ele, e só ele, o Filho, nos dá a vida eterna. Aqui “comer” (em grego é “phágô” ou “esthíô”) torna-se “mastigar, triturar com os dentes” (em grego “trôgô”). Sua carne deve ser mastigada para ser bem assimilada, a fim de receber sua energia vital. Essas expressões, embora cruas, são compreensíveis aos ouvintes de Jesus como metáforas do fato de crer n’Ele, enviado, pelo Pai para nos dar a palavra de vida. Para o cristão, em vez disso, são plenamente transparentes: na eucaristia, comemos e vivemos do Filho, somos verdadeiramente divinizados, como diz 1João 3,1: “Que grande amor nos deu o Pai, para que fôssemos chamados filhos de Deus, e nós realmente somos”.

“... tem a vida eterna.” O pão dá a vida física a quem o come. O Filho de Deus dá sua vida a quem o come: já no momento presente, ele o faz viver de seu amor eterno pelo Pai, que se revela a nós naquilo que ele tem pelos seus irmãos.

“... e eu o ressuscitarei no último dia.” Jesus reitera que o dom do Filho não é só a vida eterna no presente, mas também ressurreição no futuro. A vida eterna consiste em viver como filhos, amando o Pai e os irmãos, com um amor mais forte do que a morte. Esse amor é penhor de ressurreição no último dia: “Sabemos que já passamos da morte para a vida, se amarmos os irmãos” (1Jo 3,14a). De fato, se é verdade que “quem não ama permanece na morte” (1Jo 3,14b), é igualmente verdade que quem ama não permanece na morte, porque vive em Deus, que é amor (1 João 4.8b).

Versículo 55: “A minha carne é verdadeira comida, e o meu sangue é verdadeira bebida.” Qualquer outro alimento e bebida é um “sinal”, símbolo ou metáfora, da carne e do sangue do Filho, a “realidade” que nos dá a vida e é a nossa vida (cf. 1,1 ss.).

Para o povo que caminhava no deserto, o maná era o alimento que garantia a vida física, a lei era o alimento que garantia a vida eterna. Agora Jesus apresenta-se como verdadeiro alimento e verdadeira bebida, realização de vida que tem o seu início na criação, a sua redenção no êxodo e o seu fim na comunhão com Deus.

Versículo 56: “Quem mastiga a minha carne e bebe o meu sangue...” – Repete-se que é preciso comer ou, melhor, mastigar e assimilar a sua humanidade, para beber o seu Espírito.

“... habita em mim, e eu vivo nele.” O fruto de comê-lo e bebê-lo é habitarmos nele e ele em nós. É a primeira vez que aparece “habitar em” (cf. 15,4.5.7.9). Significa a comunhão de vida, própria do amor. De fato, o amor nunca é uma confusão que aniquila as pessoas, nem canibalismo onde um suprime o outro. Em vez disso, é comunhão entre dois que permanecem distintos. Aqui falamos da habitação mútua de um no outro: amar significa acolher o outro em si mesmo, fazer de si mesmo a casa dele. Essa é a presença real de um no outro, no amor recíproco. Por isso, um boi que come o pão eucarístico não entra em comunhão com o Senhor, porque não o ama nem o entende – como muitos que participam na eucaristia sem saber o que fazem.

Versículo 57: “Eu vivo pelo Pai.” Jesus, o Filho amado e enviado aos irmãos, é todo “do” e “pelo” Pai: vive graças a Ele, dele e para ele. Ele veio para nos comunicar, como nossa vida, essa sua relação com Ele, que é sua essência de Filho.

“... quem (me) mastiga viverá graças a mim.” Mastigá-lo é necessário para viver “graças” a ele: dele, por ele e para ele. Ao comê-lo, somos como que comidos e assimilados por ele. Este é o mistério do amor: o amado torna-se a vida de quem o ama, “informando” todo seu ser, do seu sentir ao seu pensar, do seu querer ao seu agir. Paulo diz: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. Esta vida na carne vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20). Esse alimento realmente nos dá a vida do Filho!

Versículo 58: “Este é o pão que desceu do céu.” É a frase sumária do diálogo (cf. vv. 32.48.50). Jesus falou do verdadeiro pão que comunica a vida de Deus ao ser humano: esse pão é Ele, sua humanidade como Filho do homem dada por nós, para que se torne a nossa humanidade de filhos de Deus.

“Não é como aquele que vossos pais comeram, mas morreram” (cf. v. 49). A quem lhe pedira um sinal do céu como o maná, Jesus responde que esse é um sinal transitório daquilo que ele nos dá. O pão, que eles comeram na montanha no dia anterior, é muito mais excelente do que o maná: é preciso recolher e aproveitar seu “excedente”. Esse excedente é a própria realidade da qual o dom do pão, como todos os outros dons, é sinal: o dom de si mesmo que Deus faz a toda a carne na carne do Filho do homem.

“... quem mastiga este pão viverá eternamente” (cf. vv. 50-51a). A vida eterna é a plenitude da vida, própria de Deus. Ela é dada a quem “mastiga” esse pão, que é o Filho, e vive dele, até dizer: ele é a minha vida (cf. Fl 1,21).

Versículo 59: “Assim falou ele, ensinando numa sinagoga em Cafarnaum.” No fim, diz-se o lugar da revelação. Como esse pão é concreto; é o que se compreende em um tempo e em um lugar concretos: naquele tempo e naquele lugar em que escutamos essas palavrasJesus disse-as em Cafarnaum, na sinagoga (cf. v. 22), onde se escuta a palavra de Deus, vida do ser humano.

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