A reflexão bíblica é de Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Festa de Corpus Christi, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 6,51-58.
“Quem consome a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna...” (Jo 6,54)
Com a afirmação “eu sou o pão vivo que desceu do céu”, Jesus manifesta o sentido de sua Encarnação. Ele não usa como sinal o legado poderoso, os atributos régios, os resplendores, as armas, os tronos, as vestes nobres: usa como sinal o pão, ou seja, vida que se desfaz em favor dos outros. Vida expansiva para que outros vivam.
Jesus compreendeu-se a si mesmo no pão, ou seja, ser para os outros alimento e alegria. Grãos e espigas moídos para alimentar. Jesus é reconhecido no pão que “desce” e desaparece nos outros, dissolvendo-se no mais íntimo de cada um, despertando alento, dando calor, força e sentido a partir de dentro.
Jesus Cristo, ao fazer-se pão, acolheu tudo quanto é humano e desta maneira tudo redimiu.
Em sua humanidade, Ele alimentou e saciou nossas carências mais profundas; ao mesmo tempo, ativou e despertou outras grandes “fomes”: comunhão, compaixão, solidariedade...
Assim, no gesto do partir e repartir o pão se condensou todo o caminho de Jesus: vida que se doou para aliviar todo “sofrimento humano” (curas), para proporcionar a “refeição partilhada” (ceias e multiplicação dos pães) e para ativar “novas relações humanas” (sermão da montanha).
Celebrar o Corpus Christi é atualizar estas três preocupações centrais da vida de Jesus. Aqui se conecta a essência de Sua vida na vida dos Seus seguidores e seguidoras.
Portanto, “descer” e “subir” são imagens para descrever o processo de transformação realizado por Jesus no interior de cada um de nós. Não podemos “subir” se não estivermos dispostos a “descer” com Ele ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Assim como na Encarnação o Verbo “desce” e se faz visível através das fendas e feridas da humanidade, Ele continua “descendo” e se fazendo “pão” nas profundezas de nosso ser, integrando e pacificando tudo.
“Assim novamente encarnado” (EE 109), nos diz Santo Inácio. A Encarnação, portanto, não é um evento ou um ato isolado da história; a Encarnação é atitude eterna de Deus. Ele “é” Encarnação contínua, desde toda eternidade.
Esta é a verdade, a revelação emocionante, a grande novidade do evangelho, que recolhe o que há de mais profundo da mensagem e da vida de Jesus: para dar alimento é preciso fazer-se alimento.
Jesus não só ensina e dá o alimento, mas Ele mesmo “desce” e se converte em alimento. Esta é a sua novidade “teológica”, sua novidade humana, a verdade mais profunda da Eucaristia: compartilhando o pão de Jesus (em memória de sua Encarnação, de sua vida e de sua morte), seus discípulos descobrem que Jesus mesmo é alimento e que eles devem se fazer alimento uns para os outros.
Jesus, ao se “humanizar”, se faz “pão”, humanidade convertida em alimento para os outros. A Vida Eterna não se revela num gesto de pura interioridade, mas no encontro e comunhão de uns com outros... Quem crê nos demais, quem compartilha com eles a vida, tem a vida eterna, porque entra no fluxo do “Pão Eterno” que se manifestou na Encarnação.
Nesse contexto é preciso dizer que o verdadeiro alimento é a vida mesma do ser humano: Jesus se fez alimento para os outros, saciou a fome de justiça e amor. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega, desde sua Encarnação. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
Porque Jesus é “pão descido do céu” e porque compartilhamos sua vida, também nós podemos e devemos “descer” e sermos comunhão de vida. Neste sentido, todos somos “pão no Pão”.
Cada ser humano é “pão vivo, descido do céu” para outro ser humano; cada homem, cada mulher é revelação de Deus, pão de vida eterna para os outros. Por viver neste nível, por entregar-se e compartilhar a vida neste plano, os homens e mulheres “não morrem”, tem vida eterna.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”.
Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna... Quanto pão para ser dividido! “Tornar-nos pão” significa “descer” à nossa própria condição humana para expandi-la em atitudes de serviço, partilha, solidariedade...
Jesus, ao se encarnar, quis resgatar a vida humana fazendo-se gente, sentimento, fome, alimento..., na realidade humana. Seu caminho? A vida a partir da mesa, do pão e da festa da partilha.
Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a “mesa do pão”, pois Ele passou de mesa em mesa, até se deixar fazer pão na grande mesa da Ceia Pascal.
Em todos os encontros de Jesus com os excluídos do Reino, Ele sempre os incluiu em suas refeições.
Se para nós, a mesa já era bendita, sagrada..., depois da Encarnação e da Vida de Jesus, ela se tornou mais ainda um lugar de encontro no sacramento do pão partilhado. Desde então, cada vez que dela nos aproximamos, o “Verbo feito carne” continua sua ação salvífica, recriando cada vez mais a vida em expansão. De fato, depois do Verbo fazer-se “carne” e “pão”, a mesa eucarística tornou-se lugar de transformação, de evolução humana e cósmica, o lugar de comunhão por excelência com o Criador.
Na pregação de Jesus, e mais tarde na experiência das primeiras comunidades, deu-se um salto qualitativo: do pão se passou ao pão vivo; da água aos rios de água viva que emanam nas entranhas; do vinho ao sangue que é expressão da vida.
Jesus pediu “ir mais além” daquilo que os cinco sentidos podem captar, para abrir-nos ao mistério da vida partilhada e entregue. Simbolicamente, na Eucaristia, o pão é partido para significar a doação de Jesus; e ao comermos deste pão, aceitamos ser como o grão de trigo que, caído no chão da história, produz frutos para o bem de todos. Essa presença mística de Cristo em nós, dinamizada pela Eucaristia, consagra irmãos solidários, cidadãos do mundo. Aqui está o fundamento do seguimento de Jesus.
Portanto, o primeiro sinal da Eucaristia não é o pão em si, mas o pão partido (preparado para ser comido). Durante séculos, chamou-se a eucaristia de “fração do pão”.
Não se trata do pão como coisa, mas do gesto de partir e repartir. Ao partir-se para deixar-se consumir, Jesus está fazendo presente a Deus, porque Deus é amor, dom infinito, entrega total a todos e sempre.
Assim devemos ser todos nós, seus seguidores. Se queremos ser cristãos teremos que nos deixar partir, repartir, triturar, desaparecer em benefícios dos outros. Uma comunhão sem este compromisso é uma farsa.
Mais taxativo ainda é o sinal do vinho. Quando Jesus diz “meu sangue é verdadeira bebida”, está dizendo: “isto é minha vida que está se derramando, consumindo, em benefício de todos”.
Isto é o que pretendia Jesus: fazer nossa Sua própria vida; ter que viver a mesma vida que Ele viveu. Ele está nos dizendo que nossa vida só será cristã se se derrama, se se consome, em benefício dos outros. Na Eucaristia estamos confessando que ser cristão é “ser para os outros”.
Uma Eucaristia compatível com nossos interesses, com nosso desprezo pelos outros, com nossos preconceitos e rivalidades, com nossos complexos de superioridade, sejam pessoais ou grupais, não tem nada a ver com o que Jesus quis expressar no seu discurso eucarístico.
Celebrar a eucaristia é comprometer-nos a ser fermento de unidade, de harmonia, de amor, de paz.
Ser pão em Cristo: os ingredientes de minha “massa”. Ao “amassar” a minha vida para querer ser pão... de que sou feito? A farinha é o que dá consistência e firmeza ao pão, brindando-o com diferentes formas e estruturas.
Minha farinha é aquilo sobre a qual me sustento. É essa voz, no mais íntimo de mim mesmo, que me confirma: “sou eu”. É tudo aquilo sobre a qual posso deter-me sabendo que se trata de terra firme onde colocar-me de pé e levantar-me. É minha palavra, aquela que me revela. É feita de meus valores, minhas crenças, minhas certezas...
A farinha é também aquilo que creio sobre mim mesmo, minhas firmezas, minhas convicções: é a imagem que tenho de mim, através de minhas circunstâncias ricas e frágeis, e que constitui minha verdadeira identidade.
- Rezar a “farinha” de minha existência, “terra da Encarnação do Verbo”, “pão” para alimento dos outros.