A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 6,24-35.
“Pois o de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6,33)
Com o evangelho de hoje iniciamos a reflexão sobre o Discurso do Pão da Vida, que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada “Discurso do Pão da Vida”, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O milagre da multiplicação dos pães provocou um sério mal-entendido. O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida, mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz a Vida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.
No longo diálogo com a multidão, no outro lado do mar, João recolhe as palavras de Jesus e que sua comunidade considerava como as chaves do seguimento. Jesus não responde à pergunta: “como e quando chegaste aqui?”, mas responde às verdadeiras intenções das pessoas, trazendo o diálogo para o seu terreno.
O que tem importância de verdade é o compromisso de entrega, de “fazer-se pão” para os outros. Tais palavras de Jesus põe em questão as religiões de todos os tempos, ou seja, o perigo de manipular Deus para colocá-lo a serviço e interesse próprios.
Segundo o evangelista João, a necessidade de “passar para a outra margem do mar” foi provocada porque a multidão faminta ficou saciada de pão, graças à ação de Jesus que lhe deu de comer, multiplicando os poucos pães e peixes que um menino levava consigo. Neste contexto, segundo o final do evangelho do domingo passado (Jo 16,15), as pessoas pretendiam proclamar Jesus como rei. O pão é um bom símbolo da riqueza e a realeza um instigante símbolo do poder. Estas são as “margens” nas quais a multidão e os discípulos queriam se instalar.
Infelizmente, estes também são nossos desejos ocultos: o poder e o dinheiro que, no fundo, são as duas caras da mesma moeda. Este é o “pão” venenoso que alimenta divisão, competição e ódio.
Compreende-se assim, o apelo de Jesus a passar para a outra margem, deixando de lado as solicitações do ter, para buscar o caminho do compartilhar. Em algumas determinadas circunstâncias é preciso dar alimento a quem está com fome; mas, ao mesmo tempo, é preciso ativar a liberdade e a autonomia para que ele possa buscar o pão e aprenda a partilhá-lo.
O Pão partido e preparado para ser comido é o sinal daquilo que foi Jesus em toda sua vida. O sinal não está no pão como “coisa” perecível, mas no fato de que Ele é partido e re-partido, ou seja, na disponibilidade na qual se encontra para poder se tornar alimento de todos. Jesus esteve sempre preparado para que todo aquele que dele se aproximasse pudesse assimilar Sua Vida, revestindo-se de seu modo de ser e fazer: ser tudo para todos. Deixou-se partir, fez-se alimento, deixou-se assimilar; embora essa atitude terá como consequência que fosse aniquilado pelos encarregados da religião.
O sinal de Jesus é pão partilhado. Não o alimento das purificações e dos ázimos rituais, que só os judeus piedosos podiam comer, mas o pão de cada dia, aludido no Pai-Nosso: a refeição que se oferece aos pobres e excluídos, se compartilha com os pecadores e se expande em forma universal.
Este é seu sinal: tudo que disse, tudo o que fez se condensa e se expressa na forma de alimento que sustenta e reforça os vínculos entre as pessoas.
O pão suscita e cria Corpo. Jesus não anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma lei puramente social, um princípio religioso... Ao contrário, Jesus, Messias de Deus, é Corpo, isto é, Vida expandida, sentida, compartilhada. O Evangelho nos situa, desta forma, no nível da corporalidade próxima, acolhedora e compassiva. Aqui não há mais castas e nem exclusão.
Na Eucaristia se concentra toda a mensagem de Jesus, que é o Amor. O Amor é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer durante sua vida. Isto somos nós: dom total, amor total, sem limites. Ao comer o pão e beber o vinho, estamos completando este sinal. Isso quer dizer que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com aqueles que Jesus se identificou.
O pão que nos dá Vida não é o pão que comemos, mas o pão no qual nos convertemos quando vivemos de modo oblativo, ou seja, quando vivemos des-centrados, voltados para os famintos que suplicam o pão da amizade, da presença solidária e comprometida.
“Eu Sou” em João é a suprema manifestação da consciência de quem era Jesus. Cada um de nós deve descobrir o que verdadeiramente somos, como Jesus descobriu. Somos o mesmo que era Jesus.
“Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá mais sede”. Que significa “ir a Ele, crer n’Ele”. Aqui se encontra o núcleo do discurso. Não se trata de receber nada de Jesus, senão de descobrir que tudo o que Ele tinha, também nós temos. Temos um “celeiro” interior, dotados dos mais diversos pães: recursos, dons, sonhos ... O que Jesus quer dizer é que se os seres humanos descobrissem que se pode viver a partir de uma perspectiva diferente, que alcançar a plenitude humana significa descobrir o que Deus é em cada um, responderíamos como respondeu Jesus.
Jesus não nos convida a buscar a nossa própria perfeição, nem nos limitar a práticas piedosas egóicas e estéreis, mas a ativar a capacidade de vivermos descentrados, partilhando o que somos e temos.
Buscar nossa própria “perfeição” significa edificar nosso próprio pedestal, para colocar ali nosso “ego” que se alimenta do pão do poder, do prestígio, do consumismo, do preconceito e da intolerância.
“Ser pão para os demais”, pelo contrário, significa esvaziamento das fomes egóicas para despertar fomes humanizadoras: pão da comunhão, da festa, do encontro. Só assim é possível alcançar a unidade e a plenitude de vida. A Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece para sempre.
Somos profundamente gratos quando temos pão sobre a mesa de nossas casas; no entanto, “nosso pão de cada dia” nos provoca: qual é o alimento que mais precisamos? Qual é o pão cotidiano nos faz falta? Com que saciamos nossa “fome” de cada dia? O pão vem de Deus ou mendigamos migalhas de coisas que não nos satisfazem?...
- Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Com o pão nas mãos viva em contínua ação de graças.