A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 17º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 6,1-15.
“Jesus tomou os pães, deu graças...” (Jo 6,11)
São João situa na Última Ceia o mandamento do amor e o lava-pés (serviço); mas, a Eucaristia – “Eu sou o pão da vida” – ele a situa no cap. 6º. de seu Evangelho, no relato da multiplicação dos pães – “Eu sou o pão que desceu do céu”. O acontecimento da “multiplicação dos pães” ficou muito gravada na memória e no coração dos primeiros cristãos, pois aparece seis vezes nos quatro evangelhos.
De fato, a partilha dos alimentos é uma das mais sólidas e atrativas mensagens evangélicas. Certamente, nós cristãos, devemos atender ao que Jesus prega quando nos revela que Deus é nosso Pai e fonte de misericórdia; mas, é preciso também nos deixar inspirar pelos seus atos quando dá de comer aos famintos, atos que dão suficiente fundamentação à sua pregação.
Jesus sempre se preocupou com as necessidades dos enfermos, dos marginalizados e, no relato deste domingo, deixou clara sua sensibilidade diante da fome daquela multidão que fora ao seu encontro para escutá-lo. Afinal, todo ser humano precisa comer, no amplo sentido do termo “alimentar-se”.
Seguramente, o problema mais grave que a humanidade padece, em todos os tempos, está no fato de não saciar a fome de tantos milhões de seres humanos, deserdados da possibilidade de se alimentarem. Diante desta triste realidade sentimo-nos impotentes e incapazes de encontrar uma solução.
Os critérios, profundamente egóicos, que regem nossas sociedades, dificilmente resolverão o problema da fome. O milagre da multiplicação dos pães é um forte apelo a nos libertarmos de nossa indiferença diante daqueles que morrem de miséria e fome. Quando somos solidários, há pão para todos, inclusive sobra.
Nesse sentido, a multiplicação dos pães significa também multiplicar o trabalho, acolher os imigrantes, dividir os bens... Na terra há alimento para todos; inclusive sobra, quando não é especulado.
O pão de vida não vem do dinheiro ou da compra abundante, que não sacia; o pão de vida vem do coração, da boa relação, da solidariedade e da partilha entre os seres humanos. O pão de vida é um dom, uma graça (gratuidade) do Senhor. Jesus sabe disso: aqueles que tem dinheiro não resolverão nunca o problema da fome no mundo, porque, para resolver este problema é preciso algo mais que o dinheiro: partilha, solidariedade, boa vontade, sensibilidade oblativa... É muito difícil ensinar a partilhar quando unicamente sabemos comprar com ansiedade.
Diante da fome, Jesus propõe uma solução diferente daquela do comprar. Fala da partilha dos poucos pães e peixes que um menino anônimo levou consigo e que dispõe para saciar a fome dos outros. O menino põe seus pães de cevada (pão do pobre) e peixes a serviço dos demais, como a pobre viúva do evangelho que deposita seus poucos centavos na urna da coleta do Templo: era tudo o que tinha para viver.
Ao tomar os pães e peixes em suas mãos, Jesus, cheio de gratidão, dirige-se ao Pai; não é possível crer n’Ele como Pai de todos e continuar deixando que seus filhos e filhas morram de fome.
Por isso, profere a benção de ação de graças. A Terra e tudo o que nos alimenta, recebemos de Deus. É dom do Pai destinado a todos os seus filhos e filhas. Ninguém tem o direito de acumular e especular os alimentos. Se vivemos privando os outros daquilo que necessitam para viver é que já nos distanciamos de Deus e atrofiamos nossa sensibilidade solidária.
No evangelho deste domingo podemos também perceber uma profunda conexão entre a cena da multiplica-ção dos pães e peixes e o relato da Última Ceia; também nessa multiplicação “Jesus tomou os pães, deu graças e os repartiu entre aqueles que estavam sentados à mesa”. Aqui, Jesus acrescenta um pedido para que a ceia fosse celebrada “em sua memória viva”, ou seja, que todos recordassem que Ele passou neste mundo fazendo o bem, servindo e amando a todos.
Diante de tudo isso, sem refeição compartilhada, sem serviço efetivo e sem amor incondicional, não pode haver Eucaristia em sentido pleno. Percebemos, nas atuais “missas católicas”, que há muito culto, muita genuflexão, muita adoração..., mas, pouca partilha, pouca vivência do amor e reduzido serviço; “missas” que não deixam transparecer a “memória viva” da vida de Jesus, nem é o lugar do cumprimento das recomendações tão caras que Ele nos fez no momento mesmo de sua partida.
A Eucaristia nos recorda que o pão é dom de Deus a receber; se ele leva a marca do dom, ele convida à partilha. A ação de comer deixa de ser somente um ato biológico, mas um ato social e, portanto, um ato espiritual.
Alimentar-se é também uma questão moral e teológica. É preciso examinar como nossa atitude diante do alimento foi superficializado pela narrativa moderna e pela redução dele a uma mercadoria. O entendimento espiritualmente empobrecido do alimento só poderá ser corrigido se começarmos a pensar na alimentação como um “exercício espiritual”.
O alimento é uma dádiva de Deus oferecida a todas as criaturas para fins de nutrição, partilha e celebração da vida.
Quando se realiza em nome de Deus, a alimentação é a realização terrena do eterno amor de comunhão de amor do Pai com todos os seus filhos e filhas
A consciência do dom nos convence que o alimento não é um simples punhado de nutrientes que simplesmente precisamos ingerir nas quantidades, variedades e proporções certas; o alimento é muito mais que um combustível de que necessitamos para manter nosso corpo funcionando, como uma máquina, em um nível ideal. Nessa visão falta aquela atitude para o maravilhamento e reverência.
Normalmente as pessoas costumam parar e dizer uma oração antes de tomar uma refeição, mas grande parte das pessoas aprendem que o alimento é apenas um produto manufaturado que é controlado e especulado.
O pão tem sido, há muito tempo, um elemento central para o coração e a vida das culturas ocidentais e do Oriente Próximo. Por gerações, as pessoas têm associado pão com alimento, e a disponibilidade de pão com tempos bons e segurança alimentar. A ausência de pão, ou medo da escassez dele, com frequência, eram suficientes para causar revoltas. Na mente de muitos, ao longo do tempo, sem pão simplesmente não há vida.
A importância do pão ainda permanece em nossa imaginação quando nos referimos ao dinheiro como o “pão nosso de cada dia” ou aos salários como o “ganha-pão” dos trabalhadores.
O aroma do pão saído do forno é suficiente para fazer que as pessoas queiram se sentar, se acomodar e se deliciar com várias fatias. A presença visível, aromática e tátil de um pão quentinho convida ao compartilhamento e ao companheirismo (“companheiro” – do latim “cum-panis” é alguém que “compartilha o pão”).
Além de proporcionar nutrição, o pão comunica aconchego, hospitalidade, fraternidade, compartilhamento de nossa vida juntos. Podemos olhar para uma refeição e ver apenas uma variedade aleatória de nutrientes, inconscientes da graça de
Deus que nela se manifesta. Podemos esquecer que o alimento é um dos meios básicos e duradouros de Deus expressar a providência e o cuidado divinos.
Compartilhar uma refeição é participar de uma comunicação divina (cf. Sl 104,10-15).
Recebido à mesa eucarística como o corpo de Cristo, é nossa nutrição para reforçar nossos laços comunitários.
Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não reconhecemos o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
- Sua participação na Eucaristia desperta uma sensibilidade solidária diante das diferentes “fomes” que afetam tantas pessoas?