Sudão do Sul: país esquecido pela comunidade internacional mergulha em dramática crise humanitária e escalada de violência. Entrevista especial com Daniela Nascimento

“Organizações humanitárias devem responder a toda e qualquer circunstância onde haja sofrimento humano”, afirma a professora de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra. Entretanto, adverte, crescem políticas, discursos e narrativas de um humanismo de resiliência, em que “as organizações humanitárias e os doares de ajuda humanitária estão enfocando, sobretudo, no objetivo de promover comunidades vulneráveis a comunidades resilientes”

Arte: Mateus Dias Vasconcelos | IHU

Por: Patricia Fachin | 28 Março 2025

Se, de um lado, o desejo humano inclina-se para a paz, de outro lado, a obstinação tem sido pela guerra. Conflitos armados que se arrastam desde a década de 1990 ou aqueles que emergiram nas primeiras décadas do século XXI confirmam que o mundo não se tornou mais pacífico. Ao contrário, a violência manifesta-se de muitos modos, não somente nos confrontos armados, mas também nas políticas públicas nacionais e internacionais – ou na falta delas –, reforçando a escalada de fúria e brutalidade. 

No contexto internacional, sublinha Daniela Nascimento, professora da área de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, “vivemos momentos em que teria sido essencial um papel interventivo por parte das Nações Unidas, mas o direito de veto não permitiu que isso acontecesse. Assim foram nos casos de Ruanda, no Kosovo, em Darfur, na Síria. Essa situação se repetiu mais recentemente em Gaza e na guerra da Ucrânia”. As políticas de gestão dos fluxos migratórios, acrescenta, têm contribuído para o agravamento desse cenário. “O que temos visto do ponto de vista da agenda internacional da gestão dos fluxos migratórios é preocupante”, pontua.

Nesta entrevista, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por WhatsApp, a pesquisadora comenta a opção política de rearmamento na Europa que, avalia, está avançando nesse caminho “sem ponderar seriamente as implicações dessa opção”. A aprovação dos deputados alemães para a compra de novos armamentos na semana passada, destaca, “significa jogar por terra décadas de investimento na paz pela prosperidade e pela estabilidade”. 

Especialista em estudos críticos sobre a paz, reconstrução pós-conflito, direitos humanos e ação humanitária, Daniela Nascimento tem pesquisado as guerras civis em curso no Sudão e Sudão do Sul, as quais, assegura, têm origem em “décadas de marginalização social e econômica”. 

A seguir, a pesquisadora apresenta as causas estruturais desses conflitos que levaram ao genocídio em Darfur e chama a atenção para as transformações em curso na ação humanitária internacional, tema de seu livro mais recente, intitulado O humanitarianismo em mudança: do socorrismo aos intervencionismos (Universidade de Coimbra, 2024). “Naqueles campos de refugiados que se mantêm durante décadas consecutivas – para quebrar um pouco a lógica e a crítica da dependência e da falta de perspectiva de futuro –, a ajuda humanitária foi redirecionada para a produção do empreendedorismo e de mecanismos de sobrevivência e resiliência, que ficam nas costas das vítimas. As vítimas passam a ser responsáveis pela situação em que vivem, como se não houvesse um contexto político que, de alguma maneira, resultou na maneira daquelas pessoas serem refugiadas ou deslocadas internas, por exemplo, vítimas de uma crise que não criaram, para a qual não contribuíram”, relata. 

Daniela Nascimento (Foto: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC))

Daniela Nascimento é doutora em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra, mestre em Direitos Humanos e Democratização pelo Centro Europeu Inter-Universitário de Direitos Humanos e Democratização de Veneza e licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É professora de Relações Internacionais e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É autora de, entre outros, "International Conflict Resolution and Peacebuilding Strategies: The Complexities of War and Peace in the Sudans" (Routledge, 2017). 

Confira a entrevista.

IHU – Depois do fim da Guerra Fria, muitos esperavam um mundo mais pacífico, mas o que se observa são inúmeros conflitos violentos e guerras civis em várias partes do mundo. A que atribui essa situação?

Daniela Nascimento – Essa é uma tendência que já se verifica desde a década de 1990. De fato, com o fim da Guerra Fria, houve uma expectativa de que o mundo seria mais pacífico, que a ONU poderia implementar, finalmente, sua agenda de paz e os vários instrumentos desenvolvidos ao longo da Carta das Nações Unidas, de 1945. Mas a verdade é que a década de 1990 nos confronta com uma realidade muito diferente: um conjunto de guerras civis que, na literatura desta área, são frequentemente referidas como novas guerras, guerras civis, guerra de barbárie, que ocorreram na Somália, em Ruanda, nos Bálcãs, em grande medida em diferentes pontos da África Subsaariana, mas também na Colômbia e no contexto asiático, como, por exemplo, no Sri Lanka. 

Guerras do século XXI 

A entrada no século XXI arrasta consigo muitas dessas guerras que, em alguns momentos, foram travadas do modo formal da guerra, isto é, com violência direta. Mas, nos últimos anos, voltamos a ter reflexos de conflitos violentos, adaptados àquelas que são as novas dinâmicas do sistema internacional, com outras guerras que não existiam. Comparativamente, as guerras verdadeiramente novas do século XXI não são muitas e há aqui uma justificativa para isso, que tem a ver com os processos de paz e resolução de conflitos que não foram muito sustentáveis. O sistema internacional, no seu estado atual, com uma imensa polarização, agravada por questões econômicas e sociais, também criou condições mais favoráveis para que os conflitos violentos emergissem ou reemergissem. 

IHU – Como avalia a atuação da ONU nesses processos, seja nas tentativas de estabelecer a paz, seja no papel de ajudar os países humanitariamente? Alguns dizem que o projeto de 45 tem sido um fracasso. Concorda?

Daniela Nascimento – A ONU tem uma tarefa importante, mas, ao mesmo tempo, um pouco ingrata. Por um lado, assumiu-se a ONU como o ator multilateral, intergovernamental, por excelência, na gestão, resolução e provisão de instabilidades e de conflitos violentos a partir de 1945. Mas, a verdade é que, desde a sua criação, as Nações Unidas são confrontadas com uma dificuldade na sua natureza intergovernamental, no sentido de que, não sendo uma organização que se sobrepõe aos Estados, depende da energia e do investimento que os Estados lhe conferem. A capacidade de atuação da ONU, nas diferentes áreas em que tem capacidade, depende dos Estados.

Ajuda humanitária

A capacidade de atuação das Nações Unidas é muito ampla e tem uma dimensão muito concreta no dia a dia dos territórios, com o trabalho econômico e social de gestão de todas as agências especializadas. Diria que esse trabalho se mantém indispensável, desde a Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização Mundial da Saúde (OMS), e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ou seja, um conjunto de agências especializadas que estão dia a dia nos territórios e são o rosto de vida das Nações Unidas para as populações atendidas. Isso faz diferença no cotidiano delas. 

Intervenção em matéria de paz e segurança 

A outra dimensão de atuação da ONU é aquela que tem tido maior atenção, em particular, pelo sentimento de um certo fracasso de atuação em matéria de paz e segurança. Essa dimensão está vinculada a um órgão muito específico, que é o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esse órgão tem uma competência essencial do ponto de vista da tomada de decisão sobre as grandes questões de paz e segurança a nível internacional, mas tem um vício muito particular que o tem condicionado. Diria que poucos foram os momentos em que essa condição não perturbou a capacidade de atuação das Nações Unidas. 

A circunstância de ter, com o Conselho de Segurança, cinco membros com direitos de veto, torna, obviamente, a decisão muitíssimo complexa no sentido de que, para as Nações Unidas atuarem, tem que haver consenso no Conselho de Segurança – e é isso que não temos tido. Não houve consenso na maior parte da maioria das vezes em que as Nações Unidas foram chamadas a atuar em matéria de paz e segurança. Durante a Guerra Fria, a ONU esteve bloqueada, por razões óbvias. A partir da década de 1990, houve poucas intervenções coletivas e, com respaldo do Conselho de Segura das Nações Unidas, pouquíssimas. As intervenções internacionais e consensuais a partir dos anos 2000 também foram pouquíssimas por parte da comunidade internacional, representadas no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Vivemos momentos em que teria sido essencial um papel interventivo por parte das Nações Unidas, mas o direito de veto não permitiu que isso acontecesse. Assim foram nos casos de Ruanda, no Kosovo, em Darfur, na Síria. Essa situação se repetiu mais recentemente em Gaza e na guerra da Ucrânia.

Portanto, diria que é injusto olhar para as Nações Unidas e acusá-la de que verdadeiramente não são mais do que um conjunto de Estados que se juntaram, idealmente, no sentido de cooperar e colaborar para o bem das questões de paz e segurança internacional. Efetivamente, tem essa dimensão de demasiada centralidade de alguns Estados. Os interesses diretos dos Estados com direito de veto no Conselho de Segurança estão relacionados a situações de interesse dos seus aliados. Os exemplos que me vem à cabeça imediatamente são o veto da China relativamente a uma intervenção em Darfur, em 2003, quando se tratava de um claríssimo caso de genocídio, ou o veto russo relativo à Síria, em 2011. As relações de poder e interesse econômico e político entre a China e o Sudão, entre a Rússia e a Síria – e antes ainda, em 1999, no Kosovo, com a Rússia em relação à Sérvia –, obviamente, impediram qualquer tipo de atuação. Então, o problema das Nações Unidas é serem demasiadamente dependentes da vontade política dos Estados. 

IHU – A senhora afirma que “o binômio desenvolvimento-segurança passou a constituir o núcleo das políticas de relacionamento entre centro e periferia (...) reproduzindo lógicas de poder que cumprem a agenda dos doadores, ao invés de beneficiar as populações locais”. Pode explicar como essa lógica tem sido empregada pelos Estados e como ela nos ajuda a compreender os conflitos civis e a situação dos refugiados no mundo hoje?

Daniela Nascimento – Essa é uma discussão que se enquadra numa reflexão que parte de uma análise do papel do humanitarismo, ou seja, da ação das organizações humanitárias no contexto internacional. Essa não é uma tendência nova; se verifica desde o final da década de 1990 e é convencionalmente chamada de nexo entre segurança e desenvolvimento. As questões do humanitarismo foram sendo incorporadas nessa tendência, sendo que, na sua roupagem mais atual, esse nexo está definido em termos de nexo humanitarismo-paz-desenvolvimento, muito ligado a questões de segurança. 

Securitização e controle

A questão é que a dada altura, a agenda internacional focava em tentativas de intervenção – no sentido do ato, não necessariamente uma intervenção militar, mas de desenvolvimento. As lógicas de intervenção internacional em contextos de violência, pós-violência, instabilidade e subdesenvolvimento, foram feitas a partir de uma concessão ampla de prioridades que combinavam objetivos de desenvolvimento e objetivos de segurança. Então, o que assistimos é a um processo de securitização das questões do desenvolvimento e das próprias questões humanitárias e das crises humanitárias. 

O que isso significa? Significa que subdesenvolvimento e crises humanitárias se tornaram uma questão de segurança. Responder a essas questões se tornou uma prioridade de segurança a nível internacional. Não são também alheias a essa tendência as dinâmicas resultantes dos ataques terroristas de 11 de setembro, que moldam, definitivamente, a agenda internacional no sentido de dar centralidade às questões de segurança. Nesse sentido, ao tornar tudo uma questão de segurança, abre-se espaço para políticas que são, sobretudo, de controle. 

Por exemplo, mandatos no âmbito de missões internacionais ditas multidimensionais, que são destacadas para contextos instáveis de violência e pós-violência na África, combinam essas agendas. Ou seja, envolvem recursos e políticas de estabilização, mas, também de securitização desses contextos, numa lógica de contensão dessas situações e não necessariamente de resolução dessas situações de instabilidade e violência. É nesse sentido que essa ideia do nexo, essa fusão de prioridades, acaba por servir muito mais aos interesses dos atores com mais poder no sistema internacional, que financiam essas missões e intervenções no sentido de evitar que os impactos, consequências e efeitos dessa instabilidade e violência afetem a sua própria estabilidade. 

Refugiados 

Isso também é muito claro, por exemplo, nas questões dos refugiados, dos fluxos migratórios. O que temos visto do ponto de vista da agenda internacional da gestão dos fluxos migratórios é preocupante. Não tem uma dimensão de resolução estrutural dos problemas que estão na origem desses fluxos migratórios. Ao contrário, é uma agenda de contensão, de alguma desresponsabilização dos países desenvolvidos nas condições estruturais que implicaram a degradação das condições econômicas e sociais de muitos países em desenvolvimento. Eles foram explorados pelos países desenvolvidos porque são demasiadamente dependentes deles. Em última instância, a situação é tal que as pessoas que vivem nesses países consideram que a única forma de ter uma vida mais ou menos digna é procurando uma oportunidade no Norte desenvolvido. 

É nesse sentido que o binômino desenvolvimento-segurança, ou seja, essa agenda de securitização, tem contribuído mais para a produção das lógicas de poder e controle do que propriamente beneficiando as populações locais e contribuído, verdadeiramente, para as soluções de transformação estrutural em função do desenvolvimento de longo e médio prazo.

IHU – Essa lógica de securitização e controle pode ganhar novos contornos por influência das políticas de deportação adotadas pelo governo Trump, como o acordo bilateral dos EUA com El Salvador e envio de deportados venezuelanos para o país?

Daniela Nascimento – Todas as decisões da administração Trump tem sido verdadeiramente preocupantes. A decisão de deportação quase cega de milhares de pessoas que estão nos EUA servir de acordos bilaterais com países que, efetivamente, têm seus próprios problemas internos, como, a deportação dos migrantes para El Salvador, é muito ilustrativa dessa dinâmica. Estamos falando de personalidades [políticas] que estão na mesma linha: têm a ideia da mão dura, a mão da repressão, de cortar pela raiz os problemas que são, de alguma maneira, colocados como problemas de segurança, de ordem e estabilidade interna.

Sabemos que El Salvador tem, historicamente, um problema de segurança e de instabilidade que resulta da dinâmica do narcotráfico e de grupos que são verdadeiramente violentos e desestabilizaram a ordem em vários momentos da história, levando a políticas repressivas. Vejo essa situação com muita preocupação porque são lógicas típicas daquilo que não considero ser o caminho para gerir as questões migratórias. 

Da mesma forma como tenho sido crítica à forma como a União Europeia (UE) tem gerido os fluxos migratórios, em particular a partir de 2015, claramente no sentido da repressão, da resistência e da externalização. Para nos livrarmos desse problema – porque é um problema para nós –, recorremos à ajuda externa em troca de financiamentos, ajuda econômica e recursos econômicos. É exatamente o contrário daquilo que se deveria fazer. Obviamente, não significa que os Estados não tenham – e têm – todo o direito de regular e controlar os fluxos migratórios dentro das suas fronteiras, mas a partir do momento em que esse controle escapa àquilo que são os mecanismos legais e jurídicos de proteção dos direitos, das liberdades e da dignidade das pessoas, isso é, francamente, condenável. 

IHU – Semana passada, os deputados alemães aprovaram a compra de novos armamentos com a iniciativa de rearmar o país por conta da aproximação entre Putin e Trump. O que essa iniciativa significa?

Daniela Nascimento – Toda essa discussão, sobretudo mais recente, da necessidade de rearmamento da Europa para fazer frente à ameaça russa é uma discussão que me preocupa no sentido em que mais uma vez são lógicas que se afastam daquelas que deveriam ser as opções da promoção da paz e da estabilidade no contexto europeu. É verdade é que as circunstâncias da guerra na Ucrânia perturbaram significativamente a ordem europeia e as discussões de paz e segurança a que estávamos habituados. Ameaçaram, significativamente, a paz e a segurança europeias, mas não considero de todo que a resposta mais sustentável e adequada para responder a uma possível ameaça russa seja reforçar a nossa defesa. 

Decisão apressada para responder à ameaça russa

Essa iniciativa significa jogar por terra décadas de investimento na paz pela prosperidade e pela estabilidade. Quer dizer, a UE nasce e começa com um projeto de paz, por via de intervenção econômica e, depois, política. Não é por acaso que as questões de intervenção militar foram sempre as mais difíceis de gerir, com toda a falta de consenso e controversa em torno da possibilidade de um exército europeu, porque significaria levar a UE para um nível em que os Estados não estariam disponíveis. Para todos os efeitos, se há prerrogativa fundamental de um Estado soberano, é o monopólio da violência e da força. Isso, numa estrutura supranacional, é um passo demasiadamente arrojado para a maioria dos países europeus. Mas estão avançando nesse caminho sem pensar e sem ponderar seriamente as implicações dessa opção. Não há um plano claro, não há uma estratégia; é uma estratégia de curto prazo para responder à ameaça russa. 

Creio que estamos todos, de alguma maneira, implicados numa decisão que é apressada e motivada pelas circunstâncias da guerra da Ucrânia e pela incerteza daquilo que é o comportamento do senhor Putin. Mas, claramente, não é o caminho que deveria ser tomado. Desde o início da guerra da Ucrânia deveria ter se optado pelo caminho de tentativa de resolução e negociação diplomática, via os instrumentos de negociação pelo fim da guerra, com contornos que garantissem a paz justa e não a paz que está sendo discutida no rescaldo do telefonema de Trump e Putin, que claramente coloca a Ucrânia e Europa numa situação de enorme incerteza e vulnerabilidade. 

IHU – Com a atenção voltada para a guerra da Ucrânia e para a situação de Gaza, alguns alertam para o completo esquecimento das guerras e conflitos que estão ocorrendo no Sudão e Sudão do Sul. No caso desses países, quais causas superficiais e dominantes têm sido destacadas pela comunidade internacional e quais são as causas estruturais dos conflitos?

Daniela Nascimento – O Sudão do Sul é um dos mais novos países do sistema internacional. Conseguiu sua independência em 2011, com o referendo que estava enquadrado num acordo de paz mais amplo com o Norte do Sudão. O Sudão do Sul era, até 2011, parte da República do Sudão – o maior país do continente africano –, e viveu em guerra civil com o Norte desde a independência do Sudão, em 1955. A paz formal foi conseguida por meio de um acordo geral de paz em 2005, que, na verdade, criou dinâmicas de exploração do processo de sucessão do Sul em ralação ao Norte, como se essa fosse a única via alternativa de sobrevivência para a população do Sul. 

O Sudão é um país gigante, com enorme diversidade étnica e religiosa. O Norte é majoritariamente muçulmano e o Sul, majoritariamente cristão e animista. Da guerra civil resulta a tentativa de mais autonomia. É particularmente importante e dramático o fato de o país de ter sido governado por regimes militares, a partir de golpes que não contribuíram para uma lógica de governo civil que pudesse, de alguma forma, contrariar dinâmicas de buscas de poder por parte dos militares. Os militares têm um papel central na vida pública do Sudão. 

Narrativas

Minha leitura do conflito vai exatamente no sentido contrário às narrativas dominantes para esse conflito e tantos outros com os mesmos contornos, em particular no contexto africano. Dizer que a diversidade religiosa e étnica é causa da guerra é apontar para causas superficiais. Essas são sociedades muito diferentes do ponto de vista religioso, étnico e cultural. Uma visão primordialista é reivindicada e nos diz que, em algum momento, a guerra vai acontecer, porque não é possível a existência pacífica. Uma espécie de análise senso comum desse tipo é feita em relação à guerra da Bósnia, que é vista como uma guerra étnica, assim como o genocídio em Ruanda é visto como um genocídio étnico. Essa é uma leitura muito fácil. Trata das causas superficiais que vêm à superfície. 

Causas estruturais

Minha visão é diferente no sentido de que obriga a olhar para um contexto muito mais estrutural, historicamente enquadrado, de décadas de marginalização social e econômica da população do Sul, que reclama alguma visibilidade de justiça. Essas reclamações nunca foram atendidas pelos governos do Sudão. Essa leitura se confirmou à medida que vamos nos aproximando do combinado processo de paz de 2005 – que é um acordo perfeitamente desajustado para conseguir a paz naquele território – e quando nos apercebemos que em outros contextos do Sudão passaram a ter as mesmas dinâmicas de desestabilização, de insurgência. Um exemplo é a insurgência em Darfur, que culminou com o genocídio levado a cabo pelo governo sudanês de Omar al-Bashir. Ali foi reclamada a mesma coisa que é reclamado pela população do Sul há décadas: atenção, conhecimento, justiça social. Esse era num território que tinha sido extremamente importante do ponto de vista econômico e da produção agrícola, mas se tornou completamente árido e desértico em virtude das mudanças climáticas. O governo sudanês não investiu absolutamente nada nesse território.

Portanto, as causas estruturais não são imediatamente visíveis, mas, de alguma maneira, vão se reforçando em décadas de injustiça social, em falta de representatividade política, falta de participação econômica e social e políticas de Estado. Obviamente, tudo isso vai criando ressentimento e, em última instância, escala para a violência. No caso do Sudão, foi uma escalada muito rápida e longa, com mais de 40 anos de guerra até o acordo geral de paz, em 2005.

Acordo de paz

O acordo geral de paz em 2005 é altamente patrocinado pela comunidade internacional, que o apresenta como sendo um acordo exemplar, uma espécie modelo a ser replicado em outros contextos. Para mim, é um acordo claramente insuficiente porque abre espaço para continuidade do desinvestimento na paz. 

O acordo incluía a possibilidade de um período de seis anos até o referendo e, nesses seis anos, esperava-se que o governo sudanês tornasse a unidade federativa e que a população do Sul votasse na intenção da independência territorial. A verdade é que o governo sudanês não fez absolutamente nada porque nunca tinha investido verdadeiramente nas condições estruturais de bem-estar e de expectativa de vida da população do Sul. Por isso, não foi surpreendente que o referendo de 2011 tivesse o resultado que teve, com mais de 90% da população a favor da independência. É por isso que existe o Sudão do Sul independente hoje. É exatamente porque a expectativa de que décadas de marginalização e injustiça tinham ficado para trás não se cumpriram.

As causas superficiais nos ajudam a explicar rapidamente as razões do conflito. As causas estruturais exigem mais trabalho, mais estudos daquelas que são as dinâmicas históricas e políticas. Trata-se de algo mais complexo, que envolve uma complexidade de fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, religiosos e étnicos. Minha opção é por uma perspectiva construtivista desses conflitos e da combinação das diferentes causas que nos ajudam a explicar a situação. 

IHU – Por que o Sudão do Sul entrou em conflito depois da independência?

Daniela Nascimento – A situação é tão complexa que se torna difícil destrinchar essa realidade. Mas o Sudão do Sul, a partir de 2013, tornou-se independente e entra, quase imediatamente, em conflito civil novamente porque [a independência] foi um processo mal gerido do ponto de visto das condições internas, mas também externas. A comunidade internacional rapidamente abandonou o Sudão do Sul e essa é uma das causas importantes. Além disso, tem a questão imediata e as leituras superficiais: considerou-se que o problema do Sudão do Sul era o Norte e a partir do momento em que não houvesse mais vínculo político com o Norte, a paz chegaria. E a verdade é que a paz não só não chegou, como colocou o Sudão do Sul numa circunstância de tornar, muito rapidamente, o país uma das maiores crises humanitárias das últimas décadas, com milhares de deslocados internos e refugiados, e com o agravamento da situação política interna. 

Problema político

Qual foi o problema no Sudão do Sul? Foi um problema político. Foi uma disputa política pelo poder entre o então presidente – que ainda é presidente – Salva Kiir [Mayardit], da etnia dinka, e o vice-presidente, Machar [Riek Machar Teny Dhurgon], da etnia nuer. A questão que se coloca agora no Sudão do Sul não é religiosa, mas uma questão supostamente étnica porque o presidente é de uma etnia e o vice-presidente, de outra. A dada altura, as divergências políticas exacerbam-se e há um escalar da instabilidade política, com um choque de visões políticas entre o presidente e o vice-presidente, que leva à destruição do parlamento, à expulsão do vice-presidente, que obviamente se mobiliza no sentido de ser oposição armada contra o governo do Sudão do Sul. A escalada de violência é muito rápida e torna-se uma guerra civil brutal. Ambas as partes recorrem à violência para, no caso do presidente, manter o poder e, da oposição, conseguir tomar o poder. Estamos nessa situação desde 2013, numa guerra que não terminou, com crises humanitárias brutais e devastadoras, num país sem qualquer tipo de infraestrutura capaz de suportar os abalos da própria violência. 

Cooptação e abandono internacional

Estamos falando de um território que não tinha nada antes do referendo, um país que tinha pouquíssima infraestrutura física, como estradas e escolas. Essa infraestrutura ou não existia ou estava destruída pela guerra. A verdade é que se canalizou muito dinheiro para o Sudão do Sul, com investimento internacional de ajuda ao desenvolvimento e ajuda humanitária, mas esses recursos foram rapidamente desviados por um governo que se tornou claramente corrupto e se aproveitou desses recursos. Além disso, o Sudão do Sul tem essa circunstância: foi abandonado pela comunidade internacional e, ao mesmo tempo, foi cooptado por novas dinâmicas de poder e pela luta pelo poder, que rapidamente ganhou contornos de imensa violência. A presença internacional no Sudão do Sul era clara e visível desde o início e mostrou-se totalmente incapaz de prevenir e de responder à violência. Hoje, há uma circunstância de enorme vulnerabilidade e situação humanitária dramática no Sudão do Sul, de tal modo que essa se tornou uma daquelas guerras esquecidas, da qual ninguém quer falar. 

IHU – Como classifica a crise humanitária no Sudão?

Daniela Nascimento – O Sudão é considerado uma das crises humanitárias mais graves no contexto internacional. Vive uma circunstância dramática porque o contexto internacional está com todas as atenções voltadas ou para a Ucrânia ou para Gaza. Portanto, aquilo que seria um investimento na resolução desse conflito não está nas disponibilidades da agenda internacional. 

A situação no Sudão é de enorme insegurança, com a saída de inúmeras organizações internacionais e humanitárias do país, que se viram obrigadas a sair por falta de políticas de segurança. Esse é mais um episódio, numa trajetória histórica, marcada por guerras, violências, instabilidade política e, sobretudo, por um impacto humano brutal, com a perda de milhões de pessoas, com refugiados, deslocados internos, sem garantia de assistência e de proteção. 

Os últimos relatos de organizações humanitárias que ainda estão no terreno, muitas delas no cais ou nas fronteiras do Sudão, dão conta de atrocidades absolutamente inacreditáveis, impensáveis e inaceitáveis, nomeadamente, violação como estratégia de guerra, sobretudo pelas Forças de Apoio Rápido, em particular na região de Darfur. Há uma instrumentalização da população para ganhos políticos e militar, ou seja, conquista e vitória militar para conquistar o poder.

IHU – Qual é a situação em relação à fome?

Daniela Nascimento – A estimativa é de que dois milhões de pessoas estão em risco de sobrevivência básica diariamente. 

IHU – A que atribui a guerra no Sudão?

Daniela Nascimento – Outra dinâmica de externalidade e de guerra vai se delineando no Sudão, ao Norte. Esse é um país que mantém o poder com um governo liderado por um presidente [al-Bashir] indiciado por crimes de guerras e crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional, mas que perde, significativamente, com a sucessão do Sul. Essa sucessão significou a perda territorial sobre as principais reservas petrolíferas do Sudão. O Sudão era, até a sucessão do Sul, um dos maiores produtores de petróleo do continente africano, sendo que a maioria das reservas petrolíferas se situavam no território do Sul, mas, com a independência, ficaram no Sul. Isso foi sempre contestado pelo presidente al-Bashir, mas a verdade é que o Sudão perdeu controle sobre as reservas e recursos que tinham sido essenciais ao regime. Esse foi um dos fatores que também contribuiu, de alguma maneira, para uma crescente instabilidade social e econômica no Sudão.

Áreas de produção de petróleo no Sudão e Sudão do Sul (Foto: Reprodução googleuser)

 

O Sudão perdeu, economicamente, muito com a independência do Sul: perdeu apoio internacional e, a partir de 2017, começa a haver movimentos civis de contestação do regime al-Bashir, que culmina com a derrubada do regime em 2019, numa mobilização civil extremamente importante e apoiada pelas forças militares. À época, a expectativa era de que seria possível abrir caminhos para uma transição democrática para um governo civil no Sudão. O exército tinha se comprometido com essa decisão, tomou controle do processo num primeiro momento para tentar estabilizar a situação política, prendeu o antigo presidente e tomou uma séria de passos para a transição para o governo civil. A certa altura, a transição foi posta em causa e abandonada pelo exército e pela ocupação militar do governo de transição. O exército toma o poder novamente e, a partir daí, abriu-se um período de grande instabilidade no país. 

No meio dessa instabilidade, outro ator importante entra em cena, o general Mohamed Hamdane Daglo, atual líder das Forças de Apoio Rápido do Sudão, que disputa o poder com as Forças Armadas Sudanesas, liderada pelo general Abdel Fattah al-Burhan. Uma nova guerra civil começa em abril de 2023. 

Escalada de violência

Portanto, há uma escalada de violência entre dois militares que faziam parte do movimento de transição para o governo civil. Eles cooptaram e bloquearam o processo de transição em virtude de posições muito diferentes acerca do destino político do Sudão. Entraram em guerra, numa guerra brutal, de muitíssima violência – devastadora do ponto de vista militar em relação à população civil.

Impossibilidade de negociação 

Movimentos mais recentes também resultaram em um avanço militar por parte do exército sudanês e do general e presidente do Conselho de Soberania de Transição, al-Burhan. O exército conquistou uma parte importante do território, próximo da capital. Nessa tomada de controle de certas áreas, o general al-Burhan afirmou a sua disponibilidade para formar um governo tecnocrático em tempo de guerra, que teria um primeiro-ministro. Seria uma espécie de governo interino responsável composto por outras figuras independentes que pudessem suportar o contexto de guerra em que o Sudão se encontra. Só que o problema dessa proposta foi descartar toda e qualquer possibilidade de negociação ou inclusão das Forças de Apoio Rápido. É, portanto, uma opção muito clara de total impossibilidade de vontade para negociar com o que se considera serem os rebeldes. A única circunstância em que poderiam considerar negociar e iniciar negociações com as Forças de Apoio Rápido, lideradas pelo general Mohamed Hamdan Dagalo, seria se depusessem as armas e se retirassem da sua investida militar. Como se vê, não há garantias de estabilização no curto, médio e longo prazo no contexto sudanês. Nenhuma das partes está disponível e comprometida com qualquer tipo de cessar-fogo nessa fase. 

IHU – Quais os atores internacionais envolvidos nos conflitos?

Daniela Nascimento – Um fato muito importante é o apoio de atores internacionais na guerra, mas não somente nesta. As Forças de Apoio Rápido contam com apoio importantíssimo do Grupo Wagner, que está no terreno e tem, como contrapartida, acesso privilegiado a recursos importantes. Outros países, como Catar, Egito, Turquia, vão se posicionando ora de um lado, ora de outro.

IHU – Como a população tem reagido à violência?

Daniela Nascimento – Apesar das tentativas e da mobilização civil da sociedade civil sudanesa, que é particularmente organizada, há pouco espaço para que a população possa se afirmar. Isso mostra quão cooptada está toda a estrutura de poder no Sudão desde a independência e, sobretudo, a influência do poder militar nesse contexto. 

O líder das Forças de Apoio Rápido, general Mohamed Hamdan Dagalo, foi o responsável pelo genocídio em Darfur em 2003. Ele foi incumbido, pelo presidente al-Bashir, de levar a cabo uma campanha genocida contra a população de Darfur, que estava se insurgindo contra o regime sudanês. Essas atrocidades foram reportadas, registradas e investigadas no Tribunal Penal Internacional. Portanto, não são pessoas confiáveis do ponto de vista de garantias de boa fé ou qualquer disponibilidade para negociar a paz, uma paz que será sempre muito frágil e que não terá estabilidade. Infelizmente, depois de décadas de guerra, o que houve foi mais guerra.

IHU – Qual é a relação entre Sudão e Sudão do Sul hoje? 

Daniela Nascimento – É uma relação muito frágil. A sucessão do Sul foi muito mal acolhida e não foi bem aceita pelo regime sudanês à época, do presidente al-Bashir. Uma das primeiras medidas do presidente al-Bashir foi não reconhecer a decisão de uma comissão independente que traçou a fronteira entre o Norte e o Sul do Sudão – a fronteira existia, era conhecida, mas foi preciso, no âmbito do processo de paz, criar uma comissão independente que fosse responsável por confirmar o desenho da fronteira entre o Norte e o Sul do Sudão. 

A comissão confirmou que as reservas petrolíferas ficariam do lado do Sul. Al-Bashir contestou e nunca aceitou essa decisão. Uma vez que ficou impossibilitado de controlar os recursos petrolíferos, tentou aproveitar-se o mais possível da situação, taxando a escoação de petróleo do Sul com valores elevadíssimos. O território do Sudão do Sul está encravado; não tem saída para o mar. Antes da independência, a única saída para as reservas petrolíferas pelo mar era via o Norte do Sudão, no mar Vermelho, que também é bastante disputado pela Rússia.

Portanto, o Sudão do Sul está numa situação ingrata: tem muito petróleo, mas não tem como escoá-lo. Havia planos de escoar o petróleo pelo Quênia, mas a verdade é que durante muitos anos – e diria que ainda se mantém essa prática – o Sudão lucrou muitíssimo, taxando o Sudão do Sul com valores exorbitantes para que pudesse escoar o petróleo. Assim, as relações nunca foram boas. A instabilidade nos dois territórios nunca foi resolvida. Com a guerra no Sudão do Sul, a partir de 2013, os vários refugiados para o Norte agravaram a situação de instabilidade entre os dois países. Agora, a guerra no Sudão, com vários refugiados para o Sul, agrava ainda mais a relação entre os dois países. É uma relação muito tensa, difícil e que não é de toda amistosa pelo histórico e as circunstâncias entre ambos. 

IHU – Ano passado, a senhora publicou, com José Manuel Pureza, o livro O humanitarismo em mudança. Do socorrismo aos intervencionismos, no qual defendem uma visão crítica sobre humanitarismo. Em que consiste essa posição? O que é e como se manifesta o que chamam de “ideologia humanitária” nos países que estão em conflito?

Daniela Nascimento – Este livro tem como contexto uma reflexão que venho fazendo há alguns anos na minha pesquisa e que é partilhada pelo colega José Manuel Pureza. Centra-se na necessidade de olharmos criticamente para esta coisa que se chama humanitarismo e ação humanitária. É uma reflexão que resulta de uma involução do humanitarismo. 

Desde sua emergência, a institucionalização do regime internacional humanitário é composta por normas, princípios, instituições, e remete a uma forma de humanitarismo de tipo clássico, com princípios de neutralidade. É a ideia de que, diante do sofrimento humano, em particular daquele resultante da guerra, cria-se, no dia a dia, uma terceira parte não implicada na guerra, que pudesse aliviar o sofrimento. Ou seja, é a ideia de criar uma organização internacional que fosse reconhecida por todos os quadros, por todas as pessoas, como sendo uma organização neutra, que só está no terreno para assistir e aliviar o sofrimento daqueles que, em alguma circunstância, ficam fora de combate por estarem feridos e afetados diretamente pelos conflitos. Isso tudo diz respeito à ideia do humanitarismo clássico. 

No livro, traçamos e contextualizamos essa evolução, sublinhando que o humanitarismo clássico dos princípios funcionou relativamente bem durante várias décadas. Mas, partindo de uma alteração muito significativa nessa evolução, de alguma maneira, os princípios do humanitarismo clássico caíram por terra, em particular por causa da crítica ao princípio de neutralidade. A partir da década de 1990, o humanitarismo clássico passa a ser muitíssimo criticado por ser conivente com violações graves dos direitos humanos. 

Por exemplo, a situação da Somália em relação à Ruanda, onde, cumprindo o princípio da neutralidade – que significa não tomar partido na guerra ou na violência que está ocorrendo –, e no princípio da imparcialidade – que diz que não se faz distinção entre as vítimas de uma guerra ou de uma crise humanitária –, ocorreu uma crise alimentar na Somália e a necessidade de cuidados médicos. Isso criou uma enorme turbulência no meio humanitário porque as organizações humanitárias não podiam alimentar a população nem contribuir para o não agudizamento das crises humanitárias. É nesse contexto de mudança que o humanitarismo e a ação humanitária são, de alguma maneira, inseridos numa agenda muito mais ampla de intervenção – a agenda do nexo humanitarismo-segurança-desenvolvimento. Isso leva, na década de 1990, a um novo humanitarismo. 

Novo humanitarismo: politização da agenda humanitária 

O novo humanitarismo é totalmente diferente do humanitarismo clássico porque se afasta, definitivamente, dos princípios clássicos. Então, ao invés de imparcialidade, surgem posicionamentos políticos em relação às crises. Ao invés da neutralidade no que diz respeito aos contextos em que se deve intervir e onde se deve permitir a agenda humanitária, surge uma politização da agenda humanitária. Há também uma militarização crescente da ajuda humanitária porque tudo se torna uma questão muito mais de médio e longo prazo, no sentido de salvar pessoas. 

Há uma mudança muito significativa, que resulta de uma entrada crescente de visões neoliberais na agenda de interesse internacional, a qual o humanitarismo não escapa. Portanto, a agenda humanitária está completamente cooptada por uma agenda política e organizações humanitárias a servir interesses políticos dos governos, ou seja, os principais definidores da agenda humanitária. Essa é a crítica que fazemos no livro, sublinhando a degradação dessa ideia de humanitarismo e de ideologia humanitária, no sentido de que ela se torna muito mais instrumental do que uma ação de propósito, como tinha sido inicialmente pensada. Com o agravante de que na última década há uma intensificação de determinadas dinâmicas que põem em causa os pressupostos de paz e de humanitarismo, como a profissionalização da ajuda humanitária, que se tornou uma espécie de exigência por parte dos doadores. As organizações humanitárias têm que ter códigos de conduta para poderem receber transferências de recursos – muitos financiamentos são públicos –, ser responsáveis, etc. Mas isso torna tudo demasiadamente tecnocrata. 

Responder ao sofrimento humano

Obviamente, apostamos na ideia de que as organizações humanitárias devem responder a toda e qualquer circunstância onde haja sofrimento humano. Nossa crítica é no sentido de alertar para dinâmicas e tendências que agora também têm resultado em políticas, discursos e narrativas de um humanitarismo de resiliência. O que isso significa? Significa que as organizações humanitárias e os doares de ajuda humanitária estão enfocando, sobretudo, no objetivo de promover comunidades vulneráveis a comunidades resilientes.

Naqueles campos de refugiados que se mantêm durante décadas consecutivas – para quebrar um pouco a lógica e a crítica da dependência e da falta de perspectiva de futuro –, a ajuda humanitária foi redirecionada para a produção do empreendedorismo e de mecanismos de sobrevivência e resiliência, que ficam nas costas das vítimas. As vítimas passam a ser responsáveis pela situação em que vivem, como se não houvesse um contexto político que, de alguma maneira, resultou na maneira daquelas pessoas serem refugiadas ou deslocadas internas, por exemplo, vítimas de uma crise que não criaram, para a qual não contribuíram. Isso é preocupante e é essa preocupação que, de alguma maneira, refletimos no livro, no sentido de procurar resgatar um pouco daquilo que seria a essência do humanitarismo.

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