18 Dezembro 2024
"Com a ocupação do Golã, as tropas israelenses estão a algumas dezenas de quilômetros de Damasco: na prática, Al Julani, que protestou fracamente contra Tel Aviv, está literalmente sob a mira da tecnologia de guerra israelense, como demonstrou a guerra no Líbano, implementada também com a eliminação da liderança do Hezbollah. Nem vale a pena para ele se esconder, é quase um refém", escreve Alberto Negri, filósofo italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 17-12-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Assad levou embora com ele os cofres do Estado, enquanto Israel está desintegrando todo o aparato militar e se expandindo para o Golã; no Norte, Erdogan ocupa dois cantões e abre a caça aos curdos
A queda do regime de Assad e as incursões de Israel entregam ao novo senhor de Damasco, o jihadista Al Julani, uma caixa vazia na qual está escrito “Ex-Síria”.
Bashar al Assad, que se manifestou de Moscou dando sua versão da história - “foram os russos que me pediram para sair” - levou o caixa embora com ele. As reservas do banco central, duas toneladas de cédulas e 250 milhões de dólares já haviam sido transferidas para a Rússia no passado, seu círculo de poder havia comprado um bairro na capital russa para onde se mudar com os proventos dos roubos às custas o povo sírio, do contrabando e do tráfico de drogas.
O aparato bélico das forças armadas sírias não existe mais. Atualmente, com centenas de bombardeios israelenses, foi desintegrado em 80%, desde a marinha até a força aérea e as fábricas bélicas.
A nova Síria não conseguirá reconstruir uma capacidade militar defensiva significativa por décadas, o que significa que pode ser atacada a qualquer momento e terá dificuldades para controlar um território onde as milícias abundam. Também o Isis no Leste na mira dos estadunidenses, que deveriam proteger seus aliados curdos, deixados à própria sorte, como de costume. Com a ocupação do Golã, as tropas israelenses estão a algumas dezenas de quilômetros de Damasco: na prática, Al Julani, que protestou fracamente contra Tel Aviv, está literalmente sob a mira da tecnologia de guerra israelense, como demonstrou a guerra no Líbano, implementada também com a eliminação da liderança do Hezbollah. Nem vale a pena para ele se esconder, é quase um refém.
O encontro em Damasco entre Al Julani e o enviado especial da ONU, Geir Pedersen, teve implicações quase cômicas se a tragédia de um povo não estivesse envolvida. Pedersen reiterou a importância de uma transição política confiável e inclusiva, declarando: “A transição deve ser liderada pelos sírios e respeitar a soberania e a integridade do país”. Certamente, é evidente. Se Israel se apoderou do Sul, no Golã, e das ligações com o Líbano, no Norte, Ancara, que ocupa diretamente dois cantões sírios, lançou as milícias pró-turcas contra os curdos e o PKK, que agora pedem para tratar com Damasco.
De qual “integridade” da Síria Pedersen está falando? O governo israelense aprovou um plano para dobrar a população na parte do Golã sírio ocupada por Israel, mas afirma que não está interessado em entrar em conflito com a Síria, já tendo agora assumido o controle da zona-tampão monitorada pela ONU. Israel conquistou parte das Colinas de Golã durante a guerra árabe-israelense de 1967, antes de anexar o território em 1981. E os Estados Unidos, sob o governo de Donald Trump, reconheceram essa anexação em 2019, violando as resoluções da ONU. Daqui a pouco, com Trump na Casa Branca, Netanyahu e seu governo de extrema direita esperam que os EUA reconheçam a anexação de todo o Golã e das colônias na Cisjordânia.
Já é possível vislumbrar o habitual joguinho colonial israelense de dividir para conquistar. Nas 34 localidades das Colinas de Golã anexadas por Israel vivem cerca de 30 mil cidadãos israelenses, além de 23 mil drusos, uma comunidade que, em sua maioria, se declara síria, mas tem o status de residente em Israel. Agora, algumas comunidades drusas na parte recém-ocupada do Golã sírio já pediram para ser anexadas a Israel. Entre as pressões externas e as forças centrífugas internas, a integridade territorial da Síria parece estar sob grande pressão.
O terreno já está pronto. O governo Biden endossou imediatamente a narrativa de que a ocupação do Golã e as incursões israelenses são “medidas preventivas de legítima defesa” contra potenciais ameaças da Síria. Em suma, Israel pode invadir o quanto quiser dos territórios dos países limítrofes: a questão do duplo padrão sistematicamente implementado pelos EUA tornou-se embaraçosa.
A menos que faça parte de uma estratégia mais ampla, evocada entre gritos e sussurros nos corredores diplomáticos, ou seja, se a Rússia concordou em libertar a Síria de Assad - e agora negocia com Al Julani sobre bases russas - também pode negociar sobre a Ucrânia. E, mais uma vez, a Rússia, como acontece com frequência, não tem nada a dizer sobre a ocupação israelense do Golã. Talvez não seja um acaso.
Mas, para além das questões políticas e militares na Síria, uma tragédia humanitária está em curso, certamente não de hoje. Metade do patrimônio habitacional está destruído ou inabitável, tornando complicado até mesmo o retorno dos refugiados; 90% dos sírios vivem abaixo da linha da pobreza. Al Julani tem um orçamento estatal estimado pelo Financial Times em menos de 100 milhões de dólares: a título de comparação, Israel anunciou que investirá cerca de 10 milhões de dólares para dobrar o número de residentes no Golã, um décimo do que o líder jihadista tem em mãos para administrar todo o país. É evidente que o dinheiro da Turquia não será suficiente e, portanto, se abrirá a corrida em busca dos fundos das monarquias do Golfo, a maioria das quais já aderiu ao Pacto de Abraão.
O vácuo deixado pela queda do regime de Assad levanta questões cruciais sobre a segurança regional e sobre as dinâmicas geopolíticas imediatas e futuras. Mas já está claro que a Síria enfraquecida e exausta hoje ainda está lutando pela sobrevivência.
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Síria. O poder é uma caixa vazia para Al Julani. Artigo de Alberto Negri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU