06 Mai 2021
A intervenção de Gad Lerner, jornalista, nascido em Beirute, em 1954, de uma família hebraica que obrigado a deixar o Líbano, já aos três anos, transferindo-se para Milão, publicada na edição de abril da Nigrizia despertou reações acaloradas. A principal é aquela do ex-vice-presidente da Pax Christi Italia, Sergio Paronetto. A seguir está o artigo "incriminado", a carta de Paronetto, vice-presidente de Pax Christi e a resposta de Lerner.
A reportagem é publicada por Nigrizia, 05-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O planeta doente tem outras coisas com que lidar. E assim também o décimo aniversário do início da guerra na Síria transcorreu na indiferença geral. Os que ainda sobrevivem naquele atormentado país, assim como os milhões de refugiados que o deixaram, têm uma percepção clara da marginalidade a que estão condenados.
Por quem? Pela conveniência dos países ocidentais em se retirarem, enquanto o Irã e a Rússia continuam a ver no déspota Assad o peão de seu projeto hegemônico no Oriente Médio, não importa se culpado de centenas de milhares de mortes. E a Turquia, por sua vez, encontrou liberdade de ação para regular com sangue suas contas com a população curda, entregue a si mesma.
As emoções despertadas pela recente viagem do Papa Francisco ao Iraque (5-8 de março de 2021), sua abertura ao diálogo com o Islã xiita, sua visão alternativa em relação ao chamado Pacto de Abraão que fortalece naquela área a aliança dos fortes contra os fracos, no entanto não são suficientes para ignorar as críticas generalizadas na Síria ao seu comportamento no verão de 2013.
Jorge Bergoglio havia sido eleito para o trono papal há poucos meses, quando se tornou o protagonista - claro, pelo bem da paz - de uma forte iniciativa diplomática destinada a impedir a intervenção militar na Síria planejada pelo presidente dos EUA Barack Obama, em parceria com o francês François Hollande.
Talvez vocês se lembrem disso. O regime de Damasco era culpado de ataques com armas químicas que haviam provocado quase duas mil mortes no Ghuta oriental. Os porta-aviões já haviam se movimentado. O objetivo não era derrubar o regime de Assad, mas infligir a ele uma dura lição, transmitir uma mensagem dissuasiva aos seus aliados, fornecer apoio aos rebeldes e à população civil.
O Papa Francisco enviou uma carta ao G-20 reunido em São Petersburgo, imediatamente endossada por Putin (que não pedia nada melhor: poucos anos depois seria ele quem enviaria tropas para a Síria). Foi convocada uma vigília de jejum na Praça São Pedro que contou também com a presença da chanceler italiana Emma Bonino (creio que tenha se arrependido) e, inclusive, do ministro da Defesa, Mario Mauro. Obama se sentiu isolado e desistiu da ação.
Mas quando ficou claro que EUA e União Europeia não levantariam um dedo para estancar a carnificina síria, aqueles espaços foram definitivamente ocupados pelo ISIS e pelas potências regionais interessadas em cronificar o estado de guerra, fechando qualquer espaço a uma oposição de natureza democrática.
Eu sei, é difícil aceitar, especialmente para quem é inspirado por sentimentos religiosos genuínos. Entre aqueles que me leem, muitos discordarão. Mas às vezes o uso da força se torna dolorosamente necessário. Sarajevo docet. Enquanto isso, pessoas continuam morrendo na Síria.
Caro Editor, a opinião de Gad Lerner a respeito da Carta do Papa que Atrapalhou o Fim da Guerra na Síria (Nigrizia, abril de 2021) contém muitas imprecisões e, acima de tudo, a ideia, para mim horrível, que a falta de intervenção militar (externa) tenha sido responsável pela disseminação do ISIS e pelo fato de que “pessoas continuam morrendo” naquele país. A questão síria foi e é extremamente complicada. Escrevi a longo sobre isso em Note Mazziane (n.3, 2013).
Vou me deter apenas em alguns pontos.
O primeiro. A carta do Papa de 4 de setembro de 2013 não foi "imediatamente endossada por Putin". Era dirigida justamente a ele como organizador do G20 com o intuito de destacar “os tantos interesses partidários [que] prevaleceram desde o início do conflito sírio, impedindo de encontrar uma solução que evitasse o inútil massacre que estamos assistindo”.
O objetivo era abandonar "a vã pretensão de uma solução militar". É absurdo pensar que para se opor ao massacre em curso fosse necessário organizar outros massacres e um massacre ainda mais amplo, com a possibilidade de um conflito "mundial" entre os EUA e a Rússia e seus respectivos aliados. Uma guerra devastadora já em andamento precisava ser interrompida, não multiplicada.
O segundo. É arriscado dizer que Obama já havia planejado uma intervenção militar. Era uma hipótese. Em sua autobiografia detalhada (Barack Obama, Uma terra prometida) Obama não fala disso nem da mensagem do Papa. Na época, ele estava empenhado demais contra a Líbia de Gaddafi ou na busca de Osama bin Laden. Sobre a Síria, ele apenas diz que "nossas opções eram terrivelmente limitadas" e que ele era obrigado a "equilibrar interesses conflitantes".
O terceiro. A guerra síria foi uma guerra de muitas guerras. Com tantas variações ... Não havia duas frentes claras e opostas, mas vários lados friáveis, intercambiáveis, passíveis de chantagem por manobras interessadas que já financiavam centenas de bandos armados em um emaranhado de tensões muitas vezes incontroláveis. A promover terrorismo de vários tipos (incluindo aquele do ISIS) foram forças ligadas a alguns países árabes com a cumplicidade de estados "ocidentais" oportunistas e hipócritas. Antiterroristas em palavras.
Cúmplices dos terroristas de fato, especialmente após a invasão do Iraque em 2003. Em tal contexto, a hipótese de uma intervenção libertadora parece ser uma solução semelhante àquela que confiaria a erradicação da corrupção aos corruptos.
O quarto. Não é verdade que na Síria houve "críticas generalizadas" ao papa no verão de 2013. As opiniões eram variadas e divergiam em todo o Oriente Médio. Cristãos (e muçulmanos) estavam divididos internamente. Na verdade, o papa tinha diante de si comunidades religiosas e alguns patriarcas que viam em Assad um protetor para apoiar e defender (muitos o fazem até agora). Ele também tinha que se diferenciar deles.
O quinto. Se é verdade que “às vezes o uso da força [armada] se torna dolorosamente necessário”, penso que seja fundamental ativar a força desarmada de uma política não violenta ativa e multiforme. Infelizmente, a política internacional há tempo privilegia como resolutivas ações militares que adicionam dor à dor (e dinheiro ao dinheiro).
Quanto cinismo muitas vezes existe naqueles que dizem que não há alternativas às armas! Aqueles que poderiam ter intervindo para parar ou reduzir a violência podiam apoiar forças civis como a rede de Mussalaha (reconciliação), também defendida por Mairead Maguire, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1976.
O sexto. Se "na Síria as pessoas continuam morrendo", isso se deve a presenças armadas sustentadas ou toleradas de forma variada. É devido também à nossa corresponsabilidade. Nos lugares de conflito sempre há cumplicidades insensatas e ilegais, como as atuais a favor do Egito para as quais enviamos uma segunda fragata violando a Lei 185 de 1990 e "esquecendo" a tragédia de Regeni e o caso de Zaki.
Uma última menção às intervenções do papa. É ingênuo superestimá-los ou pensar que uma carta ou um documento sejam decisivos. O papa raramente é ouvido. Sobre as armas, além disso, há um silêncio quase total no mundo político (e na Igreja). Quem dera palavras fossem decisivas! Teríamos menos guerras. Menos produção e comércio de armas.
Teríamos uma política europeia de integração dos imigrantes. Teríamos iniciado uma política eficaz para superar as mudanças climáticas e parar a destruição das florestas. Teríamos uma Igreja desarmada e desarmante. No Conselho Nacional de Pax Christi, com quem se reuniu dois anos atrás, ele lamentava que, apesar de falar muito contra as armas, principalmente as nucleares, não fosse ouvido.
Sabemos bem que muitos falam de paz, mas preparam conflitos. Sobre o tema das guerras, o papa não é parte do problema, mas promotor de sua solução. Ele não é um pacifista ingênuo. É um promotor da não violência política. Mas é preciso o empenho de todos. E de uma boa política.
Respeito o ponto de vista de Sergio Paronetto, mas, embora ciente do fato que no emaranhado sírio a avaliação a posteriori vale menos ainda do que em outros lugares, mantenho o meu. Faço isso com hesitação, não só porque admiro o Papa Francisco, mas porque tenho muita certeza de que a violência não traz justiça.
No entanto, existem circunstâncias históricas em que mesmo os mansos e os justos são obrigados a pegar em armas. Em 2013, não se tratava de invadir a Síria, mas de opor uma força militar a um ditador que usava armas químicas contra a população civil. E dar apoio a uma revolta que ainda não era refém do ISIS. A princípio Putin ficou satisfeito com a frente anti-intervenção que se coagulou em torno do papa, depois aproveitou aquele vazio para enviar suas tropas à Síria.
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A carta do Papa que atrapalhou o fim da guerra na Síria. Um debate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU