20 Março 2025
"A carreira do ódio é, de fato, mesmo sob esse ponto de vista, destinada a não ter limites. Não é coincidência, portanto, que sua natureza ideologicamente fundamentalista e antilaica tenha voltado a inspirar em nosso tempo as dramáticas regurgitações de diferentes formas de totalitarismo e de tendências radicalmente antidemocráticas", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por publicado por La Repubblica, 18-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "não causa surpresa então, que nos atuais conflitos bélicos que dominam o cenário de nossa vida coletiva e angustiam as nossas vidas individuais, encontramos entre os principais protagonistas os fundamentalismos que invocam o nome de Deus para validar seu direito de exterminar o adversário. O ódio de Deus se torna um formidável aliado para reforçar o ódio do homem".
"A expressão autoritária-totalitária do poder - afirma o psicanalista - não é uma alternativa à arbitrariedade anárquica da vontade individualista, mas pode constituir sua máxima realização".
Os desconcertantes eventos geopolíticos atuais colocaram a paixão do ódio como protagonista indiscutível de nossa vida coletiva. É uma paixão que Lacan descreveu certa vez como uma “carreira sem limites”. De fato, não há limites para o ser humano em sua versão de Polemos, de deus da guerra. É por isso que Freud lembrava que a paixão do ódio sempre vem antes daquela do amor.
Ela gostaria de destruir tudo o que impede a vontade de afirmação do Um. Mas, ao contrário da agressividade, que é uma resposta reativamente imediata às frustrações impostas pela presença do Outro, a paixão do ódio aparece como uma espécie de paixão duradoura.
Ela não se consuma em uma reação impulsiva, como no caso da agressividade, mas tende a persistir, a se estabelecer como uma paixão “fiel” e “sólida”. Seu objetivo não é tanto responder violentamente ao que é percebido como uma frustração, mas planejar, com uma lucidez que pode até ser apática, a própria afirmação incontestável às custas do Outro.
Se na linguagem comum pode-se dizer que o ódio cega, é sempre bom lembrar que o ódio não é um simples tumulto emocional destinado a se desinflamar com o tempo, mas um impulso que visa negar o direito de existência àqueles que constituem o limite da nossa expansão individual ou coletiva.
Ao contrário da agressividade, que pode explodir em circunstâncias imprevisíveis para ser reabsorvida até num curto espaço de tempo, o ódio é uma paixão lúcida que se sedimenta e se alimenta com o tempo.
Isso porque, por meio do ódio, é possível buscar um ideal de solidez identitária. O ódio pelo judeu, pelo homossexual, pelo infiel, pelo negro, pela mulher, pelo palestino, etc., permite que a pessoa adquira uma própria consistência, uma própria natureza, um próprio ser.
O ódio pelo impuro, de fato, é necessário para definir o ser daquele que quer se considerar puro. Por exemplo, é dessa natureza o ódio que anima a fúria moral dos aiatolás contra as mulheres iranianas. Nesse caso, não se trata de uma simples reação agressiva, mas de uma visão de mundo que se manifesta precisamente por meio da paixão do ódio.
Nesse sentido, o ódio nunca é uma alternativa emocional à programação ou planejamento de seus objetivos. Muito pelo contrário. Sua lucidez exige justamente a programação e o planejamento.
Basta pensar no caso extremo da “solução final” adotada pelos nazistas contra os judeus. Se a reação agressiva for consumida em uma explosão violenta, até mesmo até a perda de controle, na incandescência de uma passagem ao ato que também pode ser dramaticamente violenta, a lucidez feroz do ódio que quer impor a identidade do Um à do Outro traz consigo uma cota necessária de impassibilidade.
Por esse motivo, ao contrário do impulso agressivo, a paixão lúcida do ódio perdura no tempo. E ainda por essa razão, ele não tem como objetivo apenas a derrota do adversário e o triunfo pessoal, mas sua aniquilação, a humilhação, a negação de sua própria dignidade.
A carreira do ódio é, de fato, mesmo sob esse ponto de vista, destinada a não ter limites. Não é coincidência, portanto, que sua natureza ideologicamente fundamentalista e antilaica tenha voltado a inspirar em nosso tempo as dramáticas regurgitações de diferentes formas de totalitarismo e de tendências radicalmente antidemocráticas.
Se a experiência da democracia se estrutura na irredutibilidade do Dois - na impossibilidade da existência de um único povo e de uma única língua, como lembra a Torá com relação à empreitada delirante dos homens da Torre de Babel - , a dos totalitarismos e dos impulsos populistas antidemocráticos exige, em vez disso, a supressão do pluralismo do Dois em nome do fanatismo do Um.
Não causa surpresa então, que nos atuais conflitos bélicos que dominam o cenário de nossa vida coletiva e angustiam as nossas vidas individuais, encontramos entre os principais protagonistas os fundamentalismos que invocam o nome de Deus para validar seu direito de exterminar o adversário. O ódio de Deus se torna um formidável aliado para reforçar o ódio do homem.
Não é por acaso que o próprio magnata Trump invoca a mão de Deus sobre sua cabeça como inspiração para sua missão de restauração da glória perdida dos Estados Unidos da América.
No entanto, como ensina a psicanálise, a busca do Um sem considerar a impossibilidade de suprimir o Dois só pode gerar morte e destruição. A recusa em reconhecer a existência separada do pluralismo do Dois, a vontade férrea de reconduzi-la ao monolinguismo do Um, estrutura a ilusão de uma comunidade que se constituiria na anulação delirante das diferenças, como uma comunhão que exclui toda liberdade.
Esse é o sonho que inspirou a terrível temporada de totalitarismos ideológicos do século XX. No entanto, hoje podemos observar uma variação crucial desse tema que vem do próprio Donald Trump. Pasolini a havia antecipado à sua maneira em seu Salò: a expressão autoritária-totalitária do poder não é uma alternativa à arbitrariedade anárquica da vontade individualista, mas pode constituir sua máxima realização.