20 Setembro 2024
"A fraternidade implica o exercício do mandamento do amor ao próximo, o mandamento novo, ou seja, o mandamento último e definitivo, que nos foi deixado por Jesus: 'Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros (allélous). Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros (allélous)' (Jo 13,34). Não a mim, mas uns aos outros, diz Jesus!", escreve Papa Francisco em prefácio do livro escrito por Enzo Bianchi, publicado por La Stampa, 17-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O novo ensaio do teólogo dedicado às bases da solidariedade humana. Publicamos o prefácio do Papa Francisco, no livro de Enzo Bianchi, Fraternità (Einaudi).
Livro Fraternità de Enzo Bianchi
Resistimos à crueldade passando do eu para o nós.
Se definirmos a fraternidade em seus efeitos, devemos logo dizer que é a resistência à crueldade do mundo. Desde que existe a humanidade, Pólemos, o demônio da guerra, está presente e se manifesta na rivalidade que vai até a negação, a morte do outro, como revela o fratricídio de Abel por Caim. É por isso que a fraternidade deve sempre se regenerar e resistir à rivalidade que leva à violência e à guerra. Infelizmente, a fraternidade é o que mais falta ao nosso viver juntos, e é precisamente a sua ausência que causa sofrimento. Sem a fraternidade, a igualdade e a liberdade continuarão sendo sempre valores ameaçados, fracos e facilmente desrespeitados.
Certamente, a fraternidade deve ser decidida por uma escolha: a rejeição da exclusão, a vontade de reconciliação, o desejo de uma profunda comunhão humana. Neste livro, o irmão Enzo Bianchi, com sua habitual profundidade humana e inteligência espiritual, mostra que a fraternidade é a vocação da humanidade. Somos todos irmãos e irmãs na humanidade, mortais, mas com a consciência de estarmos vivos para estar em relação uns com os outros. O grande dom que podemos acolher é o outro: próximo ou distante, conhecido ou desconhecido, amigo ou inimigo. Se ficamos um ao lado do outro, sempre temos um irmão, uma irmã à nossa frente e sentimos que temos uma única vocação: passar do “eu” para o “nós”, para viver juntos.
Se o amor e a amizade são busca, custódia e cultivo de um vínculo fundado no livre exercício do amor como dom, a fraternidade nasce como “vínculo já dado graças à origem, pelo qual se cria uma reciprocidade na qual nos mantemos”. O amor e a amizade conhecem a possibilidade do fim, da queda; a fraternidade não, porque se é irmão e irmã para sempre e ninguém escolhe os próprios irmãos e irmãs. Mas esse status de fraternidade é, ao mesmo tempo, dom e tarefa; estamos na mesma ordem da communitas, o lugar do cum-munus, no duplo significado de “dom” e “dever” comuns: como a comunidade, também a fraternidade é partilha de dom, de dever, de responsabilidade, e também na fraternidade há uma dívida que cada um vive para com os outros.
O filho que recebe a notícia do nascimento de um irmão vê sua própria condição de unicidade alterada. É decisivo que ele faça uma escolha livre de descentralização de seu próprio eu a fim de reconhecer uma alteridade com a qual se estabelece um vínculo dado, não escolhido.
Essa passagem do dom para a tarefa, essa aceitação do limite que se interpõe com a presença do irmão ou da irmã exige que seja eliminada a “unicidade”, que se supere o medo de perder “o lugar único”. E é aqui, no coração da fraternidade, que o medo do outro ressurge, a possibilidade de que o outro seja o inferno e, por fim, o medo da morte. Viver a fraternidade é, portanto, a primeira vocação humana, a tarefa por excelência: somente assim a vida conhece a convivência, a comunidade, e é vida boa em plenitude, por meio da qual homens e mulheres se humanizam. Nesse sentido, eu gostaria de delinear algumas linhas gerais para viver a fraternidade.
O primeiro requisito é a aceitação incondicional do irmão e da irmã: eles me são confiados no momento em que aparecem diante de mim e ao meu lado. O seu existir exige que nenhuma condição seja imposta à relação fraterna. Nas raízes da fraternidade está o respeito absoluto pelo outro, seu reconhecimento. O irmão/irmã não se escolhem, são um irmão/irmã na humanidade porque são seres humanos como eu, são irmão/irmã na igreja porque são batizados como eu, são membros da minha comunidade porque fazem parte dela como eu por meio de uma aliança.
Um segundo requisito para viver a fraternidade é assumir a responsabilidade uns pelos outros. “Sou eu o guardião do meu irmão?”. Nessa pergunta esse esconde a grande tentação de negar a responsabilidade. No entanto, o outro, o irmão que está diante de mim, é em si mesmo uma invocação, uma pergunta que exige minha resposta, a assunção de uma responsabilidade para com ele. A tentação que habita em nós é sempre a demissão, expressa pelo “não sei” de Caim. É remover a presença do irmão ou da irmã, para não assumir uma responsabilidade que é sempre uma descentralização de si mesmos e um assumir o cuidado do outro. Na realidade, não ver, não discernir o irmão, não cuidar dele quando precisa, já é trilhar um caminho homicida. Por causa de nossa omissão, o outro pode encontrar a morte!
Por fim, para viver a fraternidade se exige a solidariedade como requisito para a comunhão. A solidariedade, ou seja, o cuidado e a custódia mútuos, talvez sejam a experiência mais comprovada de fraternidade realmente vivida. Isso vale para todos os tipos de vida: em particular, a família é o primeiro lugar de solidariedade, o espaço no qual todo gesto ou comportamento exige reciprocidade, para que cada um possa viver o cuidado e a custódia do outro.
No Novo Testamento, especialmente na pregação de Paulo, o pronome allélon, “uns aos outros”, se repete com insistência, indicando fortemente a tarefa da solidariedade. Paulo frequentemente pede aos cristãos das diferentes comunidades que se estimem uns aos outros, para terem os mesmos sentimentos uns com os outros, que se acolham uns aos outros, que se corrijam uns aos outros, que esperem uns com os outros, que se cuidem uns aos outros, que se confortem uns aos outros, que se suportem uns aos outros, que vivam em paz, que carreguem os fardos uns dos outros... São muitas as passagens que contêm esse pronome, e são passagens nas quais a ênfase recai sempre sobre a solidariedade recíproca, sobre a reciprocidade vivida na gratuidade e na consciência de que o irmão só pode amar o irmão porque antes foi amado por Cristo.
Além disso, não se pode esquecer a frequência com que a preposição sýn, “com”, “juntos”, se repete nas cartas paulinas, juntamente com numerosos verbos: trabalhar juntos, alegrar-se juntos, sofrer juntos, rezar juntos, sentir juntos, caminhar juntos... Na fraternidade, “nunca se está sem o outro”, mas sempre sýn, juntos. A companhia de viver juntos comporta até mesmo o absurdo lógico de morrer juntos, como é indicado pelo Apóstolo: vocês, irmãos, “estais em nosso coração para, juntos, morrermos e vivermos" (ad commoriendum et ad convivendum: 2Cor 7,3). Com essa preposição, sýn, também são formados os substantivos sínodo - mencionados acima - e sinaxe, nomes da igreja que enfatizam precisamente o agir e o caminhar (ou seja, o estar) juntos.
“Reciprocidade” (allélon) e ‘juntos’ (sýn) são as constantes da solidariedade fraterna. É evidente, portanto, que a fraternidade implica o exercício do mandamento do amor ao próximo, o mandamento novo, ou seja, o mandamento último e definitivo, que nos foi deixado por Jesus: “Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros (allélous). Assim como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros (allélous)” (Jo 13,34). Não a mim, mas uns aos outros, diz Jesus! Essa fraternidade vivida no amor mútuo será o sinal tangível de ser discípulos de Jesus, de acordo com o que ele mesmo indicou: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (en allélois)” (Jo 13,35). É a realidade da fraternidade! Uma realidade que, aliás, constitui um dos aspectos do mistério inesgotável da Eucaristia: “O serviço fraterno dentro da comunidade é, de certa forma, a res do sacramento... A fraternidade que a Última Ceia sela é cimentada no serviço mútuo, no dom de um para o outro, do qual Jesus é a fonte e o exemplo”. É, portanto, no amor fraterno que se pode apreender o selo da “diferença cristã”, que se manifesta em um estilo de vida à insígnia da fraternidade e da comunhão. E é desse ser uma fraternidade que também pode nascer aquele paradoxal “bom comportamento” (1Pe 2,12) tão descrito por Tertuliano, que nada mais é que o resumo do ensinamento bíblico: [O Senhor diz:] “Mas a vós, que isso ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam; Bendizei os que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam” (Lc 6,27-28). O Criador havia resumido tudo isso em uma única frase, pela boca de Isaías: “Digam: ‘Vocês são nossos irmãos’ àqueles que os odeiam” (Is 66,5).
E somos chamados a dizer isso a todos, segundo as palavras do próprio pai da igreja: “Nós (cristãos) somos irmãos também com vocês, de acordo com o direito da natureza, que é nossa única mãe”.
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Fraternidade. A identidade criada pela fraternidade. Prefácio do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU