29 Novembro 2024
A chamada “crise dos imigrantes” mundial possui raízes no próprio sistema capitalista, configurando subproduto especialmente de políticas imperialistas, subimperialistas e elitistas que geram pobreza e violência levando inúmeras famílias das partes mais problemáticas do globo ao exílio, ano a ano. Valendo destacar que este cenário de ódio e atos violentos contra refugiados coincide com o crescimento da direita em todo o mundo – e de governos demagógicos “de esquerda” sobretudo na própria América Latina. A história aponta que o avanço da direita é sempre, invariavelmente acompanhado de aversão ao estrangeiro e sua resultante redução de direitos.
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor.
“Todo refugiado tem direito à proteção internacional. No entanto, o sistema internacional que deveria protegê-los está em crise”, declarou recentemente a Anistia Internacional (AI) em relatório intitulado Refugiados: Los Derechos Humanos No Tienen Fronteras, que “destaca as várias formas pelas quais os governos estão fugindo ou a evitando suas obrigações internacionais em relação aos refugiados”.
Neste informe de 104 páginas, a AI alega que em inúmeros casos ao redor do mundo com drástico destaque à América Latina, onde um terço da população vive na linha da pobreza, a busca por refúgio acaba gerando em ampla medida mais sofrimento a milhões de famílias.
Nos países latino-americanos, mesmo nos considerados mais avançados em direitos humano segundo os padrões regionais, ao menos parte das leis internacionais são praticamente mortas para refugiados em maior ou menor grau, dependendo de cada caso: cada governo estabelece suas próprias regras neste quesito, em muitos aspectos contrariando leis internacionais que se sobrepõem às nacionais – ou deveriam sobrepor-se a elas.
Além das próprias leis nacionais, na grande maioria dos países da região, quando se trata de refugiados ter menos valor principalmente em casos de racismo e direitos trabalhistas. E os relatos ano a ano têm sido trágicos.
O mais grave, e nada poderia ser pior a alguém que sai do país onde vive em busca refúgio, pelas incertezas que isto envolve: de acordo com cada caso, e existe mais exceção que regra em geral dentro dos Estados nacionais, muito em relação a um solicitante de refúgio no ingresso aos respectivos países depende da decisão arbitrária de cada oficial de Migração, envolvendo certos quesitos.
Especialmente no que diz respeito à delicada questão documental que, muitas vezes, é naturalmente problemática para um refugiado, embora clara e objetivamente prevista pelas leis internacionais: deve haver tolerância para ausência de documentos justificada, além de passagem irregular pelas fronteiras garantindo não devolução do requerente de proteção internacional.
Medidas excepcionais que geram tenebrosa incerteza a cidadãos ou famílias inteiras já traumatizadas, antes mesmo da entrada ao Estado em que buscará proteção de violência, repressão e as mais diversas questões humanitárias. Possibilitando a séria pontuação da Anistia Internacional em outro relatório, o de 2023 intitulado Resumen de la Situación de los Derechos Humanos en América y los Cambios que Se Han Producido en la Región a lo Largo de 2023:
"Os venezuelanos que vivem no Chile, na Colômbia, no Equador e no Peru enfrentaram barreiras significativas no acesso ao procedimento de asilo e a outros programas de proteção temporária ou complementar. Como resultado, muitos não conseguiram regularizar a sua situação e ter acesso a serviços básicos, incluindo serviços de saúde."
Dramática e constantemente transformando buscas por refúgio em outra experiência traumática para inúmeras familias, já vítimas de violações de direitos fundamentais em seus países de origem. E sem forças para reclamar, por razões óbvias, nos Estados onde requerem proteção.
Embora este quadro de exceções sobre as leis seja tendência internacional nos dias de hoje quando se trata de refugiados, o caso latino-americano pode ser considerado bastante acentuado, um destaque negativo assim reconhecido pelas mais diversas agências internacionais especializadas em direitos humanos.
Nesta região, a política invariavelmente desempenha importância preponderante ao se conceder refúgio, seja qual for a situação do indivíduo ou da família solicitante de proteção internacional: se oriundo de país aliado politicamente do Estado onde se busca abrigo, fatalmente terá a solicitação negada.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) foi criada em 1950 por uma resolução da Assembleia Geral da ONU, tendo iniciado trabalho em 1951 com carácter “apolítico, humanitário e social”.
“O mandato do ACNUR compreende basicamente duas áreas: fornecer proteção internacional, e buscar soluções duradouras aos problemas dos refugiados”.
Segundo seu estatuto, a ACNUR deve atuar justamente no apoio a refugiados para que trâmites e permanência nos países onde buscam proteção, sejam imparciais e apegados as leis, distantes da política.
O mesmo informe da AI supracitado, diz:
"Autoridades de vários países incluindo Chile, Colômbia, Equador, Estados Unidos, México e Peru não respeitaram nem protegeram direitos dos migrantes e refugiados, negando-lhes inclusive direito de solicitar asilo."
E observa ainda:
"Quem pratica jornalismo e defendia os direitos humanos, especialmente quem trabalha pela justiça climática e quem luta para proteger suas terras e o meio-ambiente, foram sujeitos a assédio, criminalização, agressões e homicídios, pelo que a região continua sendo uma das mais perigoso no mundo para essas atividades."
A maioria dos países americanos carece de sistemas sólidos para proteger defensores de direitos humanos. Forças de segurança responderam com força ilegítima às manifestações pacíficas. Autoridades continuaram violando o direito à vida, à liberdade, a um julgamento justo e à integridade física, e a detenção arbitrária foi generalizada.
Neste relatório a AI deu inglório destaque a “países como Bolívia, Brasil, Canadá, Colômbia, Equador, El Salvador, Honduras e México”.
No Peru, famílias venezuelanas solicitantes de refúgio têm sido massivamente atacadas e assassinadas, em certos casos com requintes de crueldade por civis locais ao longo dos últimos anos. Diante da mais absoluta inércia de todos os lados no país andino, bem como em toda a região.
Aos que conseguem escapar com vida, resta tentar “refugiar-se do refúgio”: a imensa maioria, que em muitos casos já tentou refugiar-se em outros países da região, busca proteção (com sucesso) nos EUA. Recentemente, Washington emitiu alerta sobre a gravidade da situação dos direitos humanos no Peru.
No estudo ¿Invisibles o invisibilizados? La COVID-19 y los solicitantes de refugio venezolanos en Perú, do ano de 2021, as acadêmicas peruanas Marta Castro Padrón e Luisa Feline Freier alegam que o próprio Estado peruano produz, pelo descaso, irreguaridade documental entre os venezuanos no Peru e, com isso, acentuando os problemas socioeconômicos destes na sociedade local.
No caso particular do Uruguai, para que se tenha ideia do nível dos direito humanos nesta parte do planeta, em meados da década passada quatro famílias sírias refugiadas da guerra civil, em um total de cerca de 40 pessoas acamparam em frente à sede de governo em Montevideu, clamando por retorno ao campo de refugiados no Líbano.
“Nosso futuro aqui é muito negro”, chegou-se a dizer entre os sírios em 2015 um ano após a chegada a território rio-pratense, já em busca de ida definitiva da América do Sul. Houve também relatos de problema com segurança: grupos de famílias diziam-se vítimas de roubos por parte de cidadãos uruguaios, em pouco tempo “protegidos” pelo país sul-americano.
Não se especificou, entre os sírios, a constância com que os refugiados eram roubados mas pelo contexto do relato, que fez de tudo para ser o mais diplomático possível com o Uruguai e com os uruguaios, ficou claro que se tratava de situação já insustentável aos árabes levantinos no sul do continente americano.
O próprio afamado Chile em matéria de direitos humanos na região, tem dificultado sobremaneira a concessão de refúgio através, sobretudo, de forte burocracia documental. Além dos casos de descriminação e atos de violência contra refugiados.
Pesquisa (disponível aqui) de 2018 da revista Scielo, intitulada Violencias contra la Infancia Migrante en Santiago de Chile: Resistencias, Agencia y Actores, que inclusive entrevistou migrantes no Chile, identificou que “meninas, meninos e seus familiares sofrem práticas racistas na busca por moradia familiar, na convivência diária no bairro, no espaço escolar com diretores-professores, e entre seus semelhantes no dia a dia”.
Em 2022 Eduardo Stein, representante especial conjunto do ACNUR, repudiou (disponível aqui) a violência de parte da sociedade chilena contra venezuelanos. Neste comunicado, Stein observou que “nenhuma pessoa merece ser discriminada. Construir uma cultura de paz que promova convivência e respeito à diversidade, é tarefa de todos que compõem uma comunidade”.
Levantamento da ACNUR de 2019 reportou que em 2018 na Bolívia, simplesmente nenhum cidadão venezuelano obteve refúgio. Neste país andino que se declara, politicamente, “nação irmã” da Venezuela, as milhares de famílias venezuelanas vivem em condições deploráveis mendigando dinheiro pelos centros das principais cidades, ou revendendo pelas ruas doces (especialmente pirulitos, gomas de mascar e alfajores) comprados de atacadistas: pessoas imundas todo o dia e noite, sem acesso à saúde, educação nem justiça, acompanhadas de pequenas crianças penduradas nos braços debaixo de sol e chuva, atrás de alguns centavos. Em não raro casos, dormindo nas ruas toda a noite com menores de idade. Não poucos acabam optando pela delinquência, e/ou mergulhando no mundo das drogas.
De 2018 para cá, nada mudou nas amargas estatísticas documentais e na realidade do dia a dia em relação a direitos humanos no país ao centro geográfico da América do Sul, apesar da milionária propaganda internacional do governo boliviano no que diz respeito aos direitos humanos.
Pelo contrário, e a negativa de acolhimento humanitário (muitas vezes agressiva por parte de oficiais) vale, outrossim, a cidadãos de outras nacionalidades sul-americanas em território governado pelo denominado Movimento ao Socialismo (MAS).
Em 2019, 405 venezuelanos solicitaram refúgio na Bolívia, dos quais 57 obtiveram esta condição no ano seguinte, entre outros tantos pedidos que seguiram pendentes. Contudo, “após as eleições de outubro de 2020 e o regresso ao poder de um governo semelhante ao venezuelano, houve alguns retrocessos”, segundo a revista jurídica peruana Ideele, referindo-se ao atual governo de Luis Arce do MAS. Dados de 2021 apontam para mais de 10 mil venezuelanos mas principais cidades bolivianas, dedicados ao trabalho no comércio informal ou trabalhando em pequenos negócios.
Em 2020 Marcel Rivas, diretor do Departamento de Migração da Bolívia afirmou:
De forma recorrente, as ruas e avenidas do país, principalmente de La Paz, Cochabamba e Santa Cruz, têm sido tomadas por famílias de cidadãos venezuelanos que, na maioria dos casos, pedem esmolas ou outros tipos de colaboração para sustento diário, enquanto esperam a ajuda das autoridades para legalizar a permanência na Bolívia ou migrar a outros países da região.
A situação torna-se ainda mais dramática pois, na tentativa de regularizar a permanência em território boliviano, os venezuelanos deparam-se com exigências documentais levando a impossibilidade quase total de se inociar este trâmite, além dos altos custos exigidos pela Migração boliviana.
Como observou Ideele em 2021, geralmente são organizações sem fins lucrativos ou organizações internacionais de proteção dos direitos humanos, quem têm monitorado a situação dos refugiados venezuelanos em território boliviano. Ou seja, há destrato com esquecimento absoluto de migrantes venezuelanos por parte do governo boliviano.
Ao mesmo tempo, a Organização de Estados Americanos (OEA) declarou que tem havido retrocesso na proteção a refugiados em geral na região, devido a questões relacionadas à política. A Secretaria-Geral da OEA para a Crise de Migrantes e Refugiados Venezuelanos declarou em 2020 que, sob o governo de Evo Morales, migrantes venezuelanos e solicitantes de refúgio eram totalmente invisíveis, a ponto de pedidos de refugiados não ser processados segundo dados da Conare da gestão da presidente Jeanine Áñez (2019-2020).
O jornal boliviano El País reportou (disponível aqui) a realidade dos imigrantes venezuelanos, a qual não se restringe a cidadãos desta nacionalidade na Bolívia, especialmente quando o assunto é proteção para refugiados:
Os migrantes no país enfrentam problemas como acesso à alimentação, saúde, local para dormir, trabalho e aconselhamento jurídico. Alguns sobrevivem com base no trabalho informal e no empreendedorismo graças à ajuda de instituições humanitárias que lhes fornecem alimentação, abrigo e apoio jurídico.
E sobre o drama sem fim de determinada família venezuelana com crianças pequenas, contou que “sem dinheiro para pagar a diária do quarto onde dormiam, muitas vezes tinham de dormir na rua protegidos apenas por plástico e sobre papelão”.
No final desta reportagem específica sobre os imigrantes venezuelanos na Bolívia, El País resumiu da seguinte maneira a condição das famílias desta nacionalidade, cuja realidade reflete a realidade de famílias solicitantes de refúgio no país andino de outras nacionalidades também:
Sem casa – Sem dinheiro para pagar pelas diárias dos quartos, muitas vezes [os migrantes] têm de dormir na rua, protegidos apenas por plástico e papelão. Trabalho – Muitos migrantes têm filhos pequenos com quem trabalham nas ruas, apesar do perigo da pandemia. Desconfiança – A maioria da população boliviana prefere não contratar migrantes [das mais diversas nacionalidades], por medo e desconfiança.
Diante disso tudo, além da frequente violência verbal e física a que muitas vezes são submetidos por cidadãos bolivianos (que vitimizam também, com bastante frequência, cidadãos de outras nacionalidades solicitantes de refúgio tratando-os como invasores, vagabundos e até terroristas pela qualidade de solicitantes de asilo), diversas famílias oriundas do país de Simón Bolivar e Hugo Chávez tentam escapar especialmente ao Chile, onde em muitos casos morrem de frio, vítimas de catástrofes naturais ao tentar escalar geladas montanhas que separam o território boliviano do chileno, ou por violência de cidadãos e da Polícia chilena.
Muitos acabam indo aos Estados Unidos especialmente na condição de “mochileiros”, onde ingressam ilegalmente a fim de forçar a apreensão logo na fronteira, através da qual solicitam refúgio. Os venezuelanos, aos milhares em direção aos EUA nos últimos anos, tem obtido refúgio em solo americano sem maiores problemas. Exatamente tal fato, resulta em reclamação constante de Donald Trump ultimamente.
Famílias venezuelanas sem a mesma sorte em solo boliviano acabam retornando à própria terra natal, principalmente através do programa governamental Misión Vuelta a la Patria (disponível aqui) de Nicolás Maduro: com retorno gratuito oferecido por Caracas, vão viver bem menos miseravelmente, apesar de todos os problemas que a Venezuela enfrenta, que na nação “irmã” andina.
Já em 2017, o jornal boliviano Los Tiempos publicou reportagem intitulada Venezuelanos Buscam Vida Melhor na Cidade [de Cochabamba], mas Sonham em Voltar (disponível aqui). No final desta publicação em que migrantes venezuelanos relatam o drama e a miséria que vivem na Bolívia, o sociólogo Jorge Miguel Veizaga, pesquisador do Centro de Estudos Populacionais, observou:
Normalmente temos sido um país de expulsão, historicamente isso é evidente (…). Infelizmente, na Bolívia não mudamos a lógica da migração há décadas, e esta se define como herança de uma situação e momento histórico em que existe uma rejeição negativa aos imigrantes, e nada favorável à sua situação.
Vale recordar que em 2019, apesar das promessas iniciais do então presidente Evo Morales (2006-2019) de acolhimento e das leis internacionais para solicitantes de refúgio, que os protege da devolução sem antes ser entrevistados com apresentação de provas nos países onde buscam asilo ainda que a entrada a estes países tenha sido irregular, Cesare Battisti acabou, em poucos dias na Bolívia após escapar do regime de Jair Bolsonaro no Brasil, sendo surpreendido pela Polícia boliviana e entregue sumariamente à Interpol (disponível aqui) sem direito a apresentar sua versão à Conare boliviana.
À época, Morales estava em campanha presidencial e, certamente, receava perder popularidade na já convulsionada Bolívia oferecendo as garantias legais previstas internacionalmente a Battisti, preso nas proximidades do centro de Santa Cruz de la Sierra. Acusado de assassinato pela justiça italiana, o militante comunista havia estado como refugiado político no Brasil sob os governos de Lula e Dilma Rousseff.
O menos grave na Bolívia para solicitantes de refúgio, de diferentes nacionalidades: provimento de informações e trato pessoal são trágicos por parte de oficiais do Estado, mesmo em orgãos como a Conare ainda que já estando em território boliviano, e mesmo que solicitando orientação pessoalmente.
Houve caso em que, até onde se sabe, pelo menos uma família brasileira solicitante de refúgio com criança de um ano e meio, teve celular roubado no centro de uma grande cidade a leste do país: em urgente necessidade de atualizar número telefônico para ser contatada pela Conare a fim de ser entrevistada, asperamente foi-lhe dito por oficial do Ministério de Relações Exteriores (autorizado pela Conare a atender refugiados, inclusive para solucionar procedimentos como este) que cruzasse todo o país para, pessoalmente em La Paz, fornecer novo número. Entre outros convites implícitos a se abandonar a Bolívia, ou vivendo ilegalmente no país, meter-se na delinquência para sobreviver.
Até os dias de hoje, mesmo estrangeiros regularmente residentes na Bolívia constantemente denunciam – em meio a fatos horrendos – sofrer forte discriminação, com direitos a educação e saúde negados. Em diversos casos, é “mencionado” pelos bolivianos a cidadania da vítima, para sentenciar o comum: “é estrangeiro, não tem o direito de reclamar”. Não poucos estrangeiros acidentados ou enfermos acabam morrendo, sem mínima atenção médica das maneiras mais aberrantemente negligentes apenas por não ser bolivianos.
O Brasil já é bem conhecido pelo racismo estrutural, sendo cada vez mais desfeita, nesta era da informação em tempo real, a ideia de sociedade “aberta”, “acolhedora”, “pacífica” e outros mitos deste tipo. No caso de estrangeiros refugiados em solo “verde e amarelo”, tudo piora de maneira assustadoramente significativa.
Em abril de 2022, dez relatores especiais da ONU elaboraram um relatório desmontando o mito de ser o Brasil um país acolhedor aos estrangeiros. Entregue ao governo de Jair Bolsonaro, o documento assinado por relatores como Tendayi Achiume, Dominique Day, Balakrishnan Rajagopal, Cecilia Jimenez-Damary, Felipe González Morales, Olivier De Schutter e outros, denunciou uma série de violações de direitos humanos contra imigrantes e refugiados, principalmente africanos, haitianos e venezuelanos.
No comunicado, os relatores alegavam que “levantam preocupações de que políticas e práticas discriminatórias contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo [no Brasil] violam a legislação doméstica do governo, e suas obrigações sob o direito internacional”.
Os relatores acrescentaram ainda estar “alarmados com os relatos de que a discriminação racial sistêmica e a violência racista contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo foram exacerbadas nos últimos anos” no Brasil.
De acordo com a carta, os requerentes de asilo africanos enfrentavam dificuldades logo na chegada ao Brasil. “Ao desembarcar, alguns estão confinados em aeroportos brasileiros por tempo indeterminado, mesmo que tenham toda a documentação e outros requisitos necessários para permanecer no país. Após o confinamento, alguns requerentes de asilo são enviados de volta ao seu país de origem, sem avaliação individualizada dos riscos de repulsão pelos funcionários.”
“Além disso, alguns migrantes africanos e haitianos no Brasil tornaram-se vítimas de violência física e simbólica no país. Nos últimos 20 anos, tem havido múltiplas manifestações de racismo e xenofobia, incluindo assassinatos e prisões arbitrárias de africanos e haitianos, o incêndio de residências universitárias que apoia os migrantes africanos, e expressões públicas de sentimentos racistas e xenófobos, incluindo discursos de ódio e grafites contra a presença de migrantes africanos em cidades brasileiras”, apontaram os relatores.
Recebimento de comida crua, água insuficiente, as piores roupas e apenas uma escova de dente para toda uma família. Recusa de entrega desodorantes, fraldas e materiais de higiene em geral. Situações menos grave entre as já enfrentadas por haitianos e venezuelanos no Brasil que se tem conhecimento ao longo dos anos, tais ocorrências envolveram refugiados destas nacionalidades no albergue público Vida Centro Humanístico na zona norte de Porto Alegre, durante as enchentes no estado no primeiro semestre deste ano de acordo com reportagem da Agência Brasil de maio.
“Quando eles [os imigrantes] vão lá pedir uma coisa, às vezes eles dizem que não tem, mas quando vem o representante da associação, ou eu mesma, a gente pede e eles dão para nós e nós entregamos para os imigrantes”, relatou à Agência Brasil a presidente da Associação de Haitianos no Brasil, Anne Bruneau, quem atuou como voluntária neste e em outros albergues porto-alegrenses. Anne afirmou que casos de xenofobia e discriminação também ocorrem em outros albergues públicos da cidade.
“Várias crianças [refugiadas] não estão comendo direito, adultos [refugiados] não estão comendo direito porque a comida está sendo [servida] crua”, acrescentou a ativista haitiana pelos direitos humanos.
Silvia Sander, oficial de proteção do Acnur na capital gaúcha, declarou à Agência Brasil que estes fatos não são isolados. “Pessoas refugiadas e imigrantes devem ter o mesmo acesso [que os brasileiros], pois têm o mesmo direito de pessoas brasileiras também afetadas”, acrescentou Silvia.
Em outra reportagem (disponível aqui), publicada pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria também em maio deste ano, a refugiada venezuelana Makhariannys Gonzalez relatou que teve que sair de dois albergues de Porto Alegre devido ao ambiente insuportável causados pelos brasileiros, envolvendo mais casos de xenofobia e discriminação.
“Saímos do primeiro abrigo porque não tinha água, e as condições não estavam adequadas. Havia situações de preconceito. Ontem , o grito do preconceito saiu. Não dava para aguentar mais. Além da minha mãe, que é idosa, encontrei uma mulher chorando. Guardaram as frutas para as crianças e nos deixaram comer por último, depois dos brasileiros. Falamos com alguns representantes , que foram legais conosco. Mas a diretora, especificamente, fez toda essa sacanagem”, relatou a venezuelana.
Makhariannys denunciou que aos casos de abuso somaram-se ofensas verbais aos refugiados venezuelanos em determinado albergue, bem típicas em relação ao que ocorre de norte a sul do Brasil. “Fizeram uma reunião com todos os imigrantes [em albergue de Porto Alegre], como sempre separados dos outros. Disseram que a comida para nós teria que ser reduzida, que o barulho das crianças era quase insuportável e que não poderíamos pegar roupas porque já tínhamos muitas, sendo que só temos roupa suja que não dá para lavar. Fomos chamados de ignorantes e famintos de uma maneira muito arrogante. Com essa situação, dessa vez não vou me calar. A situação foi muito séria, o preconceito falou bem alto dessa vez, e tivemos que sair daquele abrigo, infelizmente”.
Reportagem (disponível aqui) de agosto de 2021 de O Joio e o Trigo, revelou que em Santa Catarina 30 por cento das denúncias de discriminação de etnia, cor e raça registradas no ambiente de trabalho desde 2014 envolvem haitianos ou africanos, principalmente do Congo e Senegal segundo o Ministério Público do Trabalho daquele estado.
“Quando chegamos aqui [em 2012], era como se tivesse chegado um grupo de escravos. Na leitura da sociedade [catarinense], a gente só precisava comer e pronto. Estranhavam quando nos viam arrumados e usando celular, como se a gente tivesse saído de outro planeta”, contou o refugiado haitiano Nahum Saint Julien.
Nahum denunciou ainda que trabalhava em média 12 horas por dia, com intervalo apenas para almoço., e que seu salário era inferior ao dos brasileiros que exerciam a mesma atividade. “O que mais me marcou foi que na minha ficha, colocaram que eu era analfabeto”. Ironicamente, o refugiado haitiano mais tarde trabalharia como efetivo na Prefeitura de Chapecó, graças a aprovação de uma lei complementar em 2019 que possibilitou a contratação de imigrantes em cargos públicos. Mas Nahum acabou perdendo a função dois anos depois, quando o prefeito João Rodrigues (PSD) tomou posse e anulou a lei.
De acordo com O Joio e o Trigo, os haitianos relatam dificuldades para receber assistência do município para renovação dos documentos de permanência no Brasil. Gabeaud Lenes, presidente da Associação dos Haitianos em Chapecó, contou que houve casos de haitianos que haitianos estavam aguardando a renovação dos documentos havia já dois anos.
“O Centro de Atendimento ao Imigrante (Crai), inaugurado pelo governo de Santa Catarina em 2018 para atender essa demanda, foi fechado um ano depois sob alegação de falta de verba”, reportou O Joio e o Trigo, quem também relata que as denúncias espalham-se entre instituições como Defensoria Pública e Ministério Público, que no fim acabam dando em nada.
A antropóloga Janaina Santos, membro do Grupo de Apoio a Imigrantes e Refugiados de Florianópolis e coordenadora de avaliação e apoio pedagógico da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), relatou que “tem muitos relatos de que eles são obrigados a trabalhar nas piores condições, piores horários, recebendo menos e enfrentando o racismo estrutural e religioso, principalmente os muçulmanos, mas que é muito difícil de obter provas”.
Também adquiriram fama trágica ao longo dos últimos anos os violentos ataques de brasileiros contra famílias venezuelanas no estado de Roraima, incluindo assassinatos. The Intercept publicou reportagem em 2019 neste sentido, intitulada "Virou Rotina Agredir e Assassinar Venezuelanos em Roraima", descrevendo a que ponto chega a profunda "xenofobia dos brasileiros estimulada pelas autoridades".
“O crescimento do número de refugiados não é problema temporário nem produto de acontecimentos fortuitos, mas consequência previsível de crises de direitos humanos, resultado de decisões tomadas por indivíduos que exercem poder sobre vidas humanas”, diz o informe da AI (disponível aqui) citado no primeiro paragrafo desta investigação.
O informe da AI outrossim supracitado, Resumen de la Situación de los Derechos Humanos en América y los Cambios que Se Han Producido en la Región a lo Largo de 2023 (disponível aqui), pontuou:
As autoridades [no continente americano] devem suspender urgentemente as expulsões ilegítimas, respeitar o princípio da não devolução e abster-se de deter refugiados e migrantes. Os Estados devem também garantir que todos possam solicitar asilo, e tenham acesso a um procedimento justo e eficaz para tanto, especialmente quem foge de violações massivas dos direitos humanos, bem como proporcionar aos refugiados proteção a que têm direito. Devem combater racismo e xenofobia exercidos contra a população migrante, refugiada e requerente de asilo.
E destacou:
A impunidade relacionada a violações dos direitos humanos, incluindo crimes de direito internacional, continuou sendo regra em países como Bolívia, Brasil, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, México, Nicarágua, Peru, Uruguai e Venezuela, apesar de progresso ter sido registado em alguns países.
A chamada “crise dos imigrantes” mundial possui raízes no próprio sistema capitalista, configurando subproduto especialmente de políticas imperialistas, subimperialistas e elitistas que geram pobreza e violência levando inúmeras famílias das partes mais problemáticas do globo ao exílio, ano a ano. Valendo destacar que este cenário de ódio e atos violentos contra refugiados coincide com o crescimento da direita em todo o mundo – e de governos demagógicos “de esquerda” sobretudo na própria América Latina. A história aponta que o avanço da direita é sempre, invariavelmente acompanhado de aversão ao estrangeiro e sua resultante redução de direitos.
A sombria realidade relacionada aos solicitantes de asilo ligada a abusos de poder, falta de acesso à justiça, impunidade e discriminação dentro de cada Estado latino-americano, tem também raíz na falta de compromisso dos governos locais para enfrentar esta situação na região onde, mais de metade do rendimento total, fica com os 20 por cento mais ricos – em cuja desigualdade o Brasil encontra-se, historicamente, na desgraçada vanguarda.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vozes silenciadas: o Calvário de refugiados na América Latina. Artigo de Edu Montesanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU