26 Abril 2025
A socióloga traça um retrato de um Papa Francisco que escapa a todas as categorias facilmente usadas para descrever o cenário católico contemporâneo.
O artigo é de Danièle Hervieu-Léger, diretora de estudos da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS), publicado por Le Monde, 23-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Qual é o balanço do pontificado de Francisco? Após doze anos de reinado e uma série de iniciativas sem precedentes na história do papado, a pressão para responder a essa pergunta o mais rápido possível é inevitavelmente insistente, enquanto ocorreria, ao contrário, um amadurecimento prudente da análise. E é ainda mais difícil tentar uma resposta porque o processo de reflexão é dificultado por avaliações extremamente contraditórias - desde as mais elogiosas até as mais violentamente ultrajantes - que recaíram sobre ele durante seu mandato no Vaticano.
Seus antecessores certamente foram contestados, tanto dentro quanto fora do catolicismo, mas nenhum deles foi objeto, como Francisco, de campanhas hostis organizadas, retomadas e amplificadas pelas redes sociais, dirigidas diretamente contra sua pessoa e sua legitimidade. E nenhum dos predecessores, como demonstrou a recepção da encíclica Laudato si' sobre a proteção da “casa comum” (o texto seminal de Francisco sobre ecologia publicado em 2015), conseguiu fazer ressoar uma mensagem romana tão amplamente além dos limites do mundo católico.
Se é obviamente impossível avaliar o impacto que o pontificado de Francisco terá sobre o futuro do catolicismo, é igualmente difícil imaginar o impacto que o papa argentino terá sobre a memória dos fiéis e da opinião pública. Será que a grande ruptura com a condenação secular dos homossexuais será lembrada com a agora famosa pergunta “Se uma pessoa é homossexual, quem sou eu para julgar”, ou a violência com que ele definiu os médicos que realizam abortos de “sicários”?
Ele será lembrado por sua audácia ao nomear mulheres para cargos importantes na administração da cúria, ou pela interminável procrastinação sobre a decisão de permitir que elas fossem ordenadas diáconas? Sua preocupação sincera pelo reconhecimento do trabalho pastoral delas na Igreja ou a “magnificação” de viés essencialista da suposta especificidade da vocação delas, alheia, por definição, ao exercício do poder sagrado? Em que situações Francisco é mais fiel a si mesmo? Quando denuncia com extrema severidade, na cara dos envolvidos, os “pecados capitais” dos membros da cúria [o governo da Igreja] que ele corajosamente se empenhou em limpar de seus miasmas? Quando denuncia implacavelmente a lógica mortal do clericalismo e as práticas escravizadoras que ele autoriza? Ou quando se recusa a receber os membros da Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja para discutir a natureza sistêmica da violência sexual na Igreja?
Da mesma forma, pode-se enfatizar seu rigor inflexível, em nome da fidelidade ao Concílio Vaticano II (1962-1965), em relação àqueles que abusam da liturgia tridentina (uma liturgia que remonta ao Concílio de Trento do século XVI e inclui a missa em latim), enquanto surpreende seu apego às chamadas formas “populares” de religiosidade, muito distantes da sobriedade devocional incentivada pelo Concílio.
Pode-se comentar sobre a disparidade entre o escopo global da consulta aos fiéis realizada por ocasião do “sínodo sobre a sinodalidade” [ou sínodo sobre o futuro da Igreja, organizado de 2021 a 2024] e a relutância em acolher as conclusões que resultaram desse processo, totalmente inédito na história da instituição, etc.
Se falará de oportunidades perdidas e se discutirá sobre as contradições e as incoerências que ofuscaram a identificação clara da direção do pontificado durante seu desenvolvimento. Em todo caso, Francisco não se encaixa facilmente nas categorias de classificação (progressistas versus conservadores, abertos versus tradicionalistas...) comodamente (e muitas vezes preguiçosamente) usadas para esclarecer a complexidade de um cenário católico difícil de decifrar.
É ainda mais difícil encaixá-lo nelas porque Francisco vem de um continente - a América Latina - e, em particular, de um país - a Argentina - onde o lugar do catolicismo contemporâneo foi construído dentro de uma trajetória da relação entre religião e política e da emancipação do sujeito individual que se encaixa apenas parcialmente nos modelos clássicos da secularização europeia de que essas categorias derivam.
Além disso, é na Argentina, nesse país, moldado nos séculos XIX e XX por ondas migratórias da Espanha e, depois, da Itália, e agora lutando contra o influxo maciço de migrantes de países andinos que se aglomeram nas periferias de Buenos Aires, que devemos procurar as raízes mais profundas da preocupação de Francisco pelas “periferias”, aquelas regiões deixadas para trás pela globalização neoliberal, apagadas por uma sociedade de consumo que ele condena como uma “sociedade do descarte”.
O destino dos migrantes não é apenas uma preocupação pessoal ardente do Papa argentino, inseparável de sua história familiar e da experiência pastoral vivida em seu país. É o fio condutor de seu pontificado.
Lembramos que um de seus primeiros atos após sua eleição em 2013 foi visitar pessoalmente a ilha de Lampedusa, para onde afluem refugiados e exilados de todas as margens do Mediterrâneo. Mais recentemente, em fevereiro de 2025, ele enviou uma vigorosa resposta por escrito ao vice-presidente dos Estados Unidos, que se referia à noção agostiniana [herdada de Agostinho de Hipona] da ordo amoris [a “ordem do amor”, uma noção que postula uma hierarquia na ordem da caridade] para reivindicar a legitimidade cristã do egoísmo nacional e, ao mesmo tempo, justificar as expulsões em massa de migrantes implementadas por Donald Trump.
Lembrando que o amor cristão - a ordem cristã da caridade - constrói uma “fraternidade aberta a todos, sem exceção”, contra qualquer restrição de solicitude por aqueles que são próximos ou semelhantes a nós, fica claro que O Papa Francisco contradiz deliberadamente as considerações políticas, econômicas ou culturais apresentadas em nome do “realismo” para justificar o estabelecimento de condições para o acolhimento do outro.
Opor a prática de um cristianismo radicalmente hospitaleiro a todas as tendências de fechamento que minam os fundamentos éticos das sociedades democráticas de hoje talvez continue sendo um dos últimos atos de ruptura de um Papa decididamente inclassificável e o coração de seu legado.