26 Abril 2025
O futuro é incerto, o conclave parece bastante aberto. Não há candidatos óbvios e as forças conservadoras vem se movimentando. Continuarão as reformas iniciadas ou se retrocederá mais uma vez na implementação do Concílio Vaticano II? Será escolhido um Papa Francisco II ou um João Paulo III? Perguntas que inquietam, mas que demorarão a ser respondidas. Uma coisa é certa, ainda que venha um novo inverno eclesial, não se conseguirá apagar facilmente a primavera bergogliana.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Tristezas ou preocupações em momentos difíceis. Você tem que dizer 'bom, estou sofrendo', dizer a verdade para si mesmo, mas o sofrimento não vai embora”, confessou o Papa Francisco em uma entrevista inédita ao jornalista Nelson Castro. Desde a segunda-feira de Páscoa (21), pessoas de todo mundo tentam entender o que significa a partida do Papa Francisco. Para além das análises dos modelos eclesiológicos em disputa no iminente conclave, irrompe a intensa saudade e o luto dolorido. O vazio deixado por um líder tão próximo, compassivo e humano como o Papa do fim do mundo, não será preenchido com a expectativa pela eleição do novo pontífice.
Alguns se apressam a querer olhar para frente, enquanto outros instam a confiar em Deus, como se o momento não inspirasse recolhimento, meditação e até um certo grau de apreensão. Acreditar e ter esperança não significa alienar-se e ignorar a complexidade da realidade. Para poder seguir é imprescindível encarar o caminho, com suas belezas e também agruras. E o próprio Francisco ajuda a enfrentar essa orfandade com sua típica profundidade inaciana: “a vida é a vida e adoçar a realidade significa trair a verdade das coisas”[2].
Por mais que se viva em um mundo secularizado, com uma grande perda de influência da Igreja na sociedade, o papado ainda possui um peso e negá-lo beira à ingenuidade ou evidente desconhecimento. Como bom jesuíta, Francisco buscou sempre e com todas as suas forças a “maior glória de Deus” e o “bem mais universal”, como recomenda Santo Inácio de Loyola na Fórmula do Instituto (1). E com esse fim, não deixou de colocar os meios necessários que estavam ao seu alcance.
Há algumas décadas já proclamava o outro Pedro, o Casaldáliga da Igreja da Caminhada, sobre a importância do despojamento das pompas pontifícias: “Deixa a Cúria, Pedro,/ Desmonta o sinédrio e as muralhas,/ Ordene que todos os pergaminhos impecáveis sejam alterados/ pelas palavras de vida e amor”. E o papa argentino com seus gestos desconcertantes chacoalhou as estruturas e dessacralizou a sua própria posição institucional.
Ele sabia que o centro é Jesus de Nazaré e não a cúria romana, com seus cardeais e monsenhores. Por isso, não teve medo de relativizar processos e funções, normas e rituais e nem mesmo de relativizar-se a si próprio. Afinal, “o ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor” e não o contrário. E assim a regra do “tanto quanto” do Princípio e Fundamento dos Exercícios Espirituais (EE 23) lhe era absolutamente natural. Quantas vezes terá meditado sobre o apelo ao crescimento da liberdade interior?
“Vamos ao jardim das plantações de banana,/ revestidos e de noite, a qualquer risco,/ que ali o Mestre sua o sangue dos pobres”, continua o poema do bispo do Araguaia. E Bergoglio contemplou a terrível Terceira Guerra Mundial em pedaços que faz o mundo sangrar. De olhos bem abertos, pediu a graça da “dor e confusão” (EE 48), como na Primeira Semana dos Exercícios Espirituais, pela crueldade e o absurdo dos conflitos armados.
Chorou pela matança na Síria, no Sudão do Sul, na Ucrânia... “A túnica/roupa é essa humilde carne desfigurada,/ tantos gritos de crianças sem resposta,/ e memória bordada dos mortos anônimos”. Revestiu-se da humilhação dos milhões de migrantes e refugiados traficados, abusados e rejeitados, denunciando o cemitério que se tornara o Mar Mediterrâneo. Até o fim esteve em plena comunhão com o atroz sofrimento dos esquecidos de Gaza, a quem telefonou centenas de vezes para se fazer próximo e solidário.
Como há muito não se via, por suas posições proféticas e corajosas, constituiu-se em uma autoridade moral quase única, em um mundo com grave escassez de lideranças. Rejeitou conchavos espúrios e adulações pedantes dos poderosos para manter a liberdade da denúncia evangélica sobre as opressões do anti-Reino. Com isso sua voz ecoou pela “ecologia integral” e pela “amizade social”, contra a “globalização da indiferença” e a “cultura do descarte”. Uma verdadeira luz nas trevas do extremismo e da intolerância!
“Legião de mercenários assediam a fronteira da aurora nascente/ e César os abençoa a partir da sua arrogância./ Na bacia arrumada, Pilatos se lava, legalista e covarde”. Abandonando algumas perversões dos pseudo-guardiões da pureza doutrinária, Francisco não teve receio de questionar esclerosadas tradições que perderam seus sentidos. Confrontou os mercenários da fé e os rigoristas encastelados no poder clerical, lembrando que no centro deve estar a misericórdia de Deus e não a impiedosa lei. Não fez mais, porque não teve apoio suficiente e sabia das resistências de setores influentes, nos episcopados ao redor do planeta.
Um dos Padres da Igreja Latino-Americana, o bispo Casaldáliga sabia que os empobrecidos são o critério último da Boa Nova do Mestre. “O povo é apenas um ‘resto’,/ um resto de esperança./ Não O deixe só entre os guardas e príncipes./ É hora de suar com a Sua agonia,/ É hora de beber o cálice dos pobres/ e erguer a Cruz, nua de certezas,/ e quebrar a construção – lei e selo – do túmulo romano,/ e amanhecer a Páscoa”.
Pode-se dizer que o jesuíta argentino bebeu o “cálice dos pobres”, sentindo intimamente com os descartados e marginalizados. Acolheu famílias de refugiados e mandou construir lavanderias para os sem-teto do Vaticano, visitou os doentes fragilizados nos hospitais e recebeu os desprezados LGBTs de todos os lugares. Nunca esqueceu dos trancafiados nos duros cárceres de Roma e jamais deixou de se colocar a pergunta: “por que eles e não eu”?
Como um dos últimos gestos de amor, na Quinta-Feira Santa, visitou um presídio e doou cerca de 200 mil euros para o projeto local da Pastoral Carcerária. Apesar de sua frustração por não conseguir efetuar a celebração que tantas vezes antes realizou, seu pontificado foi um permanente Lava-Pés dos menosprezados da sociedade. De fato, Francisco foi um radical no seu compromisso com os oprimidos.
“Diga-lhes, diga-nos a todos/ que segue em vigor inabalável,/ a gruta de Belém,/ as bem-aventuranças/ e o julgamento do amor em alimento”, suplica o poeta. E o primeiro papa de Abya Yala escolheu o caminho da fidelidade ao Jesus periférico, que não nasceu na capital do Império Romano em alguma família nobre. Com o coração voltado para os pequeninos rebanhos, espalhados em realidades longínquas e conflituosas, se fez peregrino da esperança em suas intensas viagens apostólicas.
Os Emirados Árabes Unidos, a Bolívia, a Macedônia do Norte, o Iraque, o Paraguai, o Bahrein, o Sudão do Sul, a Mongólia, a Papua Nova Guiné e o Timor-Leste... Francisco subverteu as velhas lógicas da cristandade e alterou o tradicional tabuleiro de poder, ao nomear cardeais de pequenas dioceses, em que o cristianismo é minoritário.
Visitou essas muitas vezes ignoradas realidades não para converter ninguém, mas para aprofundar diálogos, escutar as dores e mostrar sua proximidade fraterna. Mostrou que “o cristianismo não [é] tanto uma ação intelectual ou uma escolha moral, mas o afeto por uma pessoa, aquele Cristo que veio ao nosso encontro e decidiu nos chamar de amigos”.[3]
“Não te conturbes mais!/ Como você O ama,/ ame a nós,/ simplesmente,/ de igual a igual, irmão”, clamou o bispo-profeta tantas vezes perseguido pela cúria romana. Mais do que isso, o pontífice questionou a mentalidade curial e o embolorado clericalismo que tanto mal faz ao seguimento de Jesus. No mais, passou a receber seus irmãos no episcopado não como suspeitos a serem vigiados, mas como corresponsáveis na condução da barca de Pedro. Nomeou leigos e mulheres para posições importantes na máquina vaticana e provocou a Igreja a se desmasculinizar. Não tratou seus ferozes críticos na mesma moeda que os papados anteriores, com perseguições e silenciamentos públicos.
O papa não era ingênuo e sabia que há ainda muito por fazer na tarefa de ajudar a Igreja a ser mais fiel ao Projeto de Jesus. Mas ele nunca se achou a medida de todas as coisas ou o salvador para os muitos problemas que se colocaram. E para aqueles e aquelas que choram a sua partida, parece ter deixado um recado:
“[...] a morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo. É um novo começo, como o título sabiamente indica, porque a vida eterna, que aqueles que amam já experimentam na terra em suas ocupações diárias, é começar algo que não terá fim. E é exatamente por esse motivo que é um “novo” começo, porque experimentaremos algo que nunca experimentamos plenamente: a eternidade”.
Francisco já descansa em Deus e certamente irá continuar intercedendo junto com os santos papas João XXIII e Paulo VI por uma “Igreja pobre e para os pobres”. Seus companheiros de ordem, o Padre Pedro Arrupe e o Dom Luciano Mendes de Almeida devem estar consolados por tanto bem realizado pelo jesuíta argentino. Um pontífice que foi “um fogo que acendeu outros fogos”, tal qual Santo Alberto Hurtado, SJ.
O futuro é incerto, o conclave parece bastante aberto. Não há candidatos óbvios e as forças conservadoras vem se movimentando. Continuarão as reformas iniciadas ou se retrocederá mais uma vez na implementação do Concílio Vaticano II? Será escolhido um Papa Francisco II ou um João Paulo III? Perguntas que inquietam, mas que demorarão a ser respondidas. Uma coisa é certa, ainda que venha um novo inverno eclesial, não se conseguirá apagar facilmente a primavera bergogliana.
Em que pese o cenário internacional não seja muito animador, os cálculos humanos nem sempre conseguem abafar o Espírito. Apesar das durezas de coração, Deus surpreende, como o foi na própria eleição do papa argentino. Prevalecerá no colégio cardinalício a “sabedoria das idades” ou o medo das águas mais profundas? Neste sentido, Francisco era um homem teimosamente esperançoso:
“Em meio ao frenesi das nossas sociedades, muitas vezes dedicadas ao efêmero e ao gosto doentio de aparecer, a sabedoria dos avós se torna um farol que brilha, ilumina a incerteza e dá direção aos netos, que podem extrair da experiência deles um “mais” em relação à própria vida cotidiana”.[4]
“Dá-nos, com seus sorrisos, suas novas lágrimas,/ o peixe da alegria,/ o pão da palavra,/ as rosas das brasas…/ a clareza do horizonte livre,/ o mar da Galileia,/ ecumenicamente, aberto para o mundo”, profetizou o bispo que lutou contra todas as formas de conservadorismo. Sim, é preciso derramar as lágrimas cheias de gratidão tal qual o fez com simplicidade a Ir. Geneviève Jeanningros. Mesmo sendo uma pobre religiosa em meio a toda pompa dos homens ordenados, a filha de São Charles de Foucauld não se sentiu acuada. Neste sábado, haverá um grupo de empobrecidos nas escadarias da Basílica Santa Maria Maior para se despedir de seu amado papa, antes do seu enterro. Dois significativos sinais de que a Igreja das margens resistirá.
Oxalá a Divina Ruah, Sabedoria de Deus, suscite um novo papa com a liberdade interior de Jorge Mario Bergoglio. Ou, como definiu Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais, um pontífice “indiferente a todas as coisas criadas” (EE 23). E por isso, alguém que não esteja apegado à riqueza, à honra vã do mundo e à soberba (EE 142). Mas que seja capaz de dizer “tomai, Senhor, e recebei tudo o que tenho e possuo” (EE 234) e assim se fazer pobre com o Cristo pobre (EE 167).
[1] PAPA FRANCISCO. Prefácio ao livro “À espera de um novo começo. Reflexões sobre a velhice”. 7 fev. 2025. Disponível aqui.
[2] Ibid.
[3] Ibidem.