24 Março 2025
Ao canonizar Dom Óscar Romero, o Papa Francisco indicou para toda a Igreja o exemplo e o testemunho deste mártir latino-americano, brutalmente assassinado há 45 anos, em 24-03-1980. A despeito das estruturas clericais que tendem sempre a controlar e a “domesticar” tantas figuras radicais no seguimento de Jesus, São Romero não pode se tornar apenas mais uma festa litúrgica no calendário romano.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Em uma realidade ferida por tantas crises e extremismos, guerras e extermínios, neocolonialismos e neoimperialismos, big techs e discursos de ódio, o mundo está carente de testemunhos que inspirem esperança e confiança noutros caminhos possíveis. No lugar de Trump, Musk e Netanyahu e seus massacres, xenofobias e autoritarismos sem fim é preciso recordar as inúmeras pessoas que deram e dão a vida pela justiça social, pela proteção da Casa Comum, pela libertação dos marginalizados. Entre elas, São Óscar Romero, o bispo que não se calou diante da barbárie.
Neste tempo quaresmal, os ensinamentos paulinos são bastante claros: “não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito” (Rm 12, 2). Imprescindível voltar a essa admoestação, especialmente aqueles que insistem em querer transformar o seguimento cristão num devocionismo vazio e num ritualismo intimista. Dom Romero mostrou que o caminho do discipulado é muito mais do que deturpadas práticas egoístas e autocentradas.
“Ninguém é tão livre como o que não está subjugado ao deus dinheiro”, asseverou o bispo-mártir, “e ninguém é tão escravo como o idólatra do dinheiro” [1]. O arcebispo de El Salvador ficaria horrorizado com o que se tornou o país sob a presidência de Nayib Bukele, um regime de direita fundado no populismo penal e no encarceramento em massa. Recentemente o Estado centro-americano recebeu migrantes venezuelanos deportados dos Estados Unidos, na megaprisão nomeada Centro de Confinamento de Terroristas. No acordo Trump-Bukele o país receberá migrantes em seus cárceres, em troca de 20 mil dólares por cada um ao ano.
São Romero provavelmente não se calaria e essas palavras caberiam neste contexto perverso de criminalização da migração: “colaboradores, agentes do demônio, impostores de algo distinto que não cabe no plano de Deus”. “Por isso a Igreja não se cansará de denunciar tudo aquilo que produz a morte”[2], bradaria implacável quem muito incomodou as elites políticas e econômicas de seu tempo.
O mártir de El Salvador percebia a resistência à opção preferencial pelos empobrecidos, mas não deixava de pontuar que “quando falamos da Igreja dos pobres simplesmente estamos dizendo aos ricos também: voltem seus olhos a essa Igreja e preocupem-se com os pobres como um assunto próprio” [3]. Atualmente os padres, os religiosos e as religiosas que possuem um envolvimento com as Pastorais Sociais ou uma postura mais crítica diante da exploração social são perseguidos e tachados pelas “milícias digitais caçadoras de hereges” de comunistas e infiéis.
Quase 18 anos depois do martírio do arcebispo de El Salvador, o então Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Padre Peter-Hans Kolvenbach, em uma alocução no término da Semana Social da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas, alertava com muita lucidez sobre o risco de aburguesamento das comunidades cristãs:
“Mas hoje se vislumbra um fenômeno novo: a tendência a ‘suprimir’ os pobres. Se tende a organizar a convivência de tal forma que alguém pode passar toda a vida sem entrar em contato com os pobres nem se deixar afetar por eles. A separação física leva a que os pobres desapareçam da consciência e passem a integrar o eufemístico conceito de ‘custo social’. Fora da cidade se constroem hoje, bem protegidas, condomínios perfeitos sem o contágio da pobreza. Embora o Evangelho diga que não tem vida em si mesmo – vida verdadeira –, quem não sai do seu caminho – de seu modo de vida –, para aproximar-se de quem tem necessidade de ser ajudado, ferido às margens dos caminhos (Lc 10, 25-37)” [4].
Se em algum tempo houve na América Latina um cristianismo comprometido com os últimos, hoje se encontra uma Igreja mais preocupada com meticulosas liturgias, preparadas com muitas rendas e enjoativos incensos. A afirmação contundente do santo salvadorenho, na Igreja do Brasil fortemente marcada pelas campanhas midiáticas de Padre Paulo Ricardo e do Centro Dom Bosco, teria que se transformar em um questionamento: “podemos apresentar junto ao sangue de professores, de trabalhadores, de camponeses, o sangue dos nossos sacerdotes”? [5]
Ou a Igreja está mais preocupada com seus santuários e adorações virtuais? “Seria triste que em uma pátria onde se está assassinando tão horrorosamente não contássemos entre as vítimas também os sacerdotes”, continua São Romero. “São o testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas do povo”[6], finaliza o arcebispo sobre a importância de uma Igreja que sente com as alegrias e as tristezas do Povo de Deus. O que pensaria Romero de uma Igreja que já teve pastores-profetas como Pedro Casaldáliga, Helder Câmara e Paulo Evaristo Arns e que nos atuais dias se guia por padres-influenciadores digitais?
Desde 1964 acontecem nacionalmente as Campanhas da Fraternidade, como uma oportunidade de se aprofundar sobre uma temática e propiciar o compromisso de comunidades e cristãos na criação de uma sociedade mais justa e solidária. Todavia, nos últimos anos, os grupos sectários e reacionários que se julgam mais católicos do que a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), vem promovendo ataques sistemáticos e virulentos à iniciativa.
Neste ano de 2025, em sintonia com os 10 anos da publicação da Encíclica Laudato Si' e com os 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, o tema é “Fraternidade e Ecologia Integral”. Homem sensível aos sinais dos tempos, São Romero já externava uma preocupação com essa problemática:
“Vocês sabem que o ar, a água, tudo que tocamos e vivemos está contaminado. E apesar dessa natureza que estamos corrompendo cada vez mais e precisamos dela, não percebemos que existe um compromisso com Deus: que essa natureza seja cuidada pelo homem. Cortar uma árvore, jogar fora água quando falta água, não ter cuidado com os escapamentos dos ônibus, envenenar o meio ambiente com aqueles vapores mefíticos, não ter cuidado onde se queima o lixo, tudo isso faz parte da aliança com Deus. Cuidemos, queridos irmãos salvadorenhos, também por um sentido de religiosidade, para que a nossa natureza não continue a empobrecer e a morrer” (Homilia de 11/03/1979) [7].
Tristemente, é cada vez mais comum encontrar comunidades que trocam a Campanha da Fraternidade por “quaresmas de São Miguel” e “mil ave-marias”, em que seus párocos e líderes leigos se valem de magistérios paralelos da tecnocatolicosfera. Quando não é feroz e impiedosamente atacada, a figura do Papa Francisco e seus ensinamentos, tais como a Evangelii Gaudium, a Laudate Deum e a Fratelli Tutti, são ignorados de forma deliberada e desdenhosa.
Quando muito, se encontra uma visão assistencialista, em que não há espaço para estar com o outro e muito menos lutar contra as estruturas injustas que geram a miséria. E Romero denunciava essa atitude: “não sirvamos ao pobre com paternalismo: socorrendo-o de cima para baixo”. “Não é isso o que Deus quer, senão irmão para irmão”, continua. Ou seja, “é o meu irmão, é Cristo; e a Cristo não vou de cima para baixo, senão servir-lhe de baixo para cima” [8]. Em tempos de aporofobia e meritocracia, muitos acreditam que as pessoas excluídas ali estão porque não se esforçaram o suficiente.
Por outro lado, o bispo-profeta proclamou com a vida uma Igreja martirial, que não se acovarda e denuncia as arbitrariedades dos poderosos. Questionou ainda aqueles que desejam viver um cristianismo adocicado e alienado das grandes injustiças da sociedade, com uma fé que permanece nos consensos amorfos:
“A perseguição é uma nota característica da autenticidade da Igreja. Que uma Igreja que não sofre perseguições, mas goza dos privilégios e do apoio das coisas da terra – tenham medo! –, não é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo. Isto não significa que esta vida de martírio e sofrimento, medo e perseguição seja normal, mas deve significar o espírito do cristão. Não estar com a Igreja apenas quando as coisas vão bem, mas seguir Jesus Cristo com o entusiasmo daquele apóstolo que disse: ‘se for preciso, morramos com ele’” (Homilia de 11/03/1979) [9].
Apesar de cada vez mais raros, há cristãos e cristãs que pagam um alto preço pela sua fidelidade ao Reino de Jesus. Entre eles o Padre Júlio Lancellotti com o Povo de Rua em São Paulo, Dom Vicente Ferreira na luta contra a destruição da mineração, as irmãs e leigas da Rede um Grito pela Vida que trabalham no enfrentamento ao tráfico de pessoas, os e as agentes de pastoral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que se colocam ao lado dos povos indígenas e dos trabalhadores sem-terra.
Denunciar as torturas nos cárceres do país, a destruição ecológica na Amazônia, os abusos contra as mulheres e os menores, o trabalho escravo nas fazendas do Brasil profundo, são algumas das ações “incômodas e desagradáveis” que leigos e leigas, religiosas e religiosos e padres continuam fazendo, em que pese as reações contrárias. Muitos interesses confrontados, setores poderosos atingidos, mas essa Igreja da Caminhada resiste.
Existem reformas que têm sido adiadas há décadas em nome da tradição e da conciliação. Mas, como relembra Leonardo Boff, “a positividade cristã não é uma cisterna de águas mortas, mas de águas vivas”. Por isso, “ela se reaviva confrontando-se com as mudanças irrefreáveis da história, como é o caso suscitado pelo Sínodo da Amazônia” [10]. Nesse sentido já pensava Romero:
“Tudo é evolução na vida. A Igreja se renova. Não podemos preservar velhas tradições que já não têm razão de existir. Muito mais o são aquelas estruturas nas quais o pecado foi entronizado e a partir dessas estruturas se abusa dele, se cometem injustiças, se cometem desordens. Não podemos descrever uma sociedade, um governo, uma situação como cristã, quando nestas estruturas envelhecidas e injustas os nossos irmãos sofrem tanto” (Homilia de 25/02/1979) [11].
Entretanto, com o fim do Sínodo sobre Sinodalidade muitas paróquias e dioceses se apressaram a deixar tudo para trás, bem enterrado de preferência. Como um mero modismo à espera de se tornar passageiro, muitos padres e bispos mostraram a dureza de seu coração no que se refere ao fechamento às mudanças provocadas pelo Papa Francisco. A palavra de ordem de 2025 é viver uma infinidade de celebrações e peregrinações devocionais em nome do Ano Santo da Esperança.
Mesmo do leito do hospital o pontífice autorizou a nova fase sinodal, que em um percurso de três anos pretende verificar a implementação das diretrizes do Documento Final do Sínodo. Por isso, não se trata de mais um relatório para ser engavetado. Não passou da hora de assumir uma postura minimamente corajosa e adotar algumas reformas nos níveis diocesanos, sem colocar todo o peso nos ombros do papa à espera das decisões de Roma?
Após cinco semanas internado, Francisco finalmente recebeu alta e retornou para continuar sua recuperação na Casa Santa Marta, ciente das movimentações dos grupos conservadores. Atento aos pequenos gestos de ternura, ao sair para cumprimentar aqueles que lhe aguardavam no Hospital Gemelli, viu as flores de uma senhora, que comumente lhe presenteia com um buquê. Como um novo Romero, o sucessor de Pedro tem sido uma voz solitária, mas perseverante em pedir mais vitalidade e ousadia à Igreja:
“Penso em vós, irmãs e irmãos consagrados, e no dom que sois; penso em cada um de nós, cristãos de hoje… Ainda somos capazes de viver a expectativa? Não ficaremos às vezes demasiado ocupados conosco próprios, com as coisas e os ritmos intensos de cada dia, a ponto de nos esquecermos de Deus que sempre vem? Porventura não estaremos demasiado enredados com as nossas obras de bem-fazer, arriscando-nos a reduzir a própria vida consagrada e cristã às «muitas coisas a fazer» e negligenciando a busca diária do Senhor? Não correremos por vezes o risco de programar a vida pessoal e a vida comunitária com base no cálculo das possibilidades de sucesso, em vez de cultivar com alegria e humildade a pequena semente que nos foi confiada, na paciência de quem semeia sem esperar recompensa e de quem sabe esperar pelos tempos e as surpresas de Deus?” [12]
Embora viva uma acelerada e tremenda diminuição e envelhecimento de suas forças, a Vida Religiosa Consagrada tem muito a contribuir no redespertar da profecia. É preciso liberdade para redimensionar suas presenças apostólicas e se desprender das muitas obras que sugam suas energias vitais. Ademais, se houve um tempo em que tais instituições desempenharam um papel relevante, atualmente não são mais imprescindíveis. Existem estruturas pesadas que não servem mais e que não podem ser impostas às novas gerações de religiosos e religiosas que estão em plena atividade.
Por outro lado, não se deve esquecer que Dom Óscar Romero se converteu para um compromisso com os empobrecidos e oprimidos tão somente depois dos 60 anos. Com o martírio do Beato Rutilio Grande, SJ, em 12-03-1977 seus olhos começaram a se abrir. Em apenas três anos muito pôde realizar pelo seu povo salvadorenho tão explorado pelos grandes de seu país. São Romero colocou todas as instituições da arquidiocese a serviço, principalmente, a sua rádio que se transformou em um poderoso instrumento de denúncia.
Ao se vivenciar nestas últimas semanas a fragilidade da saúde do Papa Francisco ficou mais do que evidente de que é injusto e irreal colocar todas as expectativas nele. A corresponsabilidade pela Igreja universal pertence a todas as Igrejas locais e a suas comunidades eclesiais. Ou os seus pastores e líderes leigos assumem essa tarefa com empenho ou a Igreja corre o risco de se tornar uma seita cada vez mais irrelevante, como aponta Tomás Halík:
“A nossa época também precisa de uma nova teologia da história, de uma nova visão. Se nações, culturas e religiões, em um mundo em que já não podem se isolar umas das outras, cultivarem o ‘amor-próprio’ sem respeito pelas outras, pelos seus interesses e necessidades, criarão a civitas terrena sobre a qual Santo Agostinho escreveu. Os estados cuja política é dominada por um egoísmo nacional imprudente (no espírito do slogan ‘América primeiro’, de Trump), e que se cercam de muros de indiferença para com os outros e abdicam de sua responsabilidade compartilhada pela justiça no mundo, se tornarão – para citar novamente – a Cidade de Deus, de Agostinho – ‘grandes bandos de ladrões’ (2017 IV, 4)” [13].
A Igreja como um todo deve se tornar mais sensível e dizer como o bispo-mártir que “o povo é o meu profeta” [14], especialmente os esquecidos e humilhados. Para aqueles que se fundam em farisaicas orações dos rosários pelas madrugadas, Romero insta a “uma devoção a Virgem que nos faça sentir diante de Deus não para implantar nosso modo de pensar ou nossa falsa prudência, mas que saiba dar sua cara por Cristo, quando pela injustiça do mundo fica cravado na cruz, e quando todos fogem, ela fica ali junto Dele” [15].
Ao canonizar Dom Óscar Romero, o Papa Francisco indicou para toda a Igreja o exemplo e o testemunho deste mártir latino-americano, brutalmente assassinado há 45 anos, em 24-03-1980. A despeito das estruturas clericais que tendem sempre a controlar e a “domesticar” tantas figuras radicais no seguimento de Jesus, São Romero não pode se tornar apenas mais uma festa litúrgica no calendário romano.
Seu grito e seu sangue derramado no altar da luta pelo povo sofrido devem continuar ecoando nos corações dos cristãos e cristãs. Afinal, “uma Igreja que não se une aos pobres para denunciar a partir dos pobres as injustiças que contra eles se cometem, não é a verdadeira Igreja de Jesus Cristo” [16]. “Porque o que se há de salvar sobretudo é o processo de libertação do nosso povo” [17], testemunhou profeticamente São Óscar Romero. E possa, junto com bispo dos oprimidos, a Igreja se tornar mais inconformada e mais livre!
[1] ROMERO, Óscar. Día a día con Monseñor Romero: meditaciones para todo el año. São Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado, 2006. Homilia de 15/07/1979. p. 236.
[2] Ibidem, Homilia de 1/07/1979, p. 223.
[3] Ibid., Homília de 4/03/1979, p. 197.
[4] KOLVENBACH, Peter-Hans. Conferencia del Padre General. Clausura de la Semana de lo Social de la UCAB. La opción por los pobres ante el reto de la superación de la pobreza. Caracas, 2 fev. 1998. In: KOLVENBACH, Peter-Hans. Selección de escritos del P. Peter-Hans Kolvenbach 1991-2007. p. 551.
[5] ROMERO, Óscar. Op. cit., Homilia de 30/06/1979, p. 222.
[6] Ibidem.
[7] Ibid., p. 200.
[8] Ibid., Homilia de 2/09/1979, p. 253.
[9] Ibid., p. 198.
[10] BOFF, Leonardo. Cuidar da Casa Comum: pistas para protelar o fim do mundo. Petrópolis: Vozes, 2024. p. 225-226.
[11] ROMERO, Óscar. Op. cit., p. 194.
[12] PAPA FRANCISCO. XXXVIII Dia Mundial da Vida Consagrada. 2 fev. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 21 mar. 2025.
[13] HALÍK, Tomás. O entardecer do cristianismo: a coragem de mudar. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 181.
[14] ROMERO, Óscar. Op. cit., Homilia de 8/07/1979, p. 228.
[15] Ibidem, Homilia de 15/07/1979, p. 242.
[16] Ibid., Homilia de 14/02/1980, p. 339.
[17] Ibid., Homilia de 6/01/1980, p. 312.