Os cristãos e as cristãs, bem como seus líderes, não podem passar ao largo do debate do direito à memória, quando o ápice de sua fé é o memorial da Vida, Paixão, Morte e Ressureição do Senhor. Silenciar sobre o golpe militar e toda a sorte de intimidações autoritárias que ameaçam o país significa tomar covardemente o lado dos violentos. Ao passo que Jesus de Nazaré não se esquivou de assumir o Amor dos mansos e humildes de coração que têm fome e sede de Justiça (Mt 5, 1-20).
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e colabora no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Houve uma época em que, mesmo o mundo vivendo as tensões da Guerra Fria, a Igreja passava por um período de intensa efervescência, refrescante liberdade e renovadora criatividade. Foram os anos 60 e 70 do século passado em que, sob a influência do Concílio Vaticano II, muitas discussões se aprofundaram com coragem e lucidez. Nesse período grandes pastores enriqueceram a tradição cristã latino-americana. Líderes que falavam para além das sacristias e conseguiam impactar a sociedade. Homens visionários que invariavelmente pagaram um preço pela sua ousadia, sofrendo perseguições, silenciamentos e até a própria morte, como Dom Óscar Romero.
O Santo de El Salvador tornou-se um representante daquilo que Eduardo Hoornaert chamou de Episcopalismo Profético, ou seja, a “caracterização de um período bem recente na história do catolicismo no Brasil no qual a função pastoral típica do episcopado estava vinculada com o exercício do profetismo” [1]. Esses bispos profetas não estiveram circunscritos ao país, ainda que aqui tenha havido inúmeros pastores comprometidos, tais como Hélder Câmara, Pedro Casaldáliga, Antônio Fragoso, Paulo Evaristo Arns, José Maria Pires, entre muitos outros.
Assim também podem ser contados em toda a América Latina, como o mexicano Samuel Ruiz (San Cristóbal de Las Casas), o equatoriano Leonidas Proaño (Riobamba), o chileno Manuel Larraín (Talca), o argentino Enrique Angelelli (La Rioja). Cristãos que já viviam a Igreja em Saída do Papa Bergoglio, pois encarnavam em si o que professou certa feita Dom Romero: “cada um de nós tem que ser um devoto enfurecido da justiça, dos direitos humanos, da liberdade, da igualdade, mas olhando-os a luz da fé” (05-02-1978).
Apesar de ainda não ser compreendida por muitos grupos conservadores, essa postura do papa jesuíta simplesmente implica em uma retomada de uma longa tradição de parte Igreja do continente, herdeira dos compromissos assumidos com o Pacto das Catacumbas. Uma fé que ilumina a leitura crítica da realidade sofrida dos filhos prediletos do Povo de Deus, como pregava Santo Óscar:
“Quer Deus nos salvar em povo. Não quer uma salvação isolada. Disso que a Igreja de hoje, mais do que nunca, está acentuando o sentido de povo. E por isso que a Igreja sofre conflitos. Porque a Igreja não quer massa, quer povo. Massa é uma grande quantidade de gente quanto mais adormecida, melhor; quanto mais conformista, melhor. A Igreja quer despertar nas pessoas o sentido de povo. O que é povo? Povo é uma comunidade de pessoas onde todos buscam o bem comum” (05-01-1978). [2]
Com o pontificado do Papa Francisco a cativante figura de Dom Romero foi resgatada do absurdo ostracismo a que havia sido relegado, com o imprescindível reconhecimento do seu martírio, bem como consequente canonização. Muito já foi escrito sobre sua vida e seu profundo testemunho a favor do povo empobrecido de seu país. Mas pode ainda São Óscar das Américas, que nesse 24 de março completa 44 anos do seu assassinato, dizer algo de relevante para a complexa realidade brasileira de 2024?
O bispo salvadorenho vivia sob uma brutal ditatura civil-militar, em que as elites do país sustentavam seus generais de plantão para manter o povo cativo em meio à enorme desigualdade social que imperava. Quando os explorados começaram a se organizar, graças inclusive ao trabalho de formação ocorrido nas Comunidades Eclesiais de Base, a reação do autoritarismo foi brutal: prisões políticas, execuções bárbaras, torturas cruéis e a violência militar como armas para calar os chamados subversivos, ou seja, todos aqueles que se insurgiam contra a opressão.
Com os contextos próprios de cada realidade, os métodos ditatoriais eram similares aos utilizados largamente pelo regime de exceção que oprimiu o Brasil de 1964 a 1985. Uma mentalidade que teima em resistir impregnada nas mentes e corações de uma parcela da elite político-econômica do país e em um espantoso espectro das Forças Armadas, como se viu na nauseante tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Até quando a nação será obrigada a viver tais sobressaltos sob essas constantes e revoltantes ameaças autoritárias?
Em um país majoritariamente cristão, vale recordar que “a civilização do amor não é um sentimentalismo, é a justiça e a verdade”. Ora, “uma civilização do amor que não exigisse a justiça às pessoas, não seria verdadeira civilização, não marcaria as verdadeiras relações das pessoas”, apontou o mártir de El Salvador (12-04-1979) [3]. Justiça e verdade, já naquele contexto tão ultrajadas, assim como o continuam a ser na Terra de Santa Cruz.
Uma justiça que está muito além de qualquer sentimento de vingança, mas que exige o direito à memória. Memória individual das vítimas das sádicas violações dos direitos humanos e de seus familiares, mas também uma memória coletiva de um país que se viu interrompido, como disse Celso Furtado. Um passado doloroso não de todo encarado e muito longe de ser redimido.
Assim, já disse o Papa Francisco em Fratelli Tutti (n. 226) sobre a importância “de aprender a cultivar uma memória penitencial, capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações, confusões ou projeções”. Apesar da vergonhosa resistência dos comandantes militares em abrirem os seus arquivos e colaborarem com as investigações históricas, deve-se reconhecer o importante trabalho realizado pela Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), instituída por Dilma Rousseff, uma presidente presa e torturada pela ditadura.
Dom Óscar Romero sabia que o discurso de uma reconciliação sem a verdade é falso e, geralmente, imposto pelos algozes. Uma vez que serve apenas para ser conivente com os próceres da ditadura, mantendo-os em um inaceitável lugar privilegiado de poder. Como ensina a melhor terapia só pode ser elaborado o que é trazido à tona. Todavia, a situação era então obscura tanto naquele país da América Central como no Brasil atual:
“Muitas vezes se dizem palavras bonitas, se dão as mãos e, quiçá, até se deem um beijo, mas no fundo não há verdade. Por isso, uma civilização onde se perdeu a confiança do ser humano em outro ser humano, não possui o fundamento do amor. Não pode haver amor onde há mentira. Falta em nosso ambiente a verdade” (12-04-1979). [4]
O pastor de São Salvador logo no início de seu ministério viu seu amigo, o padre jesuíta Rutilio Grande, ser trucidado pela fúria militar, o que infelizmente longe de ser uma exceção foi uma constante ao longo dos breves anos em que esteve à frente da arquidiocese da capital. O povo recorria aturdido e desesperado a Dom Romero buscando orientação e ajuda para denunciar o extermínio que os opositores do governo sofriam. E ele, como o fará o Cardeal Paulo Evaristo Arns anos depois desde São Paulo e o seu projeto Brasil Nunca Mais, não deixará de dar voz aos silenciados:
“Em nosso arcebispado se elaborou um estudo muito minucioso sobre os desaparecidos. São 99 casos bem analisados. Ali está o nome, a idade, onde o capturaram, que recursos jurídicos se fizeram uso, quantas vezes essa mãe chegou buscando a esse ser querido. E sou testemunhada da verdade desses 99 casos. E por isso tenho todo o direito de perguntar: onde estão? E em nome da angústia desse povo, dizer: coloquem-lhes sob a ordem de um tribunal se estão vivos, e se lamentavelmente já lhes mataram os agentes de segurança, reconheçam as responsabilidades e punam-se, seja quem for. Matou, tem que pagar. Eu creio que a demanda é justa” (20-08-1978). [5]
Também aqui setores da Igreja se levantaram e exigiram justiça, como por exemplo, por meio do icônico documento “Eu ouvi os clamores do meu povo”, publicado em 1973 por treze bispos do Nordeste e cinco superiores maiores religiosos, entre eles os padres jesuítas Tarcísio Botturi (cice-provincial da Bahia) e Hidenburgo Santana (provincial do Nordeste). Capitaneados por Dom Hélder Câmara, ele próprio vítima de censura em todo o país, o grito dos crucificados se fez ressoar:
“Diante do sofrimento da nossa gente, humilhada e oprimida, há tantos séculos em nosso País, vemo-nos convocados pela Palavra de Deus a tomar posição. Posição ao lado do povo. Posição juntamente com todos aqueles que, com o povo, se empenham pela sua verdadeira libertação”.
Prestes a completar 60 anos no próximo dia 31 de março, o golpe civil-militar paira como um velho fantasma sob o país. Em difíceis quatro anos o Brasil teve por presidente um ex-capitão do Exército, fã de um horrendo torturador em um passado nem tão distante. Recorrentemente, sem o menor pudor e com o apoio velado de integrantes das Forças Armadas, fez diretas ameaças ao Estado Democrático de Direito, que se concretizaram no terrorismo de janeiro passado. Como se não bastasse, as investidas golpistas tiveram o apoio financeiro de parte do agronegócio fascista e do apoio ideológico de várias lideranças religiosas, evangélicas e católicas!
Negando toda uma impressionante tradição de resistência ao autoritarismo por parte da Igreja, as mídias sociais foram fortemente tomadas por influenciadores digitais católicos (IDCs) que flertam com o cristofascismo ou, quando muito, adotam uma postura omissiva favorável a manutenção do injusto status quo. Como não ficar chocado com o nacionalmente citado padre da Diocese de Osasco, conhecido IDC conservador e há pouco tempo alvo de uma operação da Polícia Federal para investigar os atos golpistas de 8 de janeiro?
Nesse sentido, bem descreveu o imprescindível estudo, coordenado por Dom Joaquim Mol e um grupo de especialistas, que resultou no livro Influenciadores Digitais Católicos: efeitos e perspectivas, fundamental para quem deseja ler o Brasil de hoje:
“Segundo Solle (1970 apud Py, 2021), o conceito de ‘cristofascismo’ nasce a partir da observação do uso de terminologias cristãs por parte do regime de Adolf Hitler na Alemanha nazista. A expressão é revisitada por Py (2021) no desenvolvimento do que é nomeado de ‘cristofascismo brasileiro’: a conexão de grupos extremistas cristãos com ações políticas. Essa relação tem se dado na constituição do movimento bolsonarista, que tem na figura do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), um líder constantemente associado a uma construção teológica com viés autoritário e messiânico”. [6]
São Óscar Romero defendia que “a Igreja não pode calar ante essas injustiças de ordem econômica, de ordem política, de ordem social”. Afinal “se calasse, a Igreja seria cúmplice”. E como “se trata de coisas substanciais, não de coisas de pouca importância”, se está diante de uma “questão de vida ou morte para o reino de Deus nesta terra” (24-07-1977). [7] Assim, se preocupar com a dignidade do ser humano, degradado pela opressão ditatorial, também é uma das missões centrais da Igreja em peregrinação por esta terra.
Provavelmente, inspirada pelo testemunho profético dos bispos que enfrentaram a sanha autoritária dos anos de chumbo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) deverá se pronunciar, em breve por ocasião do aniversário do golpe, para reafirmar seu compromisso com a democracia e lembrar aos cidadãos de boa vontade a importância de se fazer memória, principalmente, para o cristianismo. Em consonância com o próprio Evangelho, Dom Romero já cobrava que “tudo aquilo que está escondido deve ser revelado” (Mc 4, 22):
“Eu tenho fé, irmãos, que um dia sairão a luz todas essas trevas, e que tantos desaparecidos e tantos assassinados, e tantos cadáveres sem identificar, e tantos sequestros que não se soube quem os fez, terão que sair a luz, e então talvez fiquemos atônitos sabendo quem foram seus atores” (16-06-1979). [8]
Ao contrário de uma pretensa “fé leve” que investe em uma “autocelebrização clerical”, como define Moisés Sbardelotto, um dos estudiosos sobre o fenômeno dos influenciadores digitais católicos [9], São Óscar Romero não era um egoísta autocentrado, muito menos alguém ingênuo. Estava ciente de que sua caminhada comprometida com os últimos, os perseguidos da ditadura civil-militar, tinha consequências e que o conflito inerente, não devia ser evitado a todo custo:
“Se nossa arquidiocese se converteu em uma diocese conflitiva, não resta dúvida, é pelo seu desejo de fidelidade a esta evangelização nova, que do Concílio Vaticano II para cá e nas reuniões dos bispos latino-americanos, estão exigindo que tem que ser uma evangelização muito comprometida, sem medo. Evangelização exigente que assinala perigos e que renuncia a privilégios, e que não tem medo do conflito quando esse conflito provoca nada mais do que a fidelidade ao Senhor” (22-04-1979). [10]
Os cristãos e as cristãs, bem como seus líderes, não podem passar ao largo do debate do direito à memória, quando o ápice de sua fé é o memorial da Vida, Paixão, Morte e Ressureição do Senhor. Silenciar sobre o golpe militar e toda a sorte de intimidações autoritárias que ameaçam o país significa tomar covardemente o lado dos violentos. Ao passo que Jesus de Nazaré não se esquivou de assumir o Amor dos mansos e humildes de coração que têm fome e sede de Justiça (Mt 5, 1-20).
Como testemunhou Santo Óscar Romero com sua própria vida, nem a desinformação ou nem o discurso de ódio são suficientes para destruir a verdade e minar a profecia do Reino. Por isso, “se há algum católico que duvida da palavra do bispo e vá dizendo por aí em alta voz: ‘que se defina o senhor bispo’”, “estou bem definido, irmãos”! “Os senhores são os que têm que se definir” (2/04/1978) [11], conclamou o mártir. Memória, justiça e verdade para que o Brasil de 2024 não repita mais o Brasil de 1964!
[1] HOORNAERT, Eduardo. O cristianismo moreno do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1991.
[2] Día a día con Monseñor Romero: meditaciones para todo el año. São Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado, 2006. p.73.
[3] Idem, p. 207.
[4] Idem, p. 208.
[5] Idem, p. 132.
[6] GOMES, Vinícius Borges. Influência católica conservadora: aspectos políticos e religiosos. In: SILVA, Aline A. da et al. Influenciadores digitais católicos: efeitos e perspectivas. São Paulo: Ideias & Letras; Paulus, 2024. p. 261.
[7] Día a día con Monseñor Romero: meditaciones para todo el año. São Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado, 2006. p. 20.
[8] Idem, p. 219.
[9] SBARDELOTTO, Moisés. A comunicação de uma “fé leve”, entre a irreverência e a autocelebrização clerical. In: SILVA, Aline A. da et al. Influenciadores digitais católicos: efeitos e perspectivas. São Paulo: Ideias & Letras; Paulus, 2024. p. 93.
[10] Día a día con Monseñor Romero: meditaciones para todo el año. São Salvador: Publicaciones Pastorales del Arzobispado, 2006, p.199.
[11] Idem, p. 87.