20 Março 2024
"Como católicos, tivemos experiência de partidos de inspiração católica e deveríamos sentir a positividade do secularismo na busca de um bem comum democrático e compreensivo da liberdade religiosa".
O artigo é da jornalista e escritora italiana Giancarla Codrignani, ex-deputada italiana pela Esquerda Independente e sócia-fundadora da associação Viandanti, em artigo publicado por Rocca, nº. 7, 01-04-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sabíamos que o nosso era o tempo da complexidade, mas as guerras transformaram-no no tempo do caos.
A este tempo também os cristãos devem se adaptar: no horizonte das experiências inesperadas, todas as confissões e todas as religiões recebem o golpe. De fato, nenhuma crença parece agora capaz de se fazer compreender eficazmente, nem mesmo por todos os seus fiéis. A única coisa que faltava aos católicos era a bênção papal concedida às pessoas LGBT: agitou o clero africano e sacudiu a poeira dos conservadores sempre prontos a ameaçar com a acusação de heresia.
No entanto, desde 24 de fevereiro de 2022, a situação ecumênica teve que enfrentar um agravamento da divisão: o inimigo diabo, depois de quase 80 anos de paz na Europa, trouxe a guerra.
O Ocidente, hipócrita e interessado em produzir e vender armas aos países do Sul habitados por conflitos herdado do colonialismo, é cúmplice e o conflito invadiu também as Igrejas. As relações ecumênicas, florescidas desde o Concílio Vaticano II, ainda não atingiram a maturidade necessária para superar as novas dificuldades. Não era previsível que os irmãos ucranianos, depois do ataque de Putin, tivessem providenciado a divisão definitiva da Ortodoxia de Kiev, antes partícipe do patriarcado russo, a denúncia como procurado político do Patriarca russo Kirill e também o fechamento do Mosteiro das Grutas (300 monges e 400 estudantes) para instalar a nova igreja ortodoxa ucraniana.
Na modernidade a palavra "ecumenismo" já não pode mais ser referida a um ideal distante: pede - especialmente aos católicos, porque são numericamente maioria – intervenções mais ousadas e afetuosas de “reconciliação de baixo” entre as igrejas cristãs, que, chamando-se irmãs, permanecem divididas em confissões históricas hoje conturbadas, todas, pela secularização e pela difícil renovação das tradições, especialmente na presença de novas gerações que possuem outra língua e praticam um agnosticismo involuntário, necessitado de esperanças reconfortantes. São condições favoráveis à convivência das diferenças: os tantos confrontos entre as diferentes abordagens teológicas, a presença de setores diocesanos dedicados ao ecumenismo, o associacionismo de base - a partir do SAE (Secretariado das Atividades Ecumênicas) – deveriam induzir hoje a uma conscientização – cientes de que toda parada significa um recuo - da irrevogabilidade de histórias agora profundamente sedimentadas.
Como cristãos, a unidade já está presente em Jesus Cristo: de fato, estão excluídas em linha de princípio as "conversões", mas não podemos sequer esperar que o Espírito Santo "converta" a atual reciprocidade amigável que, essencialmente, formaliza a partilha daquilo que divide. Não seria ruim, enquanto continuamos a estudar (já que pregar a solidariedade não gera doutrina), aceitar as diferenças entre as igrejas irmãs na sua realidade concreta, sem “sofrer” por não compartilharmos “tudo” e sem parecer estar sempre “de visita” quando nos encontramos. O Papa Francisco pragmaticamente dá indicações: “sessenta anos depois do Concílio, ainda há se debate sobre a divisão entre progressistas e conservadores, mas essa não é a diferença: a verdadeira diferença central está entre apaixonados e acostumados”.
O monge suíço Roger Schutz já em 1949 tinha criado em Taizé uma comunidade monástica interconfessional em prol da unidade reconciliada. Depois foi o Concílio e, sobretudo, o Papa do Concílio, João XXIII, que, tendo acolhido Júlio Isaac com amizade, providenciou o cancelamento do Missal romano da memória dos “pérfidos Judeus” assumindo então o tema da judaicidade de Jesus como “fundamental” e soube relacionar-se com todos: mesmo que ele não o tenha registado, o ecumenismo é um sinal dos tempos. Ainda hoje precisamos nos sentir “apaixonados” para ir além das convenções confessionais porque é cada vez mais necessário aprofundar o diálogo também entre as religiões e enfrentar as ideologias que abusam do sagrado nas divisões políticas.
Como católicos, tivemos experiência de partidos de inspiração católica e deveríamos sentir a positividade do secularismo na busca de um bem comum democrático e compreensivo da liberdade religiosa.
Mas para a perversão da guerra não é suficiente ter acendido um único fogo: o pogrom do Hamas implicou a vingança de Israel e o inenarrável massacre do povo palestino, uma trágica renovação do conflito histórico que persiste desde 1947, como um câncer, e está em metástase por todo o Médio Oriente a ponto de ameaçar os equilíbrios internacionais, exasperando, além disso, as filiações religiosas de judeus e muçulmanos. O diálogo judaico-cristão não deve ser afetado pelos desastres da violência, que infelizmente conduziu a uma reação antissemita.
É reconfortante ler na síntese final do 45º Colóquio Judaico-Cristão realizado em dezembro passado em Camaldoli: estamos todos em caminho, e precisamente essa dimensão escatológica que tanto a liturgia judaica como a cristã nos colocam diante é fundamental. O caminho é lindo mesmo que não se consiga vê-lo, mas se sabe para onde se está indo. Um caminho que se torna encontro, dimensão do mundo que está por vir, aquele “olam aba” (o tempo por vir) que nos une, o que nossos corações desejam e o que todos esperamos juntos.
A Semana da Unidade dos Cristãos também assumiu um caráter particular este ano, precisamente devido à dor de todas as igrejas cristãs pelo 7 de outubro e pelas reações extremas e violentas não contra os responsáveis pelo massacre, mas contra todo o povo de Gaza. É difícil escapar à sensação de inadequação, quando nos damos conta que todo o processo que levou à complicada criação do Estado de Israel, hostil desde o início aos direitos do povo proprietário da terra que teve de entregar a outros, nunca pôde contar com a presença mediadora da Europa, que ainda hoje carece da autoridade necessária para intervir na resolução pacífica dos conflitos.
O paradoxo de um povo disperso, que não tinha terra e era colocado num território habitado por um povo que tinha que abandonar a sua casa, não podia acabar bem; mas assim impuseram os acordos entre os países vitoriosos da Primeira Guerra Mundial.
O fator religioso, quando se torna identitário em sentido nacionalista, perde o seu significado original e pode tornar-se um perigo para as religiões, especialmente se em todo lugar os locais de culto ficarem desertos, as tradições não vão além do hábito do “sagrado”, a secularização coloca em crise a autenticidade dos valores. No entanto, apesar da dessacralização, da indiferença aos princípios, do abstencionismo político, do ódio expresso nas redes sociais, da violência dos adolescentes, precisamos cada vez mais de fé para não acabarmos desesperados. Sabendo muito bem que a esperança é a mais difícil das teologais.
Ao promover o Sínodo, o Papa Francisco teve a intenção de acertar as contas com o interior do mundo católico italiano tanto no que diz respeito a problemas e dúvidas sobre à observância do seguimento, como em relação com o mundo na concretude das coisas a serem feitas. No dia 1º de novembro passado, com o motu proprio Ad theologiam promovendam - com o qual são aprovados os novos estatutos da Pontifícia Academia de Teologia - lembrou que a relação “conota e define, do ponto de vista epistêmico, o estatuto da teologia, que é levada a não se fechar na autorreferencialidade, que leva ao isolamento e à insignificância, mas a perceber-se inserida numa teia de relações, sobretudo com outras disciplinas e os outros saberes”.
Muitas vezes Francisco julgou as divisões e os conflitos entre as confissões cristãs como “feridas no corpo de Cristo”, mas sabendo que “todas as tradições religiosas na sua originalidade e diversidade representam um formidável potencial para o bem ao serviço da sociedade... As religiões enriquecem portanto a humanidade “que no seu caminho é muitas vezes desorientada por buscas míopes de lucro e bem-estar... Muitas vezes incapaz de encontrar o fio condutor: voltada apenas aos interesses terrenos, acaba por arruinar a própria terra, confundindo o progresso com a regressão, como mostram tantas injustiças, tantos conflitos, tantas devastações ambientais, tantas perseguições, tanto descarte da vida humana”. O ecumenismo é um elemento desse fio: deve ser salvaguardado para formar uma corrente de segura ancoragem.
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Ecumenismo. Toda parada é um recuo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU