14 Março 2024
O livro Brasil: nunca mais, publicado pela Vozes, foi um marco nos anos 80, marcando toda uma geração e sabemos que deve ser retomado neste ano de 2024, quando faz 60 anos do golpe militar de 1964, escreve Romero Venâncio, graduado em Teologia pelo Instituto de Teologia de Recife (ITER) e professor de Filosofia na Universidade Federal de Sergipe.
Os tempos eram outros. A década de 80 começava ainda numa ditadura que vinha desde 1964, mas com muita coisa nova em termos de participação democrática (por paradoxal que pareça). Jornais alternativos, feminismos, luta dos homossexuais, MNU (Movimento Negro Unificado), PT, CUT, Teologia da Libertação, luta por Diretas Já, movimento estudantil, movimento operário, movimento camponês, constituinte, Constituição...
Para um país que ainda vivia numa ditadura e que tinha as classes dominantes bestiais como tínhamos, parecia ser muita coisa. Nos atos de rua isso ficava ainda mais visível. No cinema os registros se tornavam visíveis e reflexivos para toda uma geração. Foi a década em que vimos nas telas "Pra frente Brasil", "Pixote", "Cabra marcado para morrer", "Jango", "Muda Brasil", "Patriamada", "Dedé Mamata" e "Que bom te ver viva". Só nesses oito filmes podemos ter uma ideia de como andava o Brasil nos anos 80 e de como pensava sua memória da ditadura.
Estamos em 2024 e os tempos são outros. Bem outros, apesar de alguns personagens serem os mesmos. Devemos lembrar os 60 anos do golpe militar de 1964 e de como militares com apoio significativo da sociedade civil (setor empresarial, Instituições cristãs, meios de comunicação, etc.) deram um golpe que se tornou civil-militar.
Entre 1964-1985, vivemos no país uma ditadura tutelada pelos militares com severos limites da participação civil. A censura passou a ser uma estratégia importante nos governos militares, tortura, assassinatos em porões, exílios. É uma herança comprovada dessa ditadura. Uma dura lição pela pedra (como dizia o poeta pernambucano) devemos aprender desde já e neste ano: ter um governo de "esquerda" ou "centro esquerda" como queiram, não significa ter a garantia da luta por uma política pública voltada para a memória. A fala recente do presidente Lula em nada ajudou nesse campo e só desmotivou muita gente.
Voltando um pouco mais aos anos 80, mais precisamente, 1985 e chegamos ao "Projeto Brasil: Nunca Mais" que foi pensado e desenvolvido por Dom Paulo Evaristo Arns, pelo Rabino Henry Sobel, pelo Pastor presbiteriano Jaime Wright e uma equipe transnacional que, clandestinamente, entre os anos 1979 e 1985 durante o período final da ditadura militar no Brasil fizeram um trabalho dos mais valiosos para a memória deste país.
Foi publicado no ano de 1985 e gerou uma importante documentação sobre a história do Brasil contemporâneo e a terrível experiência da ditadura no país. Esse sistema perseguiu, exilou, assassinou, torturou, desapareceu com corpos, concentrou renda, criou uma escalada inflacionária enorme e empobreceu ainda os mais pobres, deixando um rastro terrível para as futuras gerações. Uma montanha difícil de ultrapassar. Herança pesada a nossa.
O livro Brasil: nunca mais, publicado pela Vozes, foi um marco nos anos 80, marcando toda uma geração e sabemos que deve ser retomado neste ano de 2024, quando faz 60 anos do golpe militar de 1964. É absolutamente fundamental retomarmos a memória deste período e lermos mais uma vez e em grupo o trabalho coletivo que foi o Brasil: nunca mais. Isso se torna um imperativo para uma esquerda que não perdeu suas raízes históricas e tem um projeto de nação/país. Um registro deve ser feito: a obra incomodou os quartéis e a maioria dos oficiais das forças armadas. Se sentiram atingidos e o ódio se espalhou na caserna. A turminha que parasitou em torno do obscuro Gal. Silvio Frota resolveu reagir vergonhosamente e redigir o imenso e cansativo "ORVIL" (estudado e criticado brilhantemente pelo prof. João Cezar de Castro Rocha).
O livro é dividido em 6 partes e cinco anexos com farta documentação. A obra inicia com dois prefácios, um do Cardeal Arns e o outro assinado pelo ex-secretário do conselho mundial de Igrejas, Philip Potter. Prefácios que demarcam a importância e a coragem dos fizeram este livro-memória marcante.
A parte primeira e que tem por título: "Castigo cruel, desumano e degradante" é sobre a tortura. Com o detalhe que muda tudo - são os torturados/torturadas que relatam. Assim, a brutalidade da tortura aparece em sua face mais cruel e covarde. E já desmonta a maldita "ideologia de segurança nacional" e seus perpetradores. Uma coisa evidente é que a tortura era profissional e sistemática. Sabia-se como, porque e para que estava-se torturando. Os detalhes dos instrumentos e táticas utilizadas é de nos deixar revoltados com todos os militares (mesmo sabendo que não foram todos!).
Evidentemente, era um sistema de tortura. Com espaço físico determinado, instrumentos e maquinações das mais diabólicas. O livro já começa imenso ao descrever a pequenez e covardia dos torturadores. Nunca haverá grandeza alguma na tortura. Uma parte deste capítulo descreve, a partir dos torturados, os principais instrumentos de torturas nome por nome: "pau de arara", "choque elétrico", "pimentinha", "afogamento", "cadeira do dragão", "geladeira", usos de produtos químicos, insetos, animais... Um circo de horrores.
A tortura foi usada de forma seletiva e brutal; até crianças e mulheres gestantes. Tema que será retomado em imagens pelo documentário da cineasta Lúcia Murat em seu importante filme de 1989 "Que bom te ver viva". É chocante. Só saber já é torturante, imaginemos quem passou por isto.
60 anos de luta contra a ditadura sobre os corpos (Foto: IHU)
A segunda parte em que se discute o sistema repressivo, temos faz uma inflexão no tema da tortura e nos oferecem uma análise do regime militar e seu histórico. A origem do regime, o caráter do golpe, a consolidação da ditadura e a montagem do aparelho repressivo de forma profissional. Capítulos muito importantes pela contextualização da ditadura pós-64.
A terceira parte trata da "repressão fora do controle", onde se torturava cada vez mais e parecia ser contra todos. Virou um terror. Sabiamente manipulada pelos militares, a tortura virou "normal" no regime. Temos ainda um perfil dos atingidos e das organizações de esquerda. Ajuda muito na memória esse capítulo. Termina com as atividades visadas pelos ditadores. A quarta parte trata dos processos judiciais.
Importante incursão do livro nesses aspectos jurídicos do golpe da ditadura. Vemos detalhes da formação dos processos judiciais, as auditorias, inquéritos (geralmente, humilhantes), denúncias, confissões forjadas a partir da tortura, sentenças e recursos... Ainda temos alguns casos exemplares de processos judiciais analisados neste capítulo. Ajuda demais a entender como a ditadura entrou no setor judiciário. E acho que nunca saiu, até hoje. A quinta parte vai destacar e fundamentar como a tortura tornou-se a razão de ser do regime ditatorial. Seria quase que um destino a forma como se aprofundou o golpe e sua radicalização com o AI 5 de 1968, a tortura seria generalizada inapelavelmente.
A sexta e última parte, trata da "geografia dos lugares da tortura". Ficamos sabendo dos lugares físicos da tortura. Nomes do inferno, como se dizia, as "casas dos horrores”. Fazendas, locais ignorados, colégios militares, quartéis.
Em 1985 ainda não se tinha a dimensão desses locais usados para tortura e assassinato, só no final dos anos 90 que começaram a aparecer trabalhos jornalísticos ou acadêmicos sobre estes espaços. Lembro aqui A casa da vovó: uma biografia do DOI-Codi (1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar de Marcelo Godoy e Tempos da ditadura: na casa da vovó de Francisco Doria. Para ficar apenas em dois livros de repercussão nacional.
Por fim, Brasil: nunca mais tem um conjunto de anexos sobre os temas da tortura com documentos internacionais, uma lista de mortos e desaparecidos e um breve ensaio de como a tortura apareceu na história. Um livro-marco sobre a memória do golpe de 1964 e da ditadura que se seguiu.
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Brasil: nunca mais. História e Memória. Artigo de Romero Venâncio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU