Em uma tarde de sábado, no dia 12 de março de 1977, Padre Rutilio Grande e os leigos Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus foram metralhados em uma emboscada a caminho de uma das comunidades eclesiais de base. O jesuíta foi alvejado com 12 bárbaros tiros, balas que não atingiram somente o religioso. O recém-nomeado Arcebispo de São Salvador, Dom Óscar Romero, amigo pessoal da vítima, ficou profundamente abalado com o brutal assassinato. Conforme o próprio testemunho, esse fato foi decisivo no processo de conversão do futuro santo, que apenas três anos depois também seria martirizado. Nesse sentido, o jesuíta foi o precursor de São Romero das Américas!
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e colabora no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Alguns preferem o deus das nuvens”, disse certa vez padre Tilo, “não amam esse Jesus de Nazaré”. Esse pobrezinho que nasceu em Belém, num cocho, porque não havia lugar para ele nos palácios daquele tempo. Tal como hoje em que continua não havendo lugar para a travesti expulsa de casa, para os indesejáveis da rua e para o jovem negro encarcerado e vítima da violência policial. “No cristianismo há que se estar disposto a dar a vida em serviço por uma ordem justa, para salvar aos demais, pelos valores do Evangelho”, ousou testemunhar com profecia aquele que um dia se juntaria à longa tradição dos mártires latino-americanos.
Rutilio Grande García nasceu em 5 de julho de 1928, no vilarejo de El Paisnal, em El Salvador. Seu pai, Salvador Grande, foi prefeito em diversos períodos, já sua mãe, Cristina García, morreu quando ele tinha apenas 4 anos. Ficou aos cuidados de sua avó Francisca, uma mulher de profunda fé, de quem recebeu uma robusta formação religiosa. Os primeiros apelos vocacionais surgiram quando ainda era um garoto com 12 anos de idade e o levaram a procurar o então Arcebispo de São Salvador, Dom Luis Chávez y González. Sob a sua proteção entrou no seminário diocesano em 1941.
Superior Geral dos Jesuítas visita túmulo de Rutilio Grande (Foto: Cúria Jesuíta)
A formação recebida era a clássica, típica daqueles anos que precederam as importantíssimas mudanças pelas quais passou a Igreja com o Concílio Vaticano II e a Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín. Quase 30 anos depois, o já padre jesuíta proferirá um discurso ao clero de São Salvador, bastante revelador de sua posição crítica a favor de um cristianismo mais próximo do povo sofrido:
“A formação recebida já não é válida porque se fundamentou em uma filosofia escolástica essencialista, coisificante e desumanizadora. A teologia é pouco bíblica, pouco existencialista, polêmica, moralista, distante das realidades terrestres, exigindo um estilo de vida uniforme, legalista, fundamentado mais no temor que no sentido da responsabilidade pessoal”.
O seminário da arquidiocese estava confiado à Companhia de Jesus e o jovem pupilo logo se encantou com seus professores jesuítas. Após concluir os estudos secundários e com a autorização do arcebispo, Rutilio foi enviado, em 1945, para fazer seu Noviciado em Los Chorros, na Venezuela. Em seguida se mudou para Quito, no Equador, onde fez seus estudos de humanidades e sofreu suas primeiras crises nervosas. Fragilizado, passou um ano colaborando no Colégio Xavier, no Panamá e, depois de volta aos ares natais, para uma temporada de três anos no Seminário São José da Montanha, em São Salvador. Começará aí a primeira etapa de muitas contribuições, em um longo percurso como formador.
Mesmo com uma saúde mental que durante a vida lhe exigirá cuidados, o jesuíta aprenderá – não sem momentos de baixa e angústia – a acolher suas fraquezas e a encarar as sempre temidas crises. Um exemplo oportuno para uma Igreja do século XXI que enfrenta inúmeras e desestabilizadoras encruzilhadas:
“Toda a Bíblia é uma teologia da crise: uma reflexão teológica inspirada sobre a tensão existencial radical do homem ante Deus (dimensão vertical) e ante os demais homens (dimensão horizontal). Não tenham vergonha por estarem em crise, porque a crise dos maus é a angústia do pecado e a crise dos bons é a libertadora angústia da cruz; ambas culminam em Cristo. (...) Do imobilismo estéril, que nos dava uma falsa segurança, sairemos a correr o risco e a aventura de viver a fidelidade em movimento, em tensão existencial, dramática: em crise!”
No final de 1953 vai para Oñaz, na Espanha, onde obtém a Licenciatura em Filosofia e realiza seus estudos teológicos, sendo ordenado presbítero em 30 de julho de 1959, véspera da Festa de Santo Inácio de Loyola. Regressa para mais um período de dois anos como professor do seminário salvadorenho, antes de concluir a extensa formação jesuíta, em 1962, em Córdoba, também na Espanha.
Em seguida, faz uma pós-graduação no Instituto Internacional de Pastoral Lumen Vitae, em Bruxelas, na Bélgica. Recebendo uma menção honrosa ao final, ali se defrontou com aquilo que havia de mais avançado na pastoral europeia. Nessa ocasião, começa a se convencer de que deve buscar sempre a maior participação possível das bases laicais e agir horizontalmente, estimulando o comprometimento dos batizados.
Em contato com esses novos métodos pastorais, retorna em 1965 inspirado em uma visão mais ampla de Igreja. Inquieto e questionador, irá marcar gerações de futuros padres. “Qual é o papel do sacerdote em meio de um povo subdesenvolvido que já nos crê menos e cada vez crerá menos na auréola sagrada que rodeou a pessoa religiosa e reverente do sacerdote?”, provocava com uma atualidade desconcertante.
É bem provável que a maioria dos reitores de seminário no Brasil vetaria a sua presença no quadro de formadores. Sabe-se que, infelizmente, essa inadiável questão – a formação do clero – é um tema que ainda não foi encarado com profundidade e seriedade crítica suficientes. Como vem insistindo com veemência um já cansado e solitário Papa Francisco, para uma hierarquia que parece não querer entender o recado, “o clericalismo é um chicote, é um flagelo, uma forma de mundanismo que suja e danifica a face da esposa do Senhor, escraviza o santo povo fiel de Deus”.[1]
Responsável pela pastoral dos seminaristas, padre Grande, irá propor um maior contato com o povo empobrecido das periferias, por meio de marcantes missões populares. Para os detratores do atual pontificado, pode-se constatar como o jesuíta argentino com sua “Igreja em saída” não inventou nada de novo, mas apenas recupera o espírito da melhor recepção latino-americana ao Concílio Vaticano II:
“É preciso mudar o tom da pastoral: de uma pastoral quase-mágica que tem um grande respeito aos sacramentos e acentua a sacramentalização em vista da salvação das almas, para uma pastoral mais dinâmica dando a primazia a Palavra de Deus, a evangelização como libertação total do homem e do universo”.
Em meados de 1970 fará parte da comissão de redação do documento final da Semana Nacional de Pastoral de Conjunto, convocada em razão da reunião do Secretariado Episcopal da América Central (SEDAC), em Antigua, Guatemala. Escrito segundo o método “ver, julgar e agir”, o relatório despertou oposição de parte do episcopado reacionário do país. Mas nem por isso, Rutílio Grande, SJ, se retraiu ou retrocedeu em suas posições a favor de uma Igreja em comunhão com os camponeses explorados. Era um homem formado segundo a escola dos Exercícios Espirituais, que sabia discernir a conjuntura socioeclesial e se apaixonar pelo Cristo pobre e seus amigos preferidos (EE 167):
“Antes de iniciar uma pastoral de conjunto é necessária uma conversão pessoal que destrua as falsas seguranças para lançar-se a busca do novo, do Espírito que abre canais novos no modo de fazer pastoral da Igreja. O abandono ao Espírito supõe passar por crises contínuas onde o adquirido é provisório e temporário porque há um Deus sempre maior. Há uma interpelação que exige uma resposta urgente para não trair a Cristo e ao povo”.
Museu Rutilio Grande (Foto: Cúria Jesuíta)
Sem buscar o conflito pelo conflito, manteve-se firmemente convicto e, algumas semanas depois, assumiu uma posição inaceitável para a maioria da conferência episcopal por ser “muito radical”. Na homilia da festa do padroeiro da arquidiocese retomou, sem titubear, respondendo à indagação, “está transfigurado o homem salvadorenho?”:
“Muitos batizados em nosso país não comungam ainda com os postulados do Evangelho, os quais exigem uma transfiguração total; suas mentes e seus corações não foram transfigurados. Construíram um dique de egoísmo à Mensagem de Jesus Salvador. As maiorias, os camponeses, tampouco estão transfigurados. Como diz Paulo VI na Populorum Progressio, os camponeses vão adquirindo consciência de sua miséria não merecida, ao qual se acrescenta o ‘escândalo das dolorosas disparidades não somente no gozo dos bens, porém ainda mais no exercício do poder’”.
Dispensado de suas funções e após uma rápida passagem por um colégio jesuíta, foi para um significativo momento de sua caminhada, em Quito, onde realizou, no ano de 1972, um curso de atualização pastoral no posteriormente famoso Instituto de Pastoral Latino-Americana (IPLA). Lá aprendeu o impactante e original método de Paulo Freire, além de por em xeque a colonizadora perspectiva eurocêntrica e refletir mais sobre a América Latina.
Terminados os estudos, trabalhou uns meses com o icônico Bispo de Riobamba, Dom Leônidas Proaño. Padre conciliar do Vaticano II, fundou a Juventude Operária Católica (JOC) e foi um grande incentivador das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com atenção especial para os camponeses e indígenas. Seguramente um dos grandes bispos do continente, um dos signatários do Pacto das Catacumbas junto com os brasileiros Dom Hélder Câmara e Dom Maria Pires e o argentino-mártir Dom Enrique Angelelli.
Esse tempo junto ao velho bispo marcará de modo significativo a vida-missão do padre jesuíta, pelo que será imensamente grato. Naquele momento fará também a sua opção fundamental pelos marginalizados, o que observará com fidelidade até o fim de seus dias. Como já lhe havia sucedido antes, as incompreensões farão parte do seu discipulado, consciente que o próprio Senhor sofreu a oposição dos poderosos:
“Jesus se rebelou contra muitas coisas, pessoas e situações. E não devia haver medo ao uso do termo ‘rebelião’ porque esse tem um profundo sentido evangélico. Jesus assumiu posturas críticas frente aos ricos sem consciência e sem sensibilidade advertindo-lhes que dificilmente entrariam no Reino dos Céus se persistissem suas atitudes”.
De volta a El Salvador, foi-lhe oferecida uma posição de destaque como coordenador de pastoral da então Vice-Província Centro-Americana. Consciente das muitas limitações institucionais e com uma humildade que lhe era própria, Padre Rutílio declinou o convite assinalando que precisava experimentar in loco uma pastoral menos artificial. Com esse fim, articulou com outros companheiros de ordem religiosa uma equipe missionária com um ousado plano pastoral.
Ficaram responsáveis pela Paróquia do Senhor das Misericórdias, em Aguilares, com uma população de 30 mil habitantes e uma complexa situação social. Nessa região existiam três engenhos e enormes latifúndios canavieiros, com uma grande desigualdade socioeconômica. Sem deixar de valorizar a religiosidade popular, a equipe liderada pelo Padre Tilo investiu na formação de comunidades de base e de suas lideranças eclesiais, com marcante protagonismo leigo, bem como em uma vigorosa conscientização política, preparando o povo para as lutais sociais.
As tensões com a oligarquia local não demoraram a surgir e a ganhar escala nacional, quando a elite percebeu que o processo de libertação ganhava corpo, com o fortalecimento da Federação Cristã de Camponeses Salvadorenhos (FECCAS) e a realização de greves e protestos. A Igreja havia feito um primoroso trabalho de formação de consciências críticas e a maioria dos líderes da paróquia estavam comprometidos com as organizações políticas.
Rutilio Grande foi mestre de cerimônias da ordenação episcopal de Dom Óscar Romero (Foto: The Archbishop Romero Trust)
Padre Grande estava convencido que os leigos, seus companheiros e ele nada mais faziam do que procurar começar a encarnar a Boa Nova do Reino de Justiça, em que os últimos seriam os primeiros. El Salvador, assim como muitos países da América Latina, inclusive o Brasil que recentemente sofreu uma concreta tentativa de golpe, tinha violentas forças militares de tradição autoritária. Forças essas subservientes ao capital nacional e internacional, que não possuía escrúpulos em esmagar uma maltratada população camponesa. Mas o jesuíta sabia que o Evangelho se bem vivido incomodava:
“Já sei que há um Deus fabricado pela mão do homem e amassado com sangue de irmãos inocentes. O que a estes chamados ‘católicos conservadores’ lhes preocupa é o deus dinheiro e seus interesses. Acordam pensando no nome todo poderoso do deus dinheiro, ainda que sigam sujos, esquálidos, anêmicos e pobres milhares de camponeses. Hipócritas! Deixem de seguir se chamando ‘católicos conservadores’ porque mentem. Amo-lhes tanto que lhes perdoou suas ofensas gratuitas e infundadas e estou disposto a perder a minha vida que os senhores se convertam e se salvem, reconhecendo suas injustiças para o bem desses país.”
A repressão recrudesceu com a eleição fraudulenta do general de plantão e o estado de exceção imposto ao país. Além de sindicatos e organizações populares, setores progressistas da Igreja sentiram o duro golpe de assassinatos, prisões e exílios forçados. Apesar das sucessivas tentativas de silenciá-lo, por parte do governo e da hierarquia aliada ao status quo, o padre jesuíta acreditava que não podia abandonar seu povo historicamente explorado e vilipendiado. Como sua renúncia à posição de pároco não foi aceita pelas autoridades eclesiásticas (1976), Rutilio manteve-se fiel à sua consciência:
“O sacerdote, por vocação, deve estar encarnado na problemática de seu tempo. É compreensível que as minorias gritem alarmadas: padres comunistas! Mas Jesus também foi chamado de subversivo e político por lutar pela implantação do Reino de Deus”.
Em uma tarde de sábado, no dia 12 de março de 1977, Padre Rutilio Grande e os leigos Manuel Solórzano e Nelson Rutilio Lemus foram metralhados em uma emboscada a caminho de uma das comunidades eclesiais de base. O jesuíta foi alvejado com 12 bárbaros tiros, balas que não atingiram somente o religioso. O recém-nomeado Arcebispo de São Salvador, Dom Óscar Romero, amigo pessoal da vítima, ficou profundamente abalado com o brutal assassinato. Conforme o próprio testemunho, esse fato foi decisivo no processo de conversão do futuro santo, que apenas três anos depois também seria martirizado. Nesse sentido, o jesuíta foi o precursor de São Romero das Américas!
Rutilio Grande, como grande pedagogo que era, entendia que seu maior trunfo era a vivência pessoal Daquele que professava. “Nenhuma minoria privilegiada tem cristãmente razão de ser em si mesma, se não em função das grandes maiorias que formam o povo”, defendia. “Nem mesmo as minorias religiosas têm razão de ser se não é em função do povo”, confessou. Por isso, sua vida foi semente de libertação e testemunho de que um novo céu e uma nova terra são possíveis, a partir dos humilhados e deserdados desse mundo. Para confusão dos poderosos, Rutilio Grande escolheu estar ao lado dos fracassados da história, como lembra o Padre Júlio Lancellotti. E assim, seu testemunho ecoa como a voz que interpela os Cains de todos os tempos: onde está o teu irmão?
[1] Papa Francisco, Discurso na 18ª Congregação Geral do Sínodo. Leia aqui.