15 Outubro 2018
Já se passaram 38 anos desde que foi morto com um tiro enquanto oficiava a missa. No último domingo, dom Óscar Arnulfo Romero foi declarado santo pelo Vaticano e procura deixar para trás uma relação conturbada na qual o trabalho do mártir de El Salvador nem sempre foi compreendido pela máxima hierarquia do catolicismo.
A reportagem é publicada por BBC News Mundo, 14-10-2018. A tradução é de André Langer.
Trinta e oito anos depois do seu assassinato, o Vaticano canoniza dom Óscar Arnulfo Romero e reconcilia-se definitivamente com “o santo da América”.
Apesar do mais alto reconhecimento que recebe da Santa Sé neste domingo, o trabalho do mártir de El Salvador nem sempre foi reconhecido ou compreendido pela hierarquia do catolicismo.
Romero, que já era considerado um santo por muitos em El Salvador e na América Latina, foi uma figura controversa desde a sua nomeação como arcebispo de San Salvador, em 1977, até o seu assassinato, em 24 de março de 1980, por um tiro disparado por um extremista de direita.
Com suas denúncias das violações dos direitos humanos por parte do governo militar, ele ganhou numerosos inimigos em um clima de forte tensão na nação centro-americana.
De fato, seu assassinato enquanto celebrava uma missa é considerado por muitos como o começo de uma guerra civil que durou 12 anos e que, estima-se, deixou um rastro de cerca de 100 mil mortos.
Seus inimigos também estavam dentro da própria Igreja em El Salvador e no Vaticano.
BBC Mundo penetrou nessa relação conflituosa entre Romero e a Santa Sé, que ficou marcada pelo encontro do religioso com o Papa João Paulo II em 1979.
“Quando Romero foi nomeado arcebispo, era visto como uma alternativa para manter o status quo e não viam nele alguém que questionaria o sistema”, disse à BBC Mundo Ann Karla Koll, professora de História e Missão na Universidade Bíblica Latino-americana, com sede na Costa Rica.
Mas depois dos assassinatos pelas mãos das forças de segurança de camponeses e sacerdotes, entre eles o padre Rutilio Grande, que era um amigo muito próximo de Romero, essa percepção do religioso mudou radicalmente.
“Essa morte em particular o impactou fortemente”, disse Koll.
Foi assim que ele decidiu levantar a voz e denunciar as violações dos direitos humanos ocorridas em seu país.
Romero reuniu-se em 1978 com o Papa Paulo VI na Santa Sé, que lhe ofereceu palavras de encorajamento e força.
Mais tarde, em 1979, o arcebispo solicitou uma audiência para falar com o Papa João Paulo II. Foi para Roma, mas desta vez a reunião não saiu como ele esperava.
A renomada jornalista cubana María López Vigil, que mora há vários anos na Nicarágua, é autora da biografia Dom Romero: Peças para um retrato, entre outros livros.
Em um relato audiovisual emocionante publicado pela Escola de Formação em Fé Adulta, em novembro de 2017, a repórter relembra as circunstâncias em que conheceu o padre Romero, em maio de 1979.
Ela se encontrava em Madri, onde trabalhava para o jornal espanhol El País.
Voltando da Santa Sé, Romero teve que fazer uma parada de várias horas na capital espanhola antes de pegar o voo que o levaria de volta para El Salvador.
O sacerdote entrou em contato com ela para contar-lhe a sua experiência.
“Eu quero que você me ajude a entender o que aconteceu comigo no Vaticano”, conta López Vigil que o monsenhor lhe teria dito quando se encontraram.
De acordo com a jornalista, a cúria não lhe havia concedido uma audiência com o Papa como ele havia solicitado.
“Como um mendigo, tive que implorar para que me concedessem uma audiência”, teria Romero contado à repórter.
O religioso madrugou e conseguiu estar na primeira fila do grupo de fiéis que se aproxima da Praça São Pedro aos domingos à espera da saudação papal.
“Eu peguei na mão do Santo Padre e lhe falei: ‘Eu sou o arcebispo de San Salvador, preciso falar com você’”, lembra a escritora que o bispo lhe teria contado.
Foi assim que ele conseguiu a audiência.
Após ouvir o relato de Romero, López Vigil recorda, em particular, quando comentou com ela que havia tanta informação “contra mim, contra o povo, contra o arcebispado, contra a Igreja, que eu coloquei numa caixa de papelão todos os panfletos que pude, recortes de jornais, e a primeira coisa que eu disse, foi: ‘Santo Padre: aqui está toda a informação que indica que estamos sendo perseguidos’”.
O religioso disse que o Papa João Paulo II lhe respondeu: “Monsenhor, aqui não temos tempo para ler tantas coisas. Não venha aqui com tantos papéis”.
Um dos materiais gráficos que Romero incluiu foi a foto do cadáver do padre Octavio Ortiz, que morreu, juntamente com quatro outras pessoas, em uma operação militar executada em uma casa de retiros espirituais.
As autoridades haviam dito que se tratou de uma missão contra um quartel-general da guerrilha.
A imagem que Romero mostrou ao Papa tinha sido publicada em uma revista sensacionalista espanhola. Era possível ver que o rosto de Ortiz estava desfigurado.
“Eu disse: ‘Santo Padre, eu o conheço desde pequeno, eu o ordenei, sua mãe chama-se..., seu pai chama-se..., é um menino muito bom’ (...) Eu queria sensibilizar o Santo Padre”, lembra López Vigil que o sacerdote lhe contou.
Romero também teria dito ao Pontífice que Ortiz foi acusado de ser guerrilheiro, e o Papa lhe respondeu: “E não era, monsenhor?”.
“Nesse momento os olhos de dom Romero se encheram de lágrimas. Talvez tenha sido isso que mais lhe doeu: que um de seus sacerdotes (após ser) assassinado de maneira tão cruel, o Santo Padre questionasse a razão pela qual o haviam matado dessa maneira”, conta a jornalista.
De acordo com a escritora, no encontro o Papa João Paulo II exortava e pedia a Romero para que “tivesse uma boa relação com o governo pela paz social”.
“E eu alegava: ‘Não é possível, porque o governo está matando o povo, e a Igreja tem que estar com o povo, não com o governo’”, disse-lhe Romero.
Depois desse encontro com o religioso, a jornalista conta: “Saí convencida de que o matariam. O matariam, estava sozinho”.
E é justamente essa a pergunta que o jornalista salvadorenho Carlos Dada fez, em uma entrevista publicada no jornal digital El Faro, a monsenhor Rafael Urrutia, que fez parte do círculo íntimo de Romero antes do assassinato:
Você chegou ao final do arcebispado de Romero. Tenho a impressão de que ele se sentia abandonado por João Paulo II. Ele alguma vez manifestou o que pensava do Papa?
Doeu-lhe no coração a maneira como o Papa o recebeu e assim o expressava. O Papa não ouvia outras vozes além daquelas que falavam mal de Romero.
Ele se sentia abandonado?
Ele o expressava dessa maneira. Certa vez disse-nos diretamente: “Eu me sinto sozinho e abandonado e, às vezes, reajo com vocês, que estão perto de mim, de maneira inadequada. Peço-lhes perdão”. Eu o vi chorar em sua solidão e me impactou muito que certa vez, que sobre o seu creme de espargos, caíam suas lágrimas. Ele chorava. Disse-nos: “Mostrem-me que eu estou errado e eu vou pedir perdão ao povo no domingo. Se há algo que não posso fazer é enganar o povo”. Isso foi em suas últimas semanas.
No entanto, para o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez, um dos pais da Teologia da Libertação, dizer que o Vaticano o abandonou “é muito forte”.
“São coisas muito complicadas”, disse à BBC Mundo. É que “a informação que tinham (dele em Roma) os neutralizou”.
Dom Romero teve a sensação de isolamento muito antes: no assassinato de Rutilio Grande.
“Romero demonstrou que não era o arcebispo que estava ao lado da oligarquia, como acreditavam aqueles que comemoraram sua nomeação (...) Nesse momento, Romero começou a ser perseguido e isolado por seus próprios irmãos bispos”, disse à BBC Mundo Martha Zechmeister, diretora do Mestrado de Teologia Latino-americana da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas.
De fato, quando Gutiérrez fala do encontro entre Romero e João Paulo II reflete sobre o fato de que a cúria vaticana tinha recebido muita informação de El Salvador e que isso já tinha marcado o ambiente que o acolheu em Roma.
“(Ele) gostaria de ter recebido uma recepção mais calorosa, mas havia informações de seu país, de pessoas de dentro da Igreja, de colegas, de bispos, que (faziam) uma apresentação (de Romero) que não correspondia aos fatos”, indica o teólogo.
Essa informação que o Vaticano recebeu de El Salvador foi “fundamental e, portanto, dolorosa. É um arcebispo que enfrenta coisas em seu país e desconfiam do que está fazendo”, reflete o religioso peruano.
A professora Zechmeister recorda que o Papa Francisco disse que o martírio de Romero não foi apenas o tiro que o matou, mas “seu isolamento no Episcopado salvadorenho e que essa perseguição continuou inclusive após a sua morte”.
A rejeição de Romero pelos bispos de El Salvador é algo que Gutiérrez recorda.
“Eu estive no seu funeral. No funeral foi apenas um bispo que era amigo dele e que o substituiu”.
Para a teóloga Koll, era evidente que não havia disposição por parte do Vaticano de ouvir a perspectiva de Romero sobre o que estava acontecendo em El Salvador.
“Havia uma rejeição, medo, por parte do Vaticano dos movimentos teológicos na América Latina que estavam reconsiderando a estrutura da Igreja e o compromisso pastoral e teológico”, indica a especialista.
Devemos acrescentar a isso o transfundo de “João Paulo II ter experimentado o comunismo na Polônia. Isso representou um bloqueio que os impediu de analisar com outras lentes o que estava acontecendo em El Salvador, em um contexto da Guerra Fria”.
E havia grupos, dentro e fora de El Salvador, que acreditavam que o governo militar estava realmente salvando o país de cair no comunismo.
Mas, como explica Zechmeister, o processo teológico que se vivia na América Latina e em El Salvador era especial e único.
“Este retorno da Igreja latino-americana, que para mim é um retorno a Jesus, a estar com os pobres, a defender os mais vulneráveis, a construir a Igreja a partir da perspectiva dos pobres no contexto da Guerra Fria sempre foi objeto da suspeita do marxismo ou do comunismo”.
“Esta suspeita sempre foi uma nuvem escura sobre todas as tentativas (de fomentar essa visão da Igreja)”, indica a professora.
“E foi uma suspeita que custou muitas vidas, porque, nesse contexto, os aliados dos Estados Unidos foram os governos militares que (os ajudaram) a rejeitar o comunismo e a não permitir que houvesse outra Cuba ou outra Nicarágua”.
“Muitos dos mártires das Igrejas foram fruto dessa política anticomunista. Um lema em El Salvador era: ‘Faça pátria, mate um padre’”.
Nesse contexto, reflete Zechmeister, aconteceu o encontro entre Romero e João Paulo II em 1979.
“Apesar de todos os seus méritos, este Papa, que fugiu da Europa Oriental, que sofreu a opressão do comunismo, não foi capaz de compreender os problemas da América Latina”.
“Houve uma falta de compreensão por parte do Vaticano e do Papa João Paulo II da missão de dom Romero?”, perguntou BBC Mundo à teóloga Koll.
“Eles liam a situação em El Salvador pelas lentes da Guerra Fria, da rejeição do comunismo, de qualquer movimento que eles associassem ao marxismo”, afirma.
“Mesmo essa é uma das razões pelas quais não se falou de sua canonização antes, mas apenas agora com o Papa Francisco. Eles viam em Romero um perigo, (um risco) de abrir a porta para outra maneira de fazer teologia”.
“Romero era um pastor tentando caminhar ao lado de um povo sofrido. O Vaticano, mais do que não ter a capacidade ou a disposição de ouvir Romero, não estava ouvindo os gritos daqueles que estavam sendo massacrados pelo exército salvadorenho nessa época. Não se importavam com essas vidas que estavam sendo perdidas”, reflete Koll.
Algumas pessoas acreditam que dom Romero foi injustamente rotulado de marxista ou de comunista. Koll é uma delas.
“Sim, penso que sim. Ao ler seus sermões e suas cartas, vemos o coração de um pastor que está se abrindo paulatinamente à dor do seu povo e não o faz através de uma análise sociopolítica em particular, mas a partir de uma releitura bíblica no contexto (...) de um povo que sofre”.
De acordo com dom Urrutia, um colaborador próximo de Romero, “João Paulo II não entendia a relação de Romero com as organizações políticas populares do país, que coincidia, às vezes, nas palavras para os pobres com as da esquerda”.
Para Zechmeister estava claro que “Romero não conhecia a filosofia marxista; era um homem profundamente ligado ao Evangelho”.
João Paulo II visitou El Salvador em 1983, em plena guerra civil, e fez um apelo para o diálogo e para uma saída pacífica para o conflito.
“O governo tentou isolá-lo de toda problemática e das tensões sociais”, lembra Zechmeister.
Mas, em um dos percursos que fez, o Papa quebrou o protocolo, alterou a agenda que as autoridades tinham preparado para ele e disse que queria ir ao túmulo de Romero.
“João Paulo II insistiu muito (...) A Catedral Metropolitana estava fechada e tiveram de esperar uma hora, enquanto foram atrás das chaves para abri-la”.
Não houve um discurso, mas o máximo hierarca da Igreja católica ajoelhou-se diante do túmulo, abençoou-o e rezou diante dele por alguns minutos.
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Por que o Vaticano chegou a ver dom Romero como um “perigo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU