17 Março 2018
Óscar Arnulfo Romero será santo. A aprovação foi dada pelo Papa Francisco. Mas seu caminho para a honra dos altares foi tortuoso e cheio de resistências. O arcebispo de El Salvador, assassinado em 24 de março de 1980 pelos “esquadrões da morte” do Exército de seu país, tornou-se um ícone mundial da defesa dos direitos humanos. Mas a instrumentalização de sua figura sempre foi um problema para a Santa Sé, que chegou inclusive a bloquear por tempo indeterminado a sua causa de beatificação.
Pela primeira vez e em entrevista ao Vatican Insider, o postulador de sua causa e presidente da Academia para a Vida do Vaticano, Vincenzo Paglia, revela os motivos que levaram ao bloqueio, primeiro, e ao desbloqueio, depois. Em 2013, quando Francisco autorizou a continuação do processo, pensava-se que a abertura se devia a ele. Na verdade, o desbloqueio foi ordenado por Bento XVI. Isso permitiu que seu sucessor o beatificasse em maio de 2015 e, menos de três anos depois, anunciasse seu iminente reconhecimento como santo da Igreja católica.
A entrevista é de Andrés Beltramo Álvarez, publicada por Vatican Insider, 15-03-2018. A tradução é de André Langer.
O senhor acreditava que a canonização de Óscar Romero viria tão rapidamente?
Inicialmente, não. Com a eleição de Francisco, pensei que o caminho seria mais rápido. Foi muito difícil, cheio de obstáculos e oposições. O próprio Papa, recebendo os bispos salvadorenhos, chegou a falar do martírio de Romero depois da sua morte. Agora, com o término da causa da canonização, será proposto como santo para toda a Igreja. Em todas as cidades onde fui, em todos esses anos, a espera dessa canonização era extraordinária.
Quais aspectos se destacam mais na figura do “bispo dos pobres”?
Dom Romero é o mártir do Concílio Vaticano II, testemunhou com seu sangue o que o Concílio pede a todos os cristãos de hoje: dar a vida, ser mártires. A alguns até derramar seu sangue, e vemos isso inclusive hoje; aos outros, a todos, dar a vida no serviço cotidiano. Romero é o santo do ecumenismo. A Igreja Anglicana, em 2000, colocou-o entre as 10 testemunhas do século XX, e também da sociedade civil, porque as Nações Unidas declararam o dia 24 de março, dia do seu assassinato, como o dia dos direitos da liberdade religiosa. Ele pertence aos santos da nova globalização, que une uma perspectiva altamente evangélica e profundamente humana. Isso o torna incrivelmente atual.
Em 2007, em sua viagem a Aparecida, no Brasil, Bento XVI falou muito bem sobre Romero. Mais tarde, em 2013, o senhor anunciou que sua causa de beatificação tinha sido “destravada”. O que aconteceu neste momento?
O Papa Bento XVI estava convencido de que Romero merecia ser beatificado e canonizado. Eu mesmo falei com ele várias vezes quando ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Por isso, naquela viagem, ele, de maneira espontânea, disse o que pensava. A reação àquela resposta foi muito dura aqui em Roma. Alguns cardeais fizeram uma espécie de irrupção violenta a ponto de sugerir ao Papa para dilatar o processo, para detê-lo. De 2007 a 2012, eu mesmo não consigo entender o porquê, considerando que todas as razões que levaram ao bloqueio na Doutrina da Fé foram superadas. Não havia explicação.
Como se chegou ao desbloqueio?
Lembro-me do episódio. Era 20 de dezembro de 2012, o Papa Bento XVI tinha me nomeado presidente do Pontifício Conselho para a Família, um dicastério que tinha sido presidido anteriormente pelo cardeal Alfonso López Trujillo, um dos adversários mais ferrenhos (da canonização de Romero). No final de uma audiência, eu manifestei ao Papa o que considerava moralmente intenso. Eu disse a ele que corríamos o risco de entrar para a história por uma injustiça, que era exatamente esta: a causa da beatificação estava sendo bloqueada pela Doutrina da Fé, embora as razões pelas quais tinha sido bloqueada já não existissem mais. Não pedia outra coisa senão que a causa continuasse seu concurso normal conforme previsto no Código de Direito Canônico e nas regras da Congregação para as Causas dos Santos.
E então... o que aconteceu?
O Papa Bento XVI disse imediatamente: “Concordo com você, devemos destravá-la. Desça imediatamente, vá encontrar o prefeito da Congregação e diga-lhe que o Papa pede que seja desbloqueada, e depois eu mesmo vou lhe escrever”. Faltava um mês e meio para a renúncia ao papado. O gesto me comoveu porque, devo admiti-lo, o desbloqueio se deve a ele.
Todos pensavam que o responsável tinha sido o Papa Francisco...
Repito: foi o Papa Bento. Considero isso um dos seus muitos presentes à Igreja.
Muitas resistências nasceram do fato de que Romero ficou no meio de uma disputa política na América Latina e havia a preocupação de que sua pessoa fosse usada pela esquerda hostil à Igreja. Era apenas um problema ideológico?
Estou convencido de que os opositores do processo de beatificação estavam como que bloqueados e dirigidos por esta instrumentalização por parte de uma certa esquerda. Romero não era um expoente da Teologia da Libertação mais extrema. Ele disse isso claramente certa vez: “Eu sou da Teologia da Libertação de Paulo VI, do desenvolvimento integral do homem”. Por outro lado, existiu um silêncio na Igreja salvadorenha, como se o tivessem abandonado, esquecido.
Como se conseguiu esclarecer a posição do bispo?
Foi necessário aprofundar o estudo dos documentos, dos textos, compreender os diversos problemas sociais, políticos e também espirituais em torno da figura de Romero, assim como no país, no início da década de 1980. Tudo isso ajudou a esclarecer o papel do bispo, arrancando-o da instrumentalização da esquerda e convidando a Igreja a fazer dele um testemunho da fé cristã. Nisso São João Paulo II foi muito importante. Depois de um mal-entendido inicial entre eles, o Papa mudou completamente de ideia e pediu para afirmar que Romero é da Igreja: ele mesmo me pediu isso várias vezes.
Ainda há resquícios dessas resistências?
Fiquei tristemente surpreso ao saber que, em algumas dioceses de El Salvador e mesmo na vigília da sua beatificação, não era permitido pronunciar seu nome. Tão grande foi o silêncio, culpável de acordo com o meu ponto de vista, de parte do episcopado salvadorenho. Mas agora Romero é uma figura que une o país e toda a América Latina. Um bispo que pede a toda a Igreja latino-americana para que volte à essência da pregação evangélica: comunicar amor a todos, particularmente aos pobres, também combatendo esses falsos profetas que hoje são vistos em alguns grandes líderes políticos, as realidades dramáticas da violência das ‘maras’ ou o engano das seitas que seguem apresentando uma religiosidade da prosperidade.
Qual é o milagre que abriu a canonização?
Uma mulher salvadorenha, que nos últimos dias de sua gravidez estava piorando de saúde até quase perder a criança e morrer ela mesma. Os médicos conseguiram salvar o bebê com uma cesariana, mas se resignaram com a morte dessa mãe. No dia 24 de maio de 2015, seu marido, quando Romero foi beatificado e a esposa estava bastante mal de saúde, abrindo uma Bíblia encontrou a imagem do beato e veio-lhe a inspiração para rezar a ele. Depois, alguns amigos seus também fizeram o mesmo. Em poucos dias, a senhora não apenas não morreu, como ficou completamente curada.
Já foi escolhida a data da canonização? Ele será padroeiro de algo em particular?
O Papa decidirá a data da canonização durante um Consistório, provavelmente no mês de maio. Será providencial, caso isso venha a acontecer, que a canonização do arcebispo Romero aconteça junto com a de Paulo VI; um excelente presente. Quanto a ser padroeiro, não há solicitações específicas. Com a canonização, Romero torna-se um santo para toda a Igreja. A América Latina deu um Papa e agora oferecerá este santo a todos, algo que só pode honrar este grande povo.
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“A canonização de Romero foi destravada por Bento XVI”. Entrevista com Vincenzo Paglia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU