“À luz da tradição judaico-cristã, da nossa teologia, temos que resgatar o sentido do encantamento, da beleza da criação, o sentido do mistério, o sentido de que há um criador que nos convoca a sermos cooperadores ou administradores responsáveis [da criação] e não nos deu a pretensiosa atitude atual de fazer o que bem entendermos com a obra criada”, afirma bispo de Livramento de Nossa Senhora, Bahia, ao comentar a Campanha da Fraternidade deste ano
Para a Igreja do Brasil, a ecologia integral e a conversão ecológica são importantes porque confrontam com a economia nacional. As expressões não são slogans. Ao contrário, fazem parte do ensinamento da Doutrina Social da Igreja e propõem, como o próprio termo conversão indica, uma mudança de mentalidade em relação à nossa postura diante da criação e da crise ambiental em curso. Trata-se, como resume dom Vicente de Paula Ferreira, da “convocatória cristã de voltarmos ao nosso endereço originário, que é este de sermos guardiões da casa comum”. O tema é abordado na Campanha da Fraternidade deste ano, Fraternidade e Ecologia Integral.
Segundo dom Vicente, “os três grandes pilares que dão uma certa emancipação ao Brasil são o agronegócio, a mineração e a transição energética”. Mas essas atividades, adverte, “têm sérios problemas e não resolvem as crises do país. Pelo contrário, estão aprofundando-as”. Essas questões que dizem respeito ao desenvolvimento socioeconômico do país, assegura, não estão desconectadas da fé. “Não é possível acolher, num tempo de quaresma, de conversão, uma espiritualidade profunda, que nos leve, enquanto cristãos, a nos comprometer em nos perguntar que país queremos, que futuro queremos para as novas gerações, sem questionar os danos que esses grandes empreendimentos estão gerando”, afirma.
Nesta entrevista, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por WhatsApp, o religioso convida os cristãos e pessoas de boa vontade a dois movimentos: tocar o corpo crucificado de Cristo na natureza e nos pobres e resgatar a singularidade da oração cristã, marcada pelo silêncio orante de intimidade com o mistério, vivenciando a mística profunda. “Se não tocamos o corpo crucificado de Cristo na natureza e nos pobres, que Páscoa teremos?”, questiona. E acrescenta: “Se não for por uma fé profunda, não nos mantemos nessa perspectiva de união junto aos descartados. Não tem jeito. Não tem fé mais profunda do que continuar acreditando em Deus até quando sentimos que ele está ausente. (…) Temos que ter uma dimensão profunda de sermos amigo daquele que seguimos, de sabermos que existe um evangelho e uma palavra que nos une profundamente a esse mistério”.
Dom Vicente de Paula Ferreira (Foto: Arquivo Pessoal)
Dom Vicente de Paula Ferreira é bispo da diocese de Livramento de Nossa Senhora, na Bahia, e membro da Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE, Belo Horizonte), mestre e doutor em Ciências da Religião pela UFJF. Foi bispo auxiliar da arquidiocese de Belo Horizonte, onde acompanhou pessoas e comunidades atingidas pelo crime da Vale com o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho.
IHU – Qual é a origem e o significado das expressões “ecologia integral” e “conversão ecológica”. Como surgem essas expressões, em que contexto histórico e por quê?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Neste ano, celebramos dez anos da Carta Encíclica Laudato si’, do Papa Francisco. Essas duas categorias estão explicitadas nesse texto. Isso não significa que elas nasceram ali, mas essa encíclica apresenta uma base mais explícita sobre ecologia integral e conversão ecológica. João Paulo II, na Exortação Apostólica Pós-sinodal Pastores Gregis, um documento para os bispos, fala sobre a conversão ecológica e convida os bispos a serem os primeiros promotores dela. Nesse texto, reconhece-se a crise ambiental. Mas esses dois termos estão mais explícitos na Carta Encíclica do Papa Francisco.
A ecologia integral tem um significado conectado à questão da crise socioambiental. O discurso atual da Igreja, principalmente os documentos de Francisco, considera que atravessamos uma grave crise socioambiental que tem raízes humanas. Que raízes são essas? Um estilo de vida tecnocrata, que coloca o lucro acima da vida, em função da ganância. E aí começa o extrativismo sem ética e sem limites da natureza. Isso provoca graves danos e consequências, como as que estamos sentindo na pele atualmente. Um exemplo é o aquecimento global.
Por isso se propõe uma ecologia integral. Ou seja, tudo está interligado e nós não somos donos absolutos da criação. Somos natureza e participamos dessa cadeia maravilhosa da vida como cuidadores, guardiões e não como exploradores para satisfazer um imaginário de poder e de riqueza insaciável. Somos uma intercomunicação com todas as coisas. Para a ecologia integral, tudo está interligado. Se nós produzimos o bem e cuidamos [da criação], isso gerará vida. Se a destruímos, a consequência será feri-la.
Se a crise tem raízes humanas, é preciso a conversão ecológica. Quando falamos em conversão ecológica, talvez as pessoas se confundam e pensem que, com essa ideia, queremos que todos se tornem ambientalistas, militantes. Não é isso. Trata-se de uma mudança de estilo de vida diante do planeta. A Terra não suporta mais o discurso desenvolvimentista do capitalismo, que visa lucro em cima de lucro e cada vez mais exploração. As fontes naturais estão se esgotando e não temos planeta B.
À luz da tradição judaico-cristã, da nossa teologia, temos que resgatar o sentido do encantamento, da beleza da criação, o sentido do mistério, o sentido de que há um criador que nos convoca a sermos cooperadores ou administradores responsáveis [da criação] e não nos deu a pretensiosa atitude atual de fazer o que bem entendermos com a obra criada. Portanto, temos, nesses conceitos, a convocatória cristã de voltarmos ao nosso endereço originário, que é este de sermos guardiões da casa comum.
IHU – Há muitos anos a Igreja tem proposto os temas da fraternidade e da questão ambiental e da terra em suas campanhas. O que a Igreja propõe com a relação entre fraternidade e ecologia integral na Campanha da Fraternidade deste ano?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Há quase 50 anos a Igreja vem trabalhando de alguma forma a questão da terra, da biodiversidade, da Amazônia, da ecologia. Neste ano, a campanha nasceu de uma ideia da Comissão de Ecologia Integral de Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que levantou esse tema por conta de neste ano celebrarmos os 800 anos do Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, por ser o ano da COP30 em Belém e por ser o ano do Jubileu da Esperança.
Campanha da Fraternidade 2025 (Foto: Reprodução CNBB)
Sem colocar a ecologia integral como como ponto central e constitutivo da doutrina da Igreja, não vamos avançar no compromisso cristão. Para a Igreja do Brasil, esse tema tem uma importância muito grande porque confronta com o que está posto enquanto economia nacional. Os três grandes pilares que dão uma certa emancipação ao país que está se desenvolvendo são o agronegócio, a mineração e a transição energética. Mas esses grandes empreendimentos têm sérios problemas e não resolvem as crises do país. Pelo contrário, estão aprofundando-as. Ou seja, os causadores do problema são apresentados como solução do problema.
A Igreja do Brasil tem que acordar para esses elementos que têm, de fato, colocado o país na fronteira de uma das possíveis áreas mais atingidas pelos eventos extremos da natureza. Não é possível acolher, num tempo de quaresma, de conversão, uma espiritualidade profunda, que nos leve, enquanto cristãos, a nos comprometer em nos perguntar que país queremos, que futuro queremos para as novas gerações, sem questionar os danos que esses grandes empreendimentos estão gerando. Não é possível esperançar o futuro com posturas extremamente agressivas ao meio ambiente. Temos que ter coragens, enquanto cristãos, de pautar outros diálogos. Temos alternativas, mas a cegueira pelo lucro a todo custo está acabando conosco e com a natureza.
Os povos originários têm a cultura do bem-viver, que é respeitosa e cuidadora com o meio ambiente. Além disso, existem várias experiências de agroecologia no Brasil, assim como as experiências dos ribeirinhos e dos pescadores, que não recebem apoio do Estado ou, quando o recebem, é de forma desleal porque o que se investe em agronegócio é infinitamente maior do que o que se investe nos pequenos produtores que conservam as nascentes.
A Campanha da Fraternidade sobre Ecologia Integral não é só uma denúncia, mas reforça a nossa defesa da cultura do bem-viver de nossos povos originários, quilombolas, pescadores e agricultores.
IHU – Muitos cristãos têm dificuldades de entender as preocupações da Igreja com a temática socioambiental. Não veem relação entre essa questão e a fé. Como o senhor explicaria a atenção que a Igreja tem dado à realidade socioambiental, especialmente para os mais pobres e vulneráveis, para aqueles que não conseguem compreendê-la?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Isso já foi denunciado há décadas, especialmente pelos teólogos da Libertação na América Latina: nós somos um continente de muita religião e pouca libertação. Há uma dicotomia entre fé e vida, entre culto e práxis sociotransformadora. Romper com essa dicotomia é um dos grandes desafios da nossa evangelização na América Latina e no Brasil. A dicotomia é como se pudéssemos viver uma fé desencarnada. Mas isso é uma heresia porque no mistério da encarnação de Cristo, toda a realidade criada é iluminada por uma mensagem profundamente nova, que é essa questão de que, do ponto de vista antropológico da fraternidade universal, somos todos irmãos e irmãos e, do ponto de vista da natureza, toda a obra criada participa da glória de Deus. Existe uma sacralidade em toda a criação. Isso é doutrina da Igreja; não é uma invenção de agora. Isso é fruto de longos debates e construções sobre o mistério de Cristo, como, por exemplo, os textos paulinos do Cristo cósmico: Nele, por Ele, para ele todas as coisas foram feitas.
Como bispo, meu ponto de partida para ser um ambientalista hoje, é um ponto de vista de fé. A minha atitude de defender a natureza é radicalmente uma atitude de fé. Claro que depois ela ganha contornos políticos e sociais de lutas e pautas, mas a origem dela é uma atitude de fé. Ou seja, de não ver a natureza e a criação apenas como um aglomerado de matérias à minha disposição para ser explorada.
No olhar cristão, da tradição judaico-cristã – para nós, que somos discípulos de Cristo –, a Páscoa de Cristo insere em todas as coisas a potencialidade de uma sacralidade que tudo pertence a Deus. Nesse sentido, nós estamos nessa teia como consultores e cuidadores da criação.
É bom lembrar que os documentos da Igreja fazem uma distinção entre natureza e criação. Natureza, apenas como matéria, é uma coisa. Criação inclui a relação humana com o criador. Portanto, tem aí um elemento de fé. Quando nos relacionamos com as coisas, nós também nos relacionamos com aquele que criou essas coisas. Esse é um elemento profundo de fé. Por isso não há por que continuarmos insistindo nesse tipo de equívoco de fazer separações, de tal forma que a Igreja só cuidasse do culto, dos sacramentos, da liturgia e não se interessasse por outros temas, como o ecológico. Até porque a Igreja tem um grande material que se chama doutrina socioambiental da Igreja, com documentos importantes há séculos. Mais recentemente, as cartas Laudato si’, Laudato Deum e Querida Amazônia reforçam esse compromisso cristão.
IHU – Em 2019, o senhor esteve envolvido com a comunidade atingida pela mineração em Brumadinho. Pode contar como foi essa experiência, como a vivenciou junto à comunidade? Quais tem sido as consequências da mineração na região?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Em janeiro de 2019, eu era bispo auxiliar e atuava na região de Brumadinho, em Minas Gerais, onde aconteceu um dos maiores crimes socioambientais das mineradoras, destruindo toda a bacia do Paraopeba, quatro anos depois de ter acontecido o maior crime ambiental do Brasil, que foi a ruptura da barragem Bento Rodrigues, em Mariana, que também destruiu a bacia do rio Doce, um dos maiores rios nacionais.
Ali aconteceu o início de um grande movimento interior da minha pessoa, não só pastoral, mas da vida subjetiva. Primeiro, porque foi uma questão muito traumática. No meio dessas grandes feridas, fui totalmente atingido por essa realidade. Comecei a ler e buscar referências sobre o que estava sendo dito. A Laudato si’ já tinha sido publicada há quatro anos, já tinha acontecido tantos outros crimes, além do aquecimento global. Comecei a perceber que Brumadinho não era uma questão local, apenas, mas, o resultado de um estilo global. Essa foi uma experiência de um não saber em meio de uma dor profunda. Surgiu a questão do que fazer diante de tantas mortes e desespero, com toda a nossa estrutura eclesial e conhecimento. Ali, entendi a pedagogia de estar no meio. Não adianta discursos e bonitas análises. Cristianismo é corpo, é a história do bom samaritano. Quando a ferida chega, o que conta é o amor, a doação, a capacidade de nos jogarmos ali no meio.
A partir desse momento, percebi que, enquanto pessoa, ministro e bispo, passei a olhar a situação de um modo diferente. Tenho abandonado a postura do colonialismo. Geralmente, chegamos nos locais com a pretensão de que temos as soluções para as coisas. Então, comecei a andar com as pessoas. Não sei mais como chegar numa diocese e impor minhas ideias. Posso propor algo, mas tenho que conversar com as pessoas. Os atingidos [de Brumadinho] me ensinaram categorias profundamente novas, as quais até conhecia no papel, mas não as conhecia no coração.
Resumidamente, diria que somos uma escrita em curso; não somos o ponto final. Aí comecei a perceber que o que se pode construir pelo amor vai gerar alguma vida, mas há limites profundos que transcendem as nossas possibilidades. Em Brumadinho, vivi tudo isso e percebi que era hora de assumir uma posição na vida. E a minha posição, a partir de Brumadinho, foi e é uma posição antissistêmica. Fiz um voto de não vender a minha alma para nenhum discurso que venha colocar panos quentes naquilo que está sendo duro para tanta gente. Assumi essa posição de ser honesto comigo mesmo. A partir dali, comecei a defender os atingidos, suas causas, dores, condenar quem causa esse sofrimento e exigir justiça. Claro que não é a justiça do mundo, aquela de revanche e violência, mas a justiça do Reino de Deus. Os nossos mártires têm direito sobre nós.
A questão ecológica hoje é a grande questão. Não dá para pensarmos nada hoje sem discutirmos essa problemática. Creio que isso tem me colocado em fronteiras cada vez mais amplas e complexas, apesar de a nossa voz ser muito pequena diante de tanto negacionismo e violência com a vida das pessoas.
IHU – O senhor participa da Rede Igrejas e Mineração. Que impacto o extrativismo tem gerado na vida dos povos da América Latina? O extrativismo pode ser considerado um dos principais problemas de destruição socioambiental na região?
Dom Vicente de Paula Ferreira – A Rede Igrejas e Mineração é uma rede internacional, que tem feito mapas e cartografias dos conflitos em territórios de mineração. Claro que tem outros elementos que causam danos ao meio ambiente, mas consideramos que a mineração, hoje, é aquilo que concentra as maiores dívidas e passivos em relação aos nossos povos e ao meio ambiente. Isso é visível não só no Brasil, como na América Latina e na África. Participei de um debate sobre guerra e extrativismo na África. As conclusões a que chegamos é que onde há extrativismo, há guerra. Há um casamento entre as duas coisas. Guerra e mineração andam juntas. Estão querendo vender a imagem de uma mineração verde, mas ela não existe.
IHU – Por isso, o senhor e outros bispos assinaram um abaixo-assinado contrário à exploração de petróleo na Margem Equatorial?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Esse abaixo-assinado é um repúdio à exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Lamentamos e condenamos que, no momento em que precisamos conservar e preservar a Amazônia – e não só ela –, se venha com esse discurso de acelerar o extrativismo de petróleo. Nós chamamos isso de suicídio ecológico. Alguns cientistas dizem que estamos na década decisiva para resolver alguns problemas ambientais. Então, como é possível manter o discurso favorável ao petróleo hoje? Precisamos ter coragem de tomar outras posturas. Elas existem como possibilidade, mas a vontade política não passa por aí.
IHU – Recentemente, o senhor disse que “as feridas são o nosso endereço pós-moderno, endereço religioso, político, social”. Pode desenvolver um pouco mais esse pensamento? Como o Evangelho e a espiritualidade cristã católica podem contribuir para sanar as feridas e gerar um novo despertar de esperança em meio ao sofrimento?
Dom Vicente de Paula Ferreira – A vulnerabilidade foi tema da minha pesquisa pós-doutoral: cristianismo e vulnerabilidade na pós-modernidade. Mas fiquei ainda numa categoria abstrata, filosófica. Depois que fui para dentro das feridas reais, como esse momento de imersão em Brumadinho, passei a considerar que vivemos, de fato, apesar de todas as belezas tecnológicas, facilidades de comunicação e medicina avançada, num tempo de fragilidades profundas.
Sobre isso, gostaria de fazer uma distinção. Uma coisa é a vulnerabilidade humana: todo ser humano vai nascer, crescer, viver e morrer. Isso é próprio da vida humana porque desde que nascemos, estamos preparados para morrer. Mas hoje existe uma vulnerabilidade fabricada, produzida. É com essa que tenho me debatido e colocado minha voz. Isso diz respeito àquela frase que escutamos com frequência: “mas poderia não ter acontecido; foi fruto da negligência humana, da ganância, do poder, da violência, da tortura”. É essa vulnerabilidade que tenho trabalhado e chamo de “feridas”.
Essas feridas são o lugar e o endereço da nossa vocação cristã. Uma coisa é estarmos solidários com quem está velho, com a vulnerabilidade do Papa Francisco, que está doente e rezamos por ele e queremos o bem dele – como se diz, dor não se compara; dor se consola. Mas existe uma dor que é produzida por um sistema que poderia ser diferente. Ela poderia nem existir, por exemplo. Essa é a dor das pessoas que perderam a vida em Brumadinho ou daquelas que hoje, seis anos depois do desastre, continuam em luto, tomando ansiolíticos, com a vida dispersa e sem sentido. Assim como também acontece na fronteira das guerras, das violências, dos refugiados. Tudo é produzido pela falta de distribuição, pelo acúmulo.
Esse endereço é que deve nos colocar, como cristãos, a gerar, de fato, o mundo novo da Páscoa de Cristo, da distribuição, do cuidado com a vida, da proteção ambiental. Por isso, considero que a vulnerabilidade causada pela injustiça é o nosso endereço. Até porque ela está escancarada nos quatro cantos do mundo. Fico cada vez mais assustado com quantos moradores de rua existem na maior potência do mundo, que é os EUA, quantas cidades já ficaram submersas com a elevação do nível do mar. Ali existem pessoas e sonhos.
A minha fé é uma fé desde baixo. Estou cada vez mais contagiado com aquilo que é lixo, é sofrido, esquecido. Se fosse para compormos um novo sistema global, diria que a minha proposta seria um ecossocialismo que nasce desde baixo, desde aquilo que é considerado descarte, inclusive, o descarte natural, como o plástico, mas também o descarte humano. É como se olhasse com o olhar profundo da fé cristã e olhasse o próprio descartado, que é Jesus, que ressuscitou.
Se não tocamos isso que é considerado lixo no mundo de hoje, se não envolvemos isso na nossa perspectiva de fé, se não tocamos o corpo crucificado de Cristo na natureza e nos pobres, que Páscoa teremos? Não teremos Páscoa. É um pouco a experiência de Tomé, que estava descrente até que tocou o corpo ferido de Cristo e confessou: “Meu Senhor e meu Deus”. Muitas vezes, confesso mais profundamente minha fé quando vejo as vítimas, os feridos na minha frente, quando tenho contato com eles, sou amigo deles e digo “Meu Senhor e meu Deus, aqui está o teu povo. Se não estiver aqui, não vou encontrá-lo em outro lugar”.
Esta é uma realidade profundamente cristã. Jesus nos avisou que na nossa perspectiva escatológica os pobres, os presos, os nus, os famintos serão nossos juízes. A realidade daquilo que está mais descartado nos convoca a viver essa fé solidária com uma opção transparente de estar com os descartados, que são associados ao próprio corpo descartado de Cristo, mas que é também o lugar da Páscoa.
IHU – Quando estão imersas em conflitos e sofrimentos, muitas pessoas questionam a esperança, a existência de Deus e se afastam dele. Na sua avaliação, como a reflexão sobre os problemas socioambientais enfrentados no mundo, hoje, e o contato com aqueles que são impactados por esses problemas podem despertar as pessoas para o descobrimento e a vivência do mistério cristão?
Dom Vicente de Paula Ferreira – O real e a dor nos revelam muita coisa, inclusive, às vezes, uma imagem muito infantil de fé. Claro que se a pessoa passa a vida toda escutando um discurso de que Deus não vai deixar que nada aconteça com ela, isso leva a uma visão infantil porque não confere com o real. Nós estamos expostos no combate, na vida. Se a pessoa tem essa imagem de Deus e depois lhe acontece uma tragédia, é natural que ela se desencante, talvez não com Deus, mas com aquela imagem que foi vendida ou apresentada para ela.
Aí tenho uma crítica a alguns processos de evangelização. Muitos processos, ao invés de levarem as pessoas à comunhão mais profunda do cristianismo de Jesus Cristo, acabam alienando-as. O discurso de que nada vai acontecer com você, que você está numa redoma, é falso. Essa é uma forma barata de vender a religião, mas que sai muito caro. Estamos cheios desse discurso. Fico apavorado quando escuto vários pregadores com discursos insustentáveis teologicamente, biblicamente e evangelicamente, porque a cruz existe. O caminho da batalha, do confronto e a dor existem.
O outro caminho seria o da mística profunda, isto é, a oração vivida, de fato, numa comunhão com este mistério de que o próprio Deus foi para a cruz. Em Brumadinho, eu dizia: “Vou abandonar os crucificados porque estou questionando onde está Deus?” Perguntava onde estava Deus até que cheguei a uma inversão da pergunta. Parei de perguntar “Onde está Deus?” e passei a perguntar “Onde estou eu neste momento?”, “Onde estamos nós?”. Não tenho nenhum problema em dizer que se não for por uma fé profunda, não nos mantemos nessa perspectiva de união junto aos descartados. Não tem jeito. Não tem fé mais profunda do que continuar acreditando em Deus até quando sentimos que ele está ausente. E continuamos apostando e crendo.
A pergunta que temos que fazer é que tipo de evangelização temos feito, se não levamos as pessoas a uma imagem completamente alienada do mistério de Deus, do cristianismo. Quando vem os grandes problemas reais, fica mais frágil manter o caminho de fé.
Ainda sobre a oração, gostaria de dizer que não dá para entender como a oração está virando espetáculo. A nossa oração cristã tem outro registro. Ela é de uma intimidade com o mistério, no sentido de que ao mesmo tempo é silencio e revelação. Temos que ter uma dimensão profunda de sermos amigo daquele que seguimos, de sabermos que existe um evangelho e uma palavra que nos une profundamente a esse mistério. Jesus disse: “Vai, entra no seu quarto e fica em silêncio”. É uma mística profunda. Temos que trabalhar mais a mística do silêncio. Não o silêncio passivo, mas o silêncio orante, que é profundamente criativo, que é onde se hospeda a esperança. Essa esperança de pura espera é um perigo. Mas no silêncio, onde buscamos o esperançar, o qual nos potencializa, aí está o segredo da nossa vida orante e da nossa mística.
Quando converso com as mães que perderam filhos, com pessoas que perderam amigos, companheiros, vejo muito forte a presença dos mártires como uma força ancestral. Eles não deixaram de ser uma memória. Escutei uma mãe dizer algo que me tocou muito: “Mataram meu filho duas vezes. Além de terem matado o corpo, feriram a memória porque inventaram uma história sobre ele”. É isso que acontece muitas vezes em nossos territórios feridos. Além de matarem fisicamente, matam também a memória. É por isso que luto pela memória.
Os atingidos não acreditam muito na justiça. Eles acreditam muito mais em manter a memória. Isso é muito forte na luta deles. Sobre a justiça, eles sempre apontam para o céu porque se Deus não olhar, nós, humanos, não vamos conseguir fazer justiça. Essa é uma faca de dois gumes porque nesses territórios também é possível usar um discurso religioso alienador diante de situações que poderiam ter sido evitadas.
A fé cristã tem um papel fundamental. Respeitando e caminhando junto com as outras religiões, penso muito que o futuro é o cristianismo de Jesus, que faz nascer a esperança onde só existe escombro. Uma vez, uma pessoa me mostrou uma flor nascendo no meio da lama. Só tinha lama no local, mas nasceu uma flor. É quase uma imagem do nosso cristianismo pós-moderno atual, uma esperança que germina nos escombros dessa vida. Temos que ter muita fé e oração para nos mantermos nesse caminho. Temos que cuidar desse espaço criativo de silêncio que nos coloca como fios de uma teia e não a teia. Estamos emaranhados nela com muitos outros mistérios.
IHU – Como o senhor tem vivido o Jubileu da Esperança na sua comunidade?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Estou em Livramento [de Nossa Senhora], no Nordeste, e tenho visto que a própria realidade aqui é dinâmica e diversa. Tem desde as grandes belezas, a Chapada Diamantina, até o sofrimento do sertão, da dureza da vida. Tudo isso tem me ajudado a sentir a força da vida.
Não podemos nos esquecer que a esperança teológica não é uma coisa sobre a qual temos posse; ela é um dom que nos provoca. Quando me sinto esperançoso, tenho que agradecer porque tenho esperança. Mas quando me sinto desesperado, tenho que me perguntar: o desespero serve a quem?
A minha esperança teológica é uma esperança profundamente política porque só acredito na esperança cristã, que tem a consciência de ser dom que vem do ressuscitado, se ela se colocar no caminho, na estrada. Do contrário, vira uma esperança de pura espera e isso serve aos dominadores e opressores. Para o Jubileu da Esperança, temos que tomar cuidado para não cair num discurso ilusório de que somos bons, Deus vai interferir na Terra e não vai acontecer nada conosco. Há um discurso de esperança que aliena. Eu acredito na esperança de Cristo. Espero e busco, caminho, construo, defendo.
A esperança que tenho vivido nessa região é uma esperança teológica, que se transforma numa voz política. É a esperança cristã que me leva a lutar contra o fascismo, a ditadura, a depredação do meio ambiente, contra o machismo, a prepotência das grandes empresas que colocam mais de 50% do lucro global nas mãos de 1% dos homens. É a esperança cristã que me leva a pontuar e a lutar contra isso. Temos que dizer que não dá para casar cristianismo com fascismo nem com capitalismo; temos que inventar a história sempre nova do Reino de Deus. Não rima colocar a Bíblica debaixo do braço e defender a pena de morte. Isso é absolutamente incompatível e temos que ter coragem de falar isso.
Esperança não é a esperança de estar me sentindo bem porque meu ar-condicionado está funcionando, tenho meu dinheiro, meu sucesso, apesar de o mundo estar acabando. Como diz minha mãe, existem pessoas que são tão pobres que só pensam em dinheiro. Esse é o desespero maior dos dias atuais. Existem pessoas que estão encharcadas pela posse. Isso é desesperador. O dinheiro, a traça corrói, e o cemitério vai esperar todo mundo. Mas quando luto pelos princípios profundos da fé cristã e quero transformar a realidade, não sobra tempo para ficar desesperado porque há tanta coisa para fazer e tanta coisa que podemos fazer. Se a esperança que nasce da fé não se tornar uma esperança política, essa fé vira uma fé sem obras; é morta.
IHU – Eu gostaria de encerrar com a sua declaração de que a Páscoa não acontece se não tocarmos as feridas do corpo crucificado de Cristo. Como os cristãos e pessoas de boa vontade podem tocar o corpo crucificado de Cristo nesta quaresma? Qual sua mensagem para nos animar a viver este novo tempo litúrgico?
Dom Vicente de Paula Ferreira – Vamos atravessar um momento muito importante da fé cristã, mas gostaria de chamar a atenção para algumas coisas: por favor, acompanhem o Cristo na sua dimensão holística e não olhem apenas para um fragmento dele. Ele tem uma vida, uma história concreta, uma cruz e a Páscoa. Nós vamos perceber que em todo o itinerário de Cristo há a instauração do Reino de Deus. A caminhada quaresmal deve nos levar a sermos mais comprometidos com o reinado de Deus. Sem superarmos ou combatermos a violência contra a Mãe Terra e nossos irmãos e irmãos, não estaremos participando desse reinado. A quaresma é tempo de tomarmos, de fato, a consciência de que se nós temos um céu como destino, também temos uma terra para ser cuidada. Se não cuidamos da terra, segundo a visão cristã, esse futuro ficará comprometido. A nossa hora é agora, aqui, com os pés no chão e na realidade.
O que fazer quando a Igreja grita “fraternidade e ecologia integral”? Dentro da sua casa, como você desperdiça alimentos? O que está acontecendo no rio da sua cidade? Existe uma rede no seu município da qual você possa participar e cobrar ações dos vereadores e do prefeito ou participar de um movimento de cuidar do ambiente? No âmbito municipal e estadual é possível fazer muita coisa. No âmbito federal, existem pessoas que leem e escutam o que estamos falando e têm influências.
O que não pode acontecer com nós cristãos é a indiferença, o negacionismo. O fato de acordarmos algumas pessoas já faz uma diferença grande. Cristo nos disse que quem não distribui os seus talentos não adianta ficar esperando um depois. Mesmo que você ache que suas ações são insignificantes, se for por amor, faça, viva, porque o amor não tem tamanho; ele tem consequências maravilhosas. Tome atitudes e vá participar de redes e fazer alguma coisa.
A violência e a guerra só têm um destino: a morte. Ela já é a negação do absoluto, que é Deus. Quando amamos, desobstruímos muitos canais de vida. É como ser como um poeta: depois que escreve o poema, nem imagina o efeito que causa nos corações das outras pessoas. Seja um verso bonito nessa história. Vale a pena viver o mistério pascal desse jeito.
Talvez, algumas pessoas se sintam desanimadas porque não são presidentes, não ocupam cargos. Mas façam algo a partir do seu exemplo pequeno. É nesse sentido que deixo minha mensagem para este tempo pascal: o ressuscitado nos conduz. Vou repetir a frase do início: nós não somos o ponto final; somos uma escrita em curso. Vamos escrever, então, com amor.