A tênue linha que separa “a civilização” da barbárie foi ultrapassada. Em uma era em que os horrores das guerras são incapazes de nos sensibilizar, o mundo caminha para uma nova ordem mundial multipolar. A modernidade está decadente e o tecnopoder está lado a lado do tecnomacho. A maior democracia do mundo definha frente às arbitrariedades que culminam no autoritarismo imposto por seu mandatário. O fim de um sonho para os milhares de imigrantes deportados e agora presos. Enquanto permitimos o extermínio de uma população inteira, as crianças perguntam, “mamãe, vamos morrer?”. Medo, repressão e insegurança dão o tom do caos que percorre o planeta. Essas e outras notícias nos Destaques da Semana do IHU.
Confira os destaques na versão em áudio.
“A paixão lúcida do ódio perdura no tempo. E ainda por essa razão, ele não tem como objetivo apenas a derrota do adversário e o triunfo pessoal, mas sua aniquilação, a humilhação, a negação de sua própria dignidade [...] A recusa em reconhecer a existência separada do pluralismo do Dois, a vontade férrea de reconduzi-la ao monolinguismo do Um, estrutura a ilusão de uma comunidade que se constituiria na anulação delirante das diferenças, como uma comunhão que exclui toda liberdade. Esse é o sonho que inspirou a terrível temporada de totalitarismos ideológicos do século XX. No entanto, hoje podemos observar uma variação crucial desse tema que vem do próprio Donald Trump”, sublinhou Massimo Recalcati, psicanalista italiano, que fez uma boa análise dos tempos atuais. Nesse mesmo sentido, Giuseppe Savagnone, ao comentar sobre a erosão do direito internacional, pontuou que o projeto colonial não é novidade, mas que ela está na “proclamação oficial de um projeto baseado exclusivamente nos interesses do mais forte, em nome da sua própria superioridade militar e econômica. A força substitui a razão e a lei e não só não faz nada para escondê-la, mas a assume como critério".
Quem até pouco tempo ainda acreditava no sonho americano, agora vê ruir a democracia estadunidense. O fim à liberdade de expressão decretado pelo governo Trump ao perseguir e prender todos os que pensam diferente e são contrários ao seu projeto de poder dá sequência às ilegalidades cometidas pelo governo autoritário. A prisão de Mahmoud Khalil, em Columbia, foi um golpe ao movimento pró-palestina. “Em uma declaração oficial, o governo Trump vinculou Khalil ao grupo terrorista Hamas, sem fornecer nenhuma evidência. Ele também alertou que Khalil seria ‘o primeiro de muitos’, deixando claro que a repressão aos ativistas apenas começou. Para muitos, sua prisão não foi apenas uma punição por seu ativismo, mas um aviso para silenciar qualquer um que questione a visão de mundo do presidente de extrema direita”, declarou Claudia Rosel, uma de suas colegas. Da prisão, ele escreveu uma carta em que acusou a universidade de ceder às pressões de Trump.
Suri was a foreign exchange student at Georgetown University actively spreading Hamas propaganda and promoting antisemitism on social media.
— Tricia McLaughlin (@TriciaOhio) March 20, 2025
Suri has close connections to a known or suspected terrorist, who is a senior advisor to Hamas. The Secretary of State issued a… https://t.co/gU02gLAlX1
Os ataques, que primeiro foram direcionados à Universidade de Columbia, já chegaram à Universidade de Georgetown, onde as autoridades norte-americanas prenderam o pesquisador indiano Badar Khan Suri, acusado de espalhar propaganda para o Hamas e ‘promover o antissemitismo’ nas redes. Tudo isso é parte da repressão às vozes pró-palestina na academia lançada pelo governo Donald Trump, sob o disfarce de suas controversas políticas de imigração. Na mesma onda, o renomado pesquisador francês foi expulso por expressar opiniões pessoais sobre política americana. Na mesma lista de personas não gratas está o pesquisador brasileiro Rodrigo Nogueira, que teve o seu visto de entrada negado para entrar nos Estados Unidos para uma conferência.
Um dos principais nomes da inteligência artificial (IA) do Brasil, o paulista Rodrigo Nogueira, teve o seu visto de entrada negado para entrar nos Estados Unidos, onde daria uma palestra na Universidade Harvard no dia 18 de abril https://t.co/sFNxOiwm0v
— Oliver Stuenkel 🇧🇷 (@OliverStuenkel) March 21, 2025
As prisões e o autoritarismo dão o tom do governo Trump. As promessas de campanha também se cumprem por meio de seus aliados na América Latina. Beneficiando economicamente El Salvador, o mandatário da Casa Branca cumpre com o que disse e deporta centenas de venezuelanos para a megaprisão de Bukele, em El Salvador. O país, que é reconhecido pela brutalidade de seu sistema carcerário, recebe os deportados dos EUA em uma parceira que desafia as leis internacionais. O presidente salvadorenho aparece nas redes exaltando as prisões em massa enquanto o governo encoberta a tortura e a superlotação.
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Após consultar os Estados Unidos, o governo de Israel voltou a bombardear a Faixa de Gaza. Após 59 dias, a trégua acabou. Mais de 710 palestinos assassinados e 900 feridos em 48 horas. 70% dos mortos são crianças e mulheres. Um genocídio que segue impune e que já despejou 85 mil toneladas de bombas sobre os palestinos. O relato de Rasha Abou Jalal, que foi acordada pelo bombardeio na casa ao lado, traz a pergunta de sua filha: “Mamãe! Nós vamos morrer?”. Morrer com fome, não de fome, durante o Ramadã sangrento. Os relatos do drama que é viver em Gaza, no entanto, não atraem os olhares do Ocidente, que segue cego no seu desejo de rearmamento. Os ataques israelenses acontecem quando o prefeito Yahya Sarraj se preparava para a reconstrução.
Israeli bulldozers continue the horrific destruction in Jenin camp as the Israeli military invasion continues for the 59th day in a row. pic.twitter.com/2nefQDdCF3
— Quds News Network (@QudsNen) March 20, 2025
Enquanto Putin estreita os laços com Trump, a Alemanha amedrontada adere à corrida armamentista e deputados aprovam verba trilionária para a compra de armamentos. Bruxelas segue o mesmo caminho. Uma segurança retórica, que apenas eleva o lucro da indústria armamentista, ponderou Marco Tarquinio, deputado do Parlamento Europeu. Poucas são as vozes dissonantes ao projeto armamentista da Europa. Alguns cientistas e o papa Francisco se manifestaram. O pontífice, diante à fragilidade de um corpo doente, foi eloquente e fez um novo chamado à paz: “devemos desarmar as palavras, desarmar as mentes e desarmar a Terra. Há uma grande necessidade de reflexão, de calma, de uma sensação de complexidade”. Quem gritará contra a guerra?
Continuando nosso giro à Europa, os ucranianos agora se descobrem abandonados. Militares amputados são enfáticos: “eles nos traíram, por isso não há mais a mobilização que havia antes. Porque os rapazes não sabem mais pelo que estão lutando, se para defender as fronteiras da Ucrânia ou para garantir que Putin consiga o que quer de qualquer maneira”. Nem de perto podemos imaginar o drama da população ucraniana, que se vê em um brete após Donald Trump chegar ao poder e negociar a paz diretamente com a Rússia. Sem alternativas, o presidente Volodimir Zelensky, cedeu às exigências de perda de território, porém, descartou a possibilidade de entregar as usinas de energia de seu país aos Estados Unidos. Na avaliação do professor José Luís Fiori, “o mais provável é que as negociações post-bellum entre Rússia e EUA se transformem no primeiro passo de uma nova ‘ordem mundial multipolar’ e ‘pós-europeia’, a mais importante de todas as reivindicações e vitórias russas”.
Adentramos à era do delírio tecnomachista. "A indústria da malícia política em seu mais alto nível triunfou; a era do delírio tecnomacho chegou. A violência está na moda nesta era de tecnocracias e neoimperialismos movidos a testosterona", asseverou Alejandra Mateo Fano. Isso não está visiíel somente no alinhamento ideológico de Trump e Musk, mas também na aproximação do presidente dos Estados Unidos com Vladirmir Putin. Um encontro, segundo Thomas Gomart, diretor do Institut Français des Relations Internationales (IFRI), baseado no "culto ao homem forte, uma visão do mundo em esferas de influência e uma lógica de enriquecimento rápido e pessoal". Falando em machismo, concentração de poder e autoritarismo, vale a pena conferir a conferência da professora Letícia Cesarino, que abordou, entre outros assuntos, o infinito desejo de dominação das Big Techs. Assista à íntegra:
O negacionismo do governo de Donald Trump complica o tabuleiro político para a COP30. O Brasil, que deveria assumir o protagonismo climático, patina nas negociações ao dar continuidade ao projeto de exploração de combustíveis fósseis na Amazônia. Aliás, o vazamento de aproximadamente 200 mil barris de petróleo na Amazônia equatoriana esta semana deveria servir de exemplo para o desastre que será a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. A tragédia no Equador já atingiu mais de 500 mil pessoas, que estão com o abastecimento de água suspenso devido à contaminação dos rios, em especial o Esmeralda, que desagua no Oceano Pacífico. E se todas as evidências não são suficientes, o aumento do nível do mar em medidas inesperadas, fez a Nasa soar mais um alerta, que segue sendo ignorado. Por falar em negacionismo, Robert Francis Kennedy Jr., atual Secretário de Saúde dos EUA, concluiu, contrariando a ciência, que é melhor deixar que a gripe aviária se espalhar para fazer uma “seleção natural” dos animais. Para tentarmos encontrar uma saída para essa encruzilhada, além de olhar para a ciência, temos que perceber a "perspectiva de estar no mundo que os povos indígenas ou pensadores como Davi Kopenawa ou Ailton Krenak repetem o tempo todo: não se separa natureza de cultura”, defende o arqueólogo Eduardo Góes Neves.
Em um artigo publicado na semana, o professor e doutor em comunicação Moisés Sbaerdelotto, destrincha a “oração midiática do Frei Gilson. O rendimento milionário das transmissões ao vivo também é colocado em pauta. Segundo a reflexão teórica do autor, “a oração midiática das 4h da madrugada é símbolo de um tempo em que a midiatização da religião catalisa novas formas de comunicação da fé, redefinindo relações dentro e fora da Igreja. A atuação de Frei Gilson nas mídias digitais não é apenas um fenômeno religioso, mas também um complexo ato discursivo e midiático que situa sua religiosidade em um contexto maior de tensões e disputas políticas, econômicas, teológicas e eclesiais”.