17 Março 2025
A humanidade enfrenta enormes desafios globais: mudanças climáticas, fome no Sul global, a maior desigualdade econômica da história, o aumento do risco de pandemias, a ameaça de guerra nuclear. A última coisa de que precisamos hoje é que o Velho Continente deixe de ser um farol de estabilidade e paz para se tornar um novo senhor da guerra.
O artigo é de Carlo Rovelli e Flavio Del Santo, publicado por Roars, 09-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Carlo Rovelli, físico italiano, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy.
Flavio Del Santo, físico, professor da Universidade de Viena.
Como cientistas - muitos de nós envolvidos em setores em que a tecnologia militar está sendo desenvolvida - como intelectuais, como cidadãos conscientes dos riscos globais atuais, acreditamos que hoje é uma obrigação moral e cívica de toda pessoa de boa vontade levantar a voz contra o apelo à militarização da Europa e promover o diálogo, a tolerância e a diplomacia. Um rearmamento não preserva a paz; leva à guerra.
Nossos líderes políticos declaram que estão prontos para lutar para defender os supostos valores ocidentais que acreditam estar em perigo; mas será que estão prontos para defender o valor universal da vida humana? Os conflitos em todo o mundo estão aumentando. De acordo com as Nações Unidas (2023), um quarto da humanidade vive em áreas afetadas por guerras. O conflito entre a Rússia e a Ucrânia, subsidiado pelos países da OTAN com a justificativa de “defender os princípios”, está deixando atrás de si cerca de um milhão de vítimas. O risco de genocídio dos palestinos pelo exército israelense, apoiado pelo Ocidente, foi reconhecido pelo Tribunal Internacional de Justiça. Guerras brutais estão em andamento na África, como no Sudão e na República Democrática do Congo, alimentadas por interesses nos recursos minerais do continente.
O Relógio do Apocalipse do Boletim dos Cientistas Atômicos, que quantifica os riscos de uma catástrofe nuclear global, nunca marcou um perigo tão alto quanto hoje. Assustada com o ataque russo à Ucrânia e com o recente reposicionamento dos Estados Unidos, a Europa se sente posta de lado e teme que sua paz e prosperidade possam estar em risco. Os políticos estão reagindo de forma míope, com um apelo à mobilização de todo o continente e destinando recursos colossais à produção de novos instrumentos de morte e destruição. Em 4 de março de 2025, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou o Plano Europeu de Armamento, declarando: “A Europa está pronta e é capaz de agir com a velocidade e a ambição necessárias. [...] Estamos em uma era de rearmamento. E a Europa está pronta para aumentar maciçamente seus gastos com a defesa”. A indústria militar, que dispõe de imensos recursos e de uma forte influência sobre os políticos e as mídias, alimenta uma narrativa abertamente belicista. O “medo da Rússia” é agitado como um bicho-papão, ignorando convenientemente o fato de que a Rússia tem um PIB menor que o da Itália. Os políticos afirmam, de forma totalmente infundada, que a Rússia tem objetivos expansionistas em relação à Europa, representando uma ameaça para Berlim, Paris e Varsóvia, quando acaba de demonstrar que não é capaz nem mesmo de conquistar Kiev, seu antigo satélite.
A propaganda de guerra sempre se alimenta do exagero do medo. Com a diplomacia, a Europa pode retornar à convivência pacífica e à cooperação com a Rússia que o caso ucraniano interrompeu tragicamente.
A ideia de que a paz depende do prevalecimento sobre os outros só leva à escalada, e a escalada leva à guerra. A Guerra Fria não se tornou uma guerra “quente” porque políticos sábios, de ambos os lados, conseguiram superar profundas divergências ideológicas e “questões de princípio” mútuas, chegando a uma redução drástica, porém equilibrada, dos armamentos nucleares. Os tratados START entre os EUA e a União Soviética levaram à destruição de 80% do arsenal nuclear global.
Cientistas e intelectuais de ambos os lados desempenharam um papel fundamental ao pressionar os políticos em direção a uma redução racional da escalada. Em 1955, o filósofo, matemático e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura Bertrand Russell e o ganhador do Prêmio Nobel de Física Albert Einstein assinaram um influente manifesto que inspirou a Conferência Pugwash, reunindo cientistas de ambos os lados para promover o desarmamento. Quando Russell, em 1959, foi convidado a deixar uma mensagem para a posteridade, respondeu: “Neste mundo, que está se tornando cada vez mais interconectado, precisamos aprender a nos tolerar uns aos outros. Devemos aceitar o fato de que algumas pessoas dirão coisas de que não gostamos. Só assim poderemos viver juntos. Mas se quisermos viver juntos e não morrer juntos, temos que aprender um certo tipo de caridade e um certo tipo de tolerância, absolutamente vitais para a sobrevivência da humanidade neste planeta.”
Devemos valorizar esse patrimônio de sabedoria intelectual.
Os grandes conflitos sempre foram precedidos por enormes investimentos militares. Desde 2009, os gastos militares globais atingiram níveis recordes todos os anos, com os gastos em 2024 atingindo o recorde histórico de US$ 2443 bilhões.
O Plano Europeu de Rearmamento compromete a Europa a investir 800 bilhões de euros em gastos militares. Tanto o atual presidente dos Estados Unidos quanto o atual presidente da Rússia declararam recentemente que estão prontos para iniciar conversas sobre a normalização das relações e a redução equilibrada dos armamentos. O presidente da China tem apelado repetidamente para a redução da escalada e para a mudança de uma mentalidade de confronto para uma mentalidade de cooperação em que todos saem ganhando. Esse é o caminho a seguir. E agora a Europa está se preparando para a guerra, com novos gastos militares planejados, como não se via desde a Segunda Guerra Mundial. A Europa está disposta a brandir armas porque se sente posta de lado?
A humanidade enfrenta enormes desafios globais: mudanças climáticas, fome no Sul global, a maior desigualdade econômica da história, o aumento do risco de pandemias, a ameaça de guerra nuclear. A última coisa de que precisamos hoje é que o Velho Continente deixe de ser um farol de estabilidade e paz para se tornar um novo senhor da guerra.
Si vis pacem para pacem - Se quiser a paz, construa a paz, não a guerra.