Esquerdas governamentais, conciliatórias e apaziguadoras reduziram-se a “salvar o capitalismo dele mesmo” e não conseguem canalizar inconformidade e indignação, tarefa que o fascismo desejado e reivindicado pelas massas tomou para si com sucesso
“O fascismo, aqui e em outros lugares, é a única força com ímpeto de transformação frente a um esgotamento da democracia liberal. A capacidade política anti-institucional foi praticamente toda cooptada por estas forças, isso a faz insurrecional, ainda que cinicamente jogue com a dimensão instituída. Ela oferece a pior resposta possível a um diagnóstico verdadeiro que, em grande medida, as decrépitas forças progressistas buscam negar. Eis o nosso negacionismo, aliado a uma melancolia, que somente nos tem conduzido a sermos o partido da ordem, reativamente compondo a defesa de instituições decrépitas, na direção da conquista do centro político”. A afirmação é de Augusto Jobim do Amaral na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que complementa: “Oxalá houvesse a tão propalada polarização e que, de fato, conseguíssemos produzir um extremo outro ao fascismo. Mas seguimos gerindo as mesmas condições nefastas, como esquerdas governamentais, que nos trouxeram até aqui, ou seja, uma postura conciliatória e apaziguadora”.
Em sua análise, “a única força que canaliza esta inconformidade e indignação segue sendo o fascismo, aqui entendido como ele deve ser: longe de um fenômeno histórico localizado numa política de estados nos anos 20/30 na Europa, mas como um modo de vida, a forma como se organiza hegemonicamente a vida das sociedades liberais, condição que sempre está em circulação. Não o entender assim é torná-lo acidental, uma deturpação, exatamente perdendo de vista que se trata do modo como os processos de subjetivação são realizados, em grande medida, até hoje”. A partir de Spinoza, Étienne de La Boétie, Foucault e Deleuze, o pesquisador observa que longe de terem sido enganadas, as massas na verdade “desejaram o fascismo”.
Nesse contexto, o Brasil não está isolado, mas compõe aquilo que Augusto Jobim do Amaral chama de “internacional fascista”, embalada por uma economia libidinal que ocupa espaços, naturaliza-se e reconfigura-se de muitas formas em cada país. Em nosso caso, temos o componente do militarismo policial que é constitucionalmente chancelado e que encontra ampla aceitação entre setores da população. Assim, a resposta catastrófica oferecida pelo fascismo em sua versão bolsonarista não veio de Marte, mas de fundamentos coloniais escravocratas gestados militarmente no Brasil.
Augusto Jobim do Amaral (Foto: Arquivo pessoal)
Professor permanente do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais e do Programa de Pós-graduação em Filosofia, ambos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Augusto Jobim do Amaral é doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); doutor, mestre e especialista em Ciências Criminais pela PUCRS. Research fellowship (2017-2018) na Universidad de Málaga (Espanha) na área de Teoría y Filosofía del Derecho, junto à Cátedra Abierta de Derecho y Literatura, research fellowship (2018-2019) na Università Degli Studi di Padova (Itália), em Filosofia Política. Professor visitante (2022) na Universidad de Sevilla e na Università Degli Studi di Salerno (2024). Lidera o Grupo de Pesquisa cadastrado no CNPq “Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica”.
Com Felipe da Veiga Dias publicou Tecnopolítica Criminal (Tirant lo Blanch, 2024). É autor de dezenas de outras obras, das quais destacamos: Política de la Criminología: una introducción (Tirant lo Blanch, 2022) e Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica (Tirant Lo Blanch, 2019).
IHU – Em que sentido o Brasil é um laboratório da insurreição fascista?
Augusto Jobim do Amaral – Esse foi o título de uma conferência que dei no Columbia Center of Contemporary Critical Thought da Columbia Law School, em março de 2023 (1), que acabou ganhando tradução em português publicada no Le Monde Diplomatique Brasil no mesmo ano (2), a partir da análise do 8 de janeiro em Brasília e, sobretudo, tentando induzir a discussão radical de uma série de questões fundamentais para o nosso contexto político brasileiro. De algum modo, condensa muito do que tenho pretendido pensar em minhas pesquisas no PPGFil e no PPGCCRim da PUCRS. Em linhas gerais, poderia dizer, sem qualquer alegria nisso, que o fascismo, aqui e em outros lugares, é a única força com ímpeto de transformação frente a um esgotamento da democracia liberal. A capacidade política anti-institucional foi praticamente toda cooptada por estas forças, isso a faz insurrecional, ainda que cinicamente jogue com a dimensão instituída. Ela oferece a pior resposta possível a um diagnóstico verdadeiro que, em grande medida, as decrépitas forças progressistas buscam negar. Eis o nosso negacionismo, aliado a uma melancolia, que somente nos tem conduzido a sermos o partido da ordem, reativamente compondo a defesa de instituições decrépitas, na direção da conquista do centro político. Oxalá houvesse a tão propalada polarização e que, de fato, conseguíssemos produzir um extremo outro ao fascismo. Mas seguimos gerindo as mesmas condições nefastas, como esquerdas governamentais, que nos trouxeram até aqui, ou seja, uma postura conciliatória e apaziguadora.
Enquanto isso, a única força que canaliza esta inconformidade e indignação segue sendo o fascismo, aqui entendido como ele deve ser: longe de um fenômeno histórico localizado numa política de estados nos anos 20/30 na Europa, mas como um modo de vida, a forma como se organiza hegemonicamente a vida das sociedades liberais, condição que sempre está em circulação. Não o entender assim é torná-lo acidental, uma deturpação, exatamente perdendo de vista que se trata do modo como os processos de subjetivação são realizados, em grande medida, até hoje. Por outro lado, levar a sério esta condição vivida é assumi-lo, sim, como revolucionário. Obviamente, bem entendido com Reich, o fascismo como uma mescla de “emoções revolucionárias” e “conceitos sociais reacionários”. De todo modo, que tem como princípio a revolução, mesmo que negada, como assevera Bataille, “negada desde a dominação interna exercida militarmente por milícias”. Certamente, é de ferir o ego dos revolucionários ortodoxos que sonham com a pura epifania emancipatória final.
A meu ver, parece ser esta a condição para fugir imediatamente daquilo que domina em geral o discurso crítico sobre o fascismo, fortemente fixado no Brasil, precisamente definido por Vladimir Safatle, como uma “leitura deficitária do fascismo”. Em vários sentidos do termo, não apenas porque deixa de analisar o fundamental, mas porque permanece restrito a tentar explicá-lo por alguma falta ou deficiência. Assim, multiplicam-se os apontamentos acerca das deficiências cognitivas (normalmente enganados por fake news) ou morais (conduzidos pelo “ódio” ou “ressentimento”), chegando ao extremo do viés nas leituras patologizantes.
Sintomas sociais devem ser problematizados. Logo, preferimos insistir não numa suposta superioridade moral, nem que estejamos a falar simplesmente de loucos guiados por notícias falsas. Há algo de mais fundamental na dimensão molecular dos fluxos de desejo aí mobilizados. Pensamos ser mais frutífero as lições clássicas, desde Spinoza ao menos (ou antes por Étienne de La Boétie), mas seguidas por alguns, como Foucault e Deleuze, de que as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo! A ilusão das massas não é suficiente em resumo para explicá-lo. Assim, elas chegam ao ponto de quererem não só para os outros, mas também para si próprios. Aqui o ponto central, elas querem antes de se justificarem. O que virá a dar substrato e procurará preencher as ações vai ser apenas o efeito de algo que nos faz fazer, nos altera e nos transforma antes. Por isso a importância dos afetos em política, não como meros estados sentimentais, mas como força vital que nos empurra para frente.
Por isso é que podemos arriscar dizer que, de alguma maneira, a dita extrema-direita enxerga muito bem o problema: o esgotamento de uma ordem que não sabem elaborar, com uma resposta profundamente errada e deturpada. Percebem, por assim dizer, alguma verdade com as razões erradas. Armadilha para aqueles que buscam, de fato, alguma transformação, é a sua utilização como subterfúgio para a impotência ou para a covardia política. Para enfrentá-lo não haverá como ignorar este empuxo à criação que devemos recuperar, através de tramas mutantes que gerem novos desejos, contagiem e ponham a circular novos mundos.
IHU – Quais as peculiaridades desse “fascismo à brasileira”?
Augusto Jobim do Amaral – O Brasil, ao contrário do que muitos gostam de imaginar, não é uma ilha e faz parte de um cenário global de uma internacional fascista. Interessante seria indagar como se produz uma espécie de economia libidinal do fascismo que se territorializa e se naturaliza à sua maneira pelo mundo. Devemos ter claro que estamos imersos em ao menos duas propensões em larga escala. De um lado, temos uma internacional reacionária bem estampada no laboratório brasileiro, que se mantém firme e forte, com os temas clássicos e suas variáveis de ordem: Deus, Pátria e Família. De outro, fixada na tendência relativa às democracias liberais e suas dinâmicas de reencantamento institucional. Diante disso, temos tentado camuflar o problema ressoando o argumento de que as “instituições seguem funcionando normalmente” e que a “democracia saiu vencedora”, quer dizer, acovardarmo-nos dentro do discurso jurídico-soberanista das democracias liberais, escondendo que estamos advogando por uma ordem de outro tipo. Somos reféns do medo, sem a menor coragem política de arriscar uma potência criativa maior. Nossa pobreza em algum sentido é política também. Presente uma insuportabilidade docilizada por um falso realismo mortífero que só reconduz às mesmas coordenadas. Vemos nosso futuro sequestrado por um agora esvaziado.
Mas, de modo objetivo, para responder à pergunta, no caso brasileiro, eu diria, entre outras coisas, que nosso experimento social tem um exercício de poder de inarredável enfrentamento: o poder policial. É imanente ao poder policial ser o golpe de Estado permanente. Exatamente por isso é o principal operador da colonização da política pela indistinção entre violência e direito – e pouco interessará neste ponto o regime democrático ou não esculpido formalmente. Ademais, quando coligado o trinômio segurança pública-democracia-direitos humanos, ainda mais ganhará sua expansiva versão hipócrita cool. Daí a razão do fracasso retumbante de todo esforço de humanização de forças de segurança que nada produz senão a expansão do controle e a despolitização da discussão, com as constantes injeções de legitimidade (leia-se, por exemplo, investimento de milhões atualmente dirigidos às geringonças tecnológicas prontas à docilização da sua violência dando ares de aceitabilidade mórbida a nossa condição miserável) operada por reformas.
Já deveríamos ter aprendido no Brasil, antes de qualquer outra nação, que a função da polícia é ser uma gestora, através do dispositivo da segurança, de desigualdades de toda a natureza (raça, classe e gênero). Ela operacionaliza, distribui e legitima a produção da violência militarizadamente. Nunca foi, não é e nunca será distinta dessa realidade: polícia existe principalmente como produtora de desigualdade pela repressão e controle de movimentos sociais e pela administração do comportamento das populações racializadas ou daqueles que saem perdendo nos eventuais arranjos econômicos e políticos vigentes.
Independentemente da boa vontade de quem quer que seja, agente ou não de suas forças, tecnocrata acadêmico entusiasta das reformas ou não, sua marca indelével é o colonialismo e a escravidão. Tratemos disso, em resumo, como índice da insuportabilidade candente da condição brasileira. E isto tudo não cessará com maior transparência, investimento, controle e punição, reforçado pelo argumento das “maçãs podres”. A polícia no Brasil precisa acabar. Discutamos o modo como se dará.
IHU – Sob que aspectos os fatos históricos da colonização exploratória, da escravidão negra e da ditadura civil-militar brasileira são o terreno fértil onde brota e se desenvolve a extrema-direita brasileira? Que reflexos dessa herança permanecem?
Augusto Jobim do Amaral – Prolongando um pouco o que disse antes, Foucault colocou em certo momento a hipótese da guerra de raças como princípio de inteligibilidade histórica da política moderna. Assim, sobre a transformação direta pelo racismo do poder soberano em sociedade de normalização, nosso laboratório biopolítico brasileiro nunca cansou de dar provas. Poderíamos arriscar e afirmar que o Estado brasileiro é efeito e, desde sempre, já se “governamentalizou” tendo como prática as dinâmicas securitárias que sempre agudizam os problemas de soberania e da disciplina, como alvo principal a população. O binômio “guerra-securitização” é o que poderia melhor expressar nosso modelo político, independente do espectro ideológico que falemos. Trata-se da gestão militarizada da sociedade que o Estado brasileiro saberá atualizar permanentemente.
Para esse governo de populações ocupadas, de controle anti-insurrecional, interessa uma guerra securitária como paz, lastreada pela ocupação como estratégia pronta a ajustar seu militarismo diariamente. Nossas Forças Armadas, por exemplo, nunca deixaram de ser intimamente ligadas às diversas atividades daquilo que se pretende chamar de nação. O pálio militar não é privilégio das ditaduras, demonstra muito bem os governos ditos democráticos brasileiros, mesmo em seus desejos progressistas (Polícias Pacificadoras UPPs; GLOs e, sobremaneira, o nosso know-how exportado através de “missões humanitárias”).
Não esqueçamos do resultado deste tipo de formação histórica no Brasil conjugada à política de conciliação bem estampada no autoengano do período da chamada redemocratização. A ideia, de modo resumido, era a de que o consenso conduziria a uma evolução graduação e segura; que a conciliação com partes progressistas da burguesia nacional e setores das Forças Armadas garantiria conquistas aos poucos, mas de modo sólido. Conciliação que se deu também por meio da institucionalização das lutas sociais e que tem como consequência a despolitização da sociedade. Vemos bem hoje a que ponto este estado de coisas pode chegar. Conciliação é apenas outro modo de falar pacificação na esfera macropolítica representativa/eleitoral. É por aí que se deve seguir uma reflexão aguda, a meu ver, para delinear o estatuto político do Brasil na atualidade.
Importa abrir um parêntese neste ponto. Vale apontar, além disso, um aspecto, por vezes ignorado, das propostas de “políticas da memória e reparação” espelhados em certos modelos de “justiça de transição” que ainda se põem como antídoto aos nossos males ou como parte da explicação sobre nossa miserável condição de déficit democrático, principalmente quando o tema é a gestão militarizada da sociedade brasileira. Diga-se, desde logo, que sempre importará mais – ao menos se se quiser levar a sério a exigência adorniana de que “Auschwitz não se repita”, porque a monstruosidade não calou fundo nas pessoas e, portanto, trata-se de sintoma da persistência de uma possibilidade –, para se responder à questão sobre “o que resta da ditadura”, necessariamente, indagar sobre o que se incrementou dela num regime dito democrático. Um pouco de dialética do esclarecimento, neste ponto, não iria mal.
Não se trata de uma ameaça, a barbárie continua existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que a geraram. O fascismo brasileiro, em termos de militarismo policial, constitucionalmente chancelado, possui grande aceitação. É necessário ter em vista, além das dimensões deste sintoma de violência cotidiana, alguns eixos privilegiados sob os quais se deposita e se canaliza tal normalização. O espaço das Forças Armadas, por exemplo, realizando papel de polícia no Brasil é emblemático. Nem precisamos referir, antes, a excrescência do art. 142 da Carta Constitucional que refere serem as “Forças Armadas” aquelas que têm o poder de “garantir” o funcionamento do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, a lei e a ordem.
Porém, há que se dizer que, para além da tarefa mais evidente de perceber as velhas práticas violentas e suas edificações institucionais sobre o verniz democrático – as polícias são local denso destas heranças, mas não só elas –, necessário investir numa postura que arrisque questionar o que há de inédito dentro da própria dinâmica democrática, aquilo que foi incrementado atualmente – o velho fortalecido agora sob o manto da democracia, para que então se possa, em alguma medida, identificar não apenas traços de continuidade óbvios autoritários (como a militarização das nossas polícias, por exemplo), mas surpreender estratégias, dispositivos e performances inéditos nestas mesmas circunstâncias, ou seja, transformações e novas militarizações agravadas agora sob a carapuça democrática. Dizer que tal exercício de biopoder não é novo, como no caso da prática violenta das polícias militares não elide de maneira alguma a reflexão sobre as novidades inauditas nas configurações deste biopoder. Estudiosos da transição política, talvez, tenham ainda pouco atentado para a gestão deste excesso, estes novos modos de governamentalidade: em suma, para além daquilo que se manteve, quer seja institucionalmente quer seja nas práticas brutais naturalizadas, sobretudo, cabe pensar sobre aquilo que se incrementou dos fascismos agora sob o manto democrático. Como gerir esta violência cotidiana passa por interrogar este substrato cultural inédito mergulhado num sintoma que continua a pairar no presente como legado.
Há, ademais, em síntese, como lembra Felipe Catalani, uma espécie de lugar comum aporético nestas iniciativas de “memória política” que parece indicar que bastaria “não esquecer” o ocorrido, por exemplo na ditadura, para que o horror não se repetisse. Presente, aliás, uma certa superioridade moral neste ímpeto de lembrar para “re-civilizar”, pois, afinal, estaríamos agora num regime democrático, esquecendo-se, de fato, que a barbárie está presente no próprio princípio de civilização. Adorno chamou esta postura, na Minima Moralia, de “idiotice”. De toda forma, paira alguma ingenuidade, ou cinismo mesmo, que desvia o olhar para uma questão contábil, ou seja, de um passado hábil a ser restaurado.
Eis os limites de uma “elaboração do passado” que, reificado, em realidade, colabora para o esquecimento e não presentifica as condições correntes das suas violências. Se quisermos falar de “políticas da memória”, ao menos tenhamos claro o que se quer dizer com “elaboração do passado”. A meu ver, inexplicável como mera incapacidade de lembrança, mas pela persistência no presente da ordem e seus pressupostos que outrora tornaram possível o fascismo. E qualquer iniciativa de compensação histórica a ser realizada no âmbito jurídico com seu teatro de tribunais, por si só, já demonstra, no ceticismo de Adorno, a falsificação da justiça, expressa na farsa da equivalência geral das formas jurídicas abstratas.
IHU – Diariamente, vemos a hipótese foucaultiana da biopolítica se concretizar no governo da vida humana. Porém, essa biopolítica tem uma aplicação diversa para negros, indígenas, pobres, periféricos, mulheres e LGBTQIA+, com requintes de perversidade num país estruturalmente desigual como o nosso. Ao mesmo tempo, o poder soberano continua firme no exercício do poder sobre a vida, que é objeto de captura dupla (governamentalidade e soberania). Como analisa este esse cenário face à cultura punitiva através das interfaces criadas entre a criminologia e a filosofia?
Augusto Jobim do Amaral – Parece-me que uma questão fundamental que merece ser posta é retomar a indagação foucaultiana sobre “o que chamamos punir hoje?” Um pouco disso procurei retomar no meu livro Política da Criminologia (Tirant lo Blanch, 2020). Em rápidas palavras, todas as produções e tecnologias de assujeitamento estão interligadas, isto pode se comprovar no modo como a estratégia de soberania, mesmo investindo na morte, faz para produzir súditos, indivíduos, sendo a própria fábrica do sujeito de direito. Da mesma forma, a disciplina, ligando-se ao corpo do vivente, produz corpos dóceis, um adestramento produtivo que potencializa uma função eficiente convertendo tempo de vida em tempo de trabalho. Não esqueçamos que aqui também se produzem o “criminoso” e o “doente mental”, por exemplo. Mas, ainda, se o biopoder acaba por investir não no corpo, não no sistema de leis, mas regulando a população na realidade de práticas securitárias, uma arte de governo que garante o “governo dos viventes” impõe que pensemos a “punição” de modo muito diverso. Noutros termos, se poder punitivo conjuga-se melhor como um esquema interpretativo para analisar a penalidade moderna, como dispositivo que faz subsumir muito mais que a própria repressão de aparelhos de Estado, mas programas, práticas, estratégias que podem produzir tanto sujeitos de direitos (e também aqueles que não se alinham a este esquema jurídico, vidas matáveis como se poderia chamar), corpos disciplinados que irão amalgamar a punição tradicionalmente (“anatomopolítica dos corpos”), o que se ressalta aqui são os corpos governados, através da “biopolítica das populações”. Lembremos quanto o controle, como destaca Deleuze, apresenta-se como traço determinante, expresso, por exemplo, em formações subjetivas de um homem endividado, de um sujeito esgotado psiquicamente etc.
Não obstante, toda esta análise nada valeria se, a meu juízo, se perdesse algo de fundamental. Se numa analítica foucaultiana o poder produz, é porque as resistências vêm em primeiro lugar. Estas mesmas que teimamos em vê-las apenas sob o aspecto vitimário. Por isso, nossa ressalva às abordagens agambenianas que podem permitir a uma condução reduzida de todo o poder a um poder soberano, cuja origem é a produção de vidas nuas, exposto no paradigma do campo em suas práticas tanatopolíticas. Não estou de acordo.
São as resistências, nada passivas que sempre “rexistirão”, que funcionam antes como um espessante, como um catalisador químico que, além de esclarecer como funcionam as relações de poder, intensificam as lutas e fazem emergir modos de vida não capturáveis pela política dos governantes. Procuro partir de uma noção de modos de subjetivação que não podem ser reduzidos a uma exclusiva concepção vitimária.
Biopolítica indica, para além dos biopoderes, um tecido de cooperação social e um campo de batalha. Uma ontologia, se assim quisermos, que inclusive afirma a liberdade como autônoma da relação de representação estatal. Governo é “ação sobre ações”, diria Foucault. Portanto, o funcionamento das relações de poder não é uma exclusividade do uso da violência, pois o exercício do poder “incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável” um modo de agir. Daí a potência insurgente de movimentos que se afirmam diariamente como força criadora. Segundo Foucault, são lutas “transversais” que transbordam os limites de um país, pois não são confinadas a uma forma de política ou econômica particular; são lutas anárquicas “imediatas”, porque objetivam um inimigo imediato, criticam as instâncias de poder que lhes são mais próximas e, ainda, não esperam uma solução para seus problemas no futuro (uma ordem revolucionária) e são lutas que questionam o estatuto do indivíduo contra as técnicas de poder pastoral que nos assujeitam.
Há nisso uma atitude crítica, afinal, que atualiza a potência do desejo político de outra forma, numa espécie, diria Foucault, de “arte de inservidão voluntária, de uma indocibilidade reflexiva”, um modo de recusa anárquica vista como virtude de não ser de tal modo governado. São exatamente estas mesmas forças mencionadas que comprovam que poder não é domínio.
IHU – Em termos mundiais, a extrema-direita se fortalece com o crescimento de sua representatividade na Alemanha e no segundo mandato de Trump e seus desdobramentos sinistros. Qual é sua leitura sobre esse cenário?
Augusto Jobim do Amaral – Como referi, trata-se de uma condição mundial. Enquanto, de modo mais amplo, não desbloquearmos novos futuros e deixarmos de capitular a um “realismo capitalismo” que paira como zumbi, diria Mark Fisher, não deixaremos uma espécie de melancolia nos colonizar. Melancolia, afinal, é um afeto e produto dos compromissos cuja organização de desejos se aferra mais a suas impossibilidades, uma espécie de gestão do esgotamento, do que propriamente a sua produtividade potencial. Por isso, olhará sempre nostalgicamente para o passado de medíocres satisfações, com saudades das instituições do Estado de bem-estar, crendo-se realista.
Em verdade, como dissemos, isso se propaga, pois não há expectativa de transformação radical alguma. O caso Trump é mais uma dimensão deste mesmo fenômeno empreendedor que também não deixa de ser o bolsonarismo, lembrou o amigo Rodrigo Nunes (3). São fenômenos transversais às classes muito em função disso. O sentido de empreendedor pode ligar-se tanto ao rico empresário quanto ao trabalhador informal. Não à toa que esta forma de violência social que é o empreendedorismo – afinal é o que constitui esta não tão nova “razão do mundo” que é o neoliberalismo: a empresa como modelo de subjetivação e a concorrência como norma de conduta – tenha ganho tanto espaço.
Não esqueçamos que, não raro, circula entre as esquerdas governamentais iniciativas de “empreendedorismo periférico” etc. como se fossem alternativas a isso. Não estranha mais esta emulação do que gostaria de combater, pois foram os próprios governos progressistas que mobilizaram e “democratizam” esta dinâmica, naquilo que a amiga Veronica Gago chamou de “neoliberalismo desde baixo”.
Temos que ter claro que esta lógica simplesmente assegura as condições de violência que elas mesmas desdobram. Conjugam a ideia da vida vista como um imenso campo de caça, em que o outro torna-se um inimigo ameaçador e, sobretudo, tem o fracasso como culpa e vergonha particulares – além de um chamado a que se esforce mais na esperança de que na próxima vez seja diferente. Eis os afetos que põe a circular. Por isso, o fascismo de base popular acaba sendo alimentado e assusta as direitas oligárquicas e os progressismos tanto de lá quanto de cá, ignorando o quanto fracasso e impotência, como afetos difusos, vêm obtendo espaço de acolhimento e organização na extrema-direita. E não adiantará oferecer a ilusão (ou cegueira) dos progressismos que ainda investem na crença de que haverá algum efeito apresentando números econômicos positivos, seja nos baixos níveis de desemprego que já não representam quase nada diante de uma profunda precarização do trabalho, seja na elevação do PIB que nunca correspondeu diretamente à redução de desigualdade.
Por outro lado, tal como podemos ver no caso Milei e mesmo Trump, suas políticas de choque de austeridade, de alguma maneira, por incrível que isso possa soar, “funcionarão”. Principalmente, porque, se este regime acarreta a vitória de poucos, não raro gerará mais riqueza e acumulação (menos inflação como no caso argentino claramente efeito da miserabilidade estabilizada e que tenderá a alguma “recuperação econômica” para que a hipócrita troyka internacional econômica e midiática se regozije) e o descarte de quase todos. No entanto, tal derrota da maioria será entendida a insuficiência própria. Por outro lado, estas figuras também estampam o valor de tirar vantagem de condições adversas, de vencer a qualquer custo, pois a concorrência e competição assim demandam. O espectro do vencedor/vendedor pelos atalhos, de soluções rápidas, é algo bem importante de se notar. Será a força do esperto leitor das oportunidades, da especulação enfim (só ver os escândalos cripto em Trump e Bolsonaro) que reina neste tipo de contexto.
Não esqueçamos que, entre os artifícios em questão, sempre esteve a propaganda. De Berlusconi a Milei, de Trump a Bolsonaro, não esqueçamos, eles também são figuras midiáticas, produto da indústria cultural do entretenimento. São, a seus modos, ativos, marcas vistas como valiosas, pois gerenciam a percepção pública produzindo valor para si, não importando se for clown nestas performances.
A teoria crítica já havia alertado para o fato de que figuras como estas, “cômicas” ou “paródicas”, não se dão por acaso. Diante de um quadro de decomposição das promessas de integração, não tardarão em mobilizar uma normatividade cínica, no pior sentido, como lembrava Safatle (4), que nos faz a todo instante duvidar se estão falando sério ou não. Mas, ainda pior, jogam com a própria caricatura para preservar os comportamentos mais brutais. Isto não os impede de comunicarem algo de profundamente honesto. Diante do quadro de esgotamento crítico que nos encontramos, não há espaço para a vida de todos, por isso, por exemplo, liberamos armas, liberamos todos para empreenderem, etc. O que importa ressaltar, portanto, é que permanece um profundo apelo à inconformidade, a uma dinâmica política anti-institucional, a uma ingovernabilidade que não cessa e segue em disputa, mesmo com a nossa atual derrota. Repetimos: o fascismo fala a verdade oferecendo uma resposta catastrófica.
IHU – Como percebe a inserção de magnatas da tecnologia da informação junto ao governo Trump? O que isso diz sobre a democracia liberal e sobre o capitalismo de vigilância?
Augusto Jobim do Amaral – Buscando variar um pouco e evitar alguma repetição daquilo que já busquei colocar, seria importante esboçar algumas linhas sobre uma “política da tecnologia” hoje em dia. Mais do que propriamente falar dos importantes efeitos da tecnologia na política, sobretudo suas influências, manipulações, conduções e estímulos nos regimes políticos – o que, digamos claramente, está longe de ser novidade –, importa ainda perceber os principais pontos de esgotamento que se expressam no debate sobre a regulação jurídica para enfrentar as big techs. Esta grande área de consenso deveria gerar suspeita ao menos pelo fato de que, muito antes de Trump no poder, foram as próprias megaempresas do Vale do Silício que tomaram a dianteira numa “ofensiva de charme” e pediram proativamente a regulamentação, pois sabem que, dispondo o debate nestes termos, já ganharam a luta.
O consenso tecnoliberal sobre a problemática é ainda mais assustador e responde aos anseios da FAANGs (Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Google). Uma iniciativa válida de regulamentação jurídica deste tipo de plataforma teria alguma chance se ao menos estivesse na direção da supressão completa deste modelo de negócio. Quanto mais se encerra a discussão sob estruturas legais limitadas à estratégia de “proteção da vida privada” ou seus equivalentes, maior o engodo frente ao problema da integral mercantilização da vida enquadrada por dados. Através de uma suposta resposta ética que mais parece uma etiqueta que atualiza a religião do progresso, ignora-se que a liberdade está longe de ser algo privado ou individual. Produz-se mais um capítulo na direção da morte da política e do consenso do Vale do Silício quando se constroem objetos fáceis, como direitos de personalidade, dados pessoais e privacidade, prontos a servirem às regulações estatais e jurídicas que os fascismos turbinados tecnologicamente só fazem multiplicar.
Ao não nos questionarmos sobre o núcleo do modelo de negócio, nos entregamos aos meros usos do digital, como se fosse possível pensar uma neutralidade da técnica, como se ela pudesse vir de lugar algum. Pensamos, por exemplo, no “bom uso” dos algoritmos e da IA esquecendo objetivamente que são a base dos negócios das big techs. Tecnologias são construções de mundo, são dispositivos sóciotécnicos que expressam relações de poder, longe de qualquer possibilidade de um manejo meramente instrumental. Suas capacidades são restritas pelas propriedades nelas investidas. Por isso, há uma tremenda ingenuidade, ainda herdada dos primeiros momentos de um utopismo digital, da utilização das redes para fins adequados ou da fabricação de plataformas emancipatórias. Antes de qualquer iniciativa como estas, impõe-se pensar que tipo de tecnopolítica vem sendo mobilizada hoje.
Recair numa leitura dualista, de que estas formas particulares de técnicas hegemônicas representariam possibilidades equivalentes, de melhores ou piores usos, é exatamente reproduzir o que vivemos em termos de tecnologia, na direção da sua universalidade e de incontornabilidade. Uma verdade necessária coloca a contingência como uma necessidade escondendo seus conhecimentos e práticas de poder, inclusive cegando a reflexão para outras possibilidades cosmotécnicas.
IHU – O rearmamento da Europa coloca o mundo sob novas tensões bélicas. Estamos à beira de uma guerra total ou se trata de uma reconfiguração do dispositivo da guerra para seguir financiando a indústria armamentista?
Augusto Jobim do Amaral – A meu ver, acostumamo-nos a naturalizar, de certa forma, a condição da guerra cotidiana em que vivemos. Nossa posição privilegiada parece que teima colocá-la em surdina ou sob o mando de uma formalidade democrática que não resiste a alguns quilômetros de onde moramos, onde vidas não contam e simplesmente equivalem a curvas de normalidade quando se trata de medir suas mortes e desaparecimentos.
Em termos mais categóricos, poderia dizer que o fascismo é o prolongamento político da guerra que seus meios (neo)liberais vêm a confirmar. A condição que nos abate parece ainda mais deplorável. Tentei apresentar isso como um “pós-fascismo” (5), não como se ele tivesse acabado, pelo contrário, suas condições permanecem intactas e prontas a serem ativadas, pelos mesmos fatores que antes historicamente no Brasil sempre o tornaram possível. O fascismo, como dissemos, consiste numa mescla de emoções revolucionárias e conceitos sociais reacionários, como disse Reich ou, como para Bataille, numa revolução afirmada como um princípio negada pela dominação interna exercida militarmente por milícias, portanto, alimentado pelo sofrimento e autofagia. A seu modo, é uma contrarrevolução, já antecipava o anarquista Luigi Fabbri em 1921, que procura fazer frente ao “ingovernável” socialmente. Por isso, a lógica neoliberal se encaixa plenamente. A forma empresa é a continuação da guerra por outros meios, inclusive jurídicos, programando legalmente a liberdade, esvaziada de qualquer demanda política, e naturalizando a submissão e suas violências.
Sobre a condição brasileira, somando algo à outra resposta, somos o laboratório constante de uma “teoria geral da pacificação” em vários sentidos. Somos expertos na lógica da guerra como paz e da paz como pacificação, quer dizer, um experimento da paz como guerra sem fim. Eu diria que, prolongando o nosso sintoma necropolítico e mesmo uma leitura do atual estado do fascismo como suicidário, desde aí ainda caberia tensionar um pouco mais este escopo.
Principalmente em termos brasileiros, como intuímos, talvez haja outra figura sucessiva na qual o fascismo não é mais que um esboço. Seguindo as pistas de Deleuze, devemos atentar para uma máquina de guerra que toma diretamente a paz por objeto. Noutros termos, temos a “paz do Terror ou da Sobrevivência”. Daí emerge a “figura pós-fascista” – a qual poderia servir para ser lançada como indicando algo da condição brasileira contemporânea, em nada anulando as anteriores, mas atravessando-as para além – que se ajusta terrivelmente à nossa atualidade. Uma figura ainda mais terrífica que ultrapassa a guerra total e mesmo a aceleração suicidária como forma de paz.
Eis uma maneira de ver uma outra face do nosso fascismo como laboratório de dessensibilização e de indiferença que historicamente consolidamos. Estabelecemos formas de violências pacificadas que produzem modos de vida que forjam nossas ações e modos de se relacionar. Em suma, se o fascismo é uma espécie de niilismo realizado, linhas de destruição e núpcias com a morte, esta conversão da guerra em movimento ilimitado é apenas um esboço para uma “figura pós-fascista”, quer dizer, um governo pela paz do terror na forma de mera sobrevivência. Uma (nem tão) nova máquina que talvez devamos ainda melhor analisar em outros espaços.
IHU – Como analisa os limites e as possibilidades da organização e reação da esquerda em termos globais frente a esse cenário?
Augusto Jobim do Amaral – Em termos gerais, pode-se dizer que somos a última experiência quiçá mundial das esquerdas governamentais. Ganhamos algum tempo com o governo Lula III para tentar salvar vidas e nos organizarmos. Falhamos flagrantemente. Assumamos a derrota para que reste alguma condição de construção de algo novo e não fiquemos presos a um retorno impossível. As esquerdas, sim, foram incapazes de compreender as crises que nos abateram e ainda nos afligem. Reduziram-se, em grande medida e em longo prazo, a estratégia de salvar o capitalismo dele mesmo, dar a ele um rosto mais humano e, no máximo, serem gestoras varejistas de políticas públicas.
Se sabemos que o bolsonarismo é muito mais profundo e maior que aquele nomeado, é porque ele não veio de Marte. As condições que o tornaram possível são constitutivas, não apenas da gestão do colapso da modernidade patente nos governos Lula e Dilma (com conquistas limitadas ao seu frágil contexto), mas dos próprios fundamentos do colonialismo escravocrata gestado militarmente no Brasil, como já ressaltamos. Trata-se menos da dificuldade de se comunicar com as bases e mais do que dizer para além de bloquear o quadro político na conservação de sua posição de sócio minoritário e retardatário no consórcio de poder. A começar por deixar de ser avalista de uma gestão militarizada da sociedade brasileira, através de políticas de extermínio, encarceramento e controle de populações.
O fascismo, dentro de sua coerência (mesmo que macabra e suicidária), não deixa de dizer a que veio e canalizar a inconformidade difusa pautando o debate. Conseguir, de uma vez por todas, sair da eterna transição, da infinita saída apaziguada pela redemocratização, na direção de pensar em experiências radicais tais como dissemos, por exemplo, a extinção das polícias no país. Irreal é manter o atual estado de coisas. Ademais, deixar de ser avalista de instituições falidas, ainda mais delegando a política ao Poder Judiciário, que hoje estrategicamente se põe como aliado exatamente para preservar sua posição de ator privilegiado de uma elite aristocrática que se vê ameaçada por um fascismo popular desavergonhado.
Mais uma vez, tudo indica a saída pelo punitivismo, a ilusão devastadora e trágica que impede de ver o uso seletivo da lei, da polícia, dos tribunais, da prisão e da polícia contra os subalternizados. Como disse na oportunidade dos dez anos das Jornadas de Junho de 2013, novos junhos virão! (6) Cabe indagar de quem virá e, principalmente, se as forças progressistas funcionarão mais uma vez como bombeiros para estancar seu ímpeto e continuarão virando as costas para o horizonte de escombros que se acumula no aprofundamento de nossa espoliação.
O século XXI pode tranquilamente ser visto, ao invés de emular a ideia de “ascensão dos fascismos”, como momento de insurreições, desde a Praça Tahrir espalhada como estilhaços por todo globo, sinalizando o esgotamento e demonstrando da insatisfação sobre os arranjos hegemônicos, de todos os quadrantes, da democracia representativa. Visto o fascismo uma espécie de contrarrevolução preventiva e prolongada, é contra isso que ele atualmente se metaboliza.
Outros levantes virão e serão, como sempre, produzidos em conjunto a partir da transformação da insustentabilidade da vida em aventura coletiva. Esforço e sopro de fazer juntos, nunca previsto, mas sem dúvida organizado. Dialogando novamente com o querido amigo Rodrigo Nunes (7), devemos darmo-nos conta de outras formas de organização política, que levem em consideração não apenas arranjos combináveis. “Vertical ou horizontal”, a meu ver, está longe de se apresentar como dilema fundamental. Não se trata nem mesmo de combinação ou de hibridismos, ou seja, de fugir de montagens centralizadas ou descentralizadas através da distribuição que, ao fim e ao cabo, sempre semearão mais figuras soberanas, agora mais bem organizadas e reflexivas.
O ponto central não parece ser apenas como oxigenar o instituído, o que já pressuporia seu local de primazia e as forças que o moveriam como antessala da política. O problema parece, para fugirmos da falsa contradição entre espontaneísmo versus burocratização, desse fetiche que congela a relação entre instituído e instituinte, falarmos de temporalidades, de momentos plurais que devemos habitar ao mesmo tempo. Trata-se de pensar outra maneira a “im-possível” relação entre aquilo que tende a fazer-se estátua (instituído) e aquilo que transborda, sem figurá-lo como se fosse um caos sem continuidade (instituinte). Isso passa não apenas por uma ecologia de formas organizativas, mas da conjunção de modos distintos de habitar temporalidades.
As temporalidades fractais das revoltas bem nos ensinam isso, de como habitar a incerteza e elaborar a desordem. Nela se inventam formas que se desfazem logo após. Há um mundo de singularidades móveis que habitam temporalidades distintas, que passam de uma à outra, que arrombam e (de)formam anarquias. As derrotas que eventualmente os acometerão são apenas a centelha de algo a ser reacendido. Se o comum está longe de ser algo a ser recuperado, é porque se trata de uma fabulação que se constrói por forças que avançam juntas, longe das prioridades eleitorais. Estes levantes confluem minoritariamente como processo, longe de um “modelo organizativo”, mas numa mesma aliança para ação. Uma prática, uma tomada de palavra e um exercício de força – centelha de libertação de inspiração alegre, por lutas extensivas dos restos da história não elimináveis –, aldeia/favela/quilombo. Este devir leva a caminhos desconhecidos. Que tenhamos tempo e coragem para vivê-los.
(1) Aqui.
(2) Aqui.
(3) Pequenos fascismos, grandes negócios, Piauí, n. 181, out. 2021.
(4) Aqui.
(5) Aqui.
(6) Aqui.
(7) Nem vertical nem horizontal: uma teoria da organização política. São Paulo: Ubu Editora, 2023.