21 Janeiro 2025
“Após tomar nossos vales, nossas montanhas e nossos oceanos, as empresas que gerem os centros de dados avançam em todos os tipos de futuros coloniais”, escreve Ekaitz Cancela, jornalista e escritor basco.
"Estamos a tempo de propor alternativas, mas precisarão ser tão radicais quanto as propostas dos bilionários", avalia.
O artigo é publicado por Diario Red, 18-01-2025. A tradução é do Cepat.
Nas páginas iniciais de A Parábola do Semeador (1993), Octavia E. Butler descreve um sonho onde a memória terrena e a imaginação cósmica se entrelaçam como luzes distantes compostas de estrelas e corpos celestes. O romance reflete os restos, compostos de recordações e símbolos, de um futuro possível mais esperançoso.
Lauren Olamina, a jovem protagonista que sofre de hiperempatia, encontra no firmamento uma centelha de esperança, quando a mudança climática global e as crises econômicas levam ao caos social na Califórnia, no início dos anos 2020. As estrelas, como espaços comuns e distantes, convertem-se em “refúgios imaginários” contra uma vida de abundância fora da Terra, que foi colonizada. No caos, a visão de Lauren transforma a vastidão cósmica em um lugar íntimo, em um respiro tangível onde o remoto e o possível se abraçam para criar uma nova fé, sobreviver e encontrar um novo destino humano.
Estamos em 2025. Os incêndios florestais na Califórnia arrasaram mais de 400.000 hectares, especialmente em áreas como Los Angeles e Camarillo, forçando milhares de pessoas a sair e destruindo comunidades inteiras. Até o momento, o número de mortos é de 25.
Paralelamente, na Flórida, Jeff Bezos lançou com sucesso o foguete New Glenn, conseguindo colocar um satélite em órbita, embora a tentativa de recuperar o propulsor principal tenha falhado. Este lançamento representa um marco na concorrência espacial comercial, na qual a Blue Origin busca se posicionar frente a empresas como a SpaceX, a companhia de Elon Musk que já domina o mercado com mais de 60 lançamentos bem-sucedidos no ano passado. Isto acontece apenas um dia após o foguete do magnata explodir sobre o Caribe, forçando as companhias aéreas a desviar seus aviões.
A corrida espacial contemporânea representa uma transformação em relação à concorrência entre países da Guerra Fria. Se no passado a exploração espacial estava articulada em torno do prestígio nacional e da segurança geopolítica, hoje, por um lado, configura-se como um vetor de acumulação capitalista e, por outro, como uma estratégia de enfraquecimento do Estado.
As infraestruturas privadas são fundamentais na expansão da batalha geopolítica para o espaço. Como destacou o caso das comunicações por satélite, cujo marco foi o sucesso da União Soviética em colocar em órbita o primeiro satélite, o Sputnik 1, em outubro de 1957, estas tecnologias nasceram no contexto de uma “Guerra Fria total” que subordinava amplos setores da sociedade aos imperativos da segurança nacional e do prestígio global.
Atualmente, os donos das infraestruturas monopolizam as vias de comunicação, favorecendo as lógicas da segurança nacional dos Estados Unidos, facilitando o novo colonialismo espacial e permitindo as lógicas da acumulação por desapropriação. O melhor exemplo de como esse “poder infraestrutural” opera é que Musk controla a empresa de fabricação espacial SpaceX, amplamente ligada ao Exército estadunidense, e ao mesmo tempo lançou a Starlink, uma contratada do Pentágono para criar a maior rede de vigilância do mundo, aliada da Ucrânia no conflito com a Rússia.
Bezos também não é apenas o dono do ramo de comutação na nuvem Amazon Web Services, que concentra um terço do tráfego da internet e dá suporte para a maioria das empresas do IBEX-35, mas também lançou uma empresa de transporte aeroespacial, a Blue Origin, que almeja oferecer voos suborbitais e orbitais, tanto para missões oficiais dos Estados Unidos quanto para voos privados.
No entanto, as visões que os dois magnatas têm sobre a corrida espacial estão longe de ser semelhantes, embora possam ser complementares. Em primeiro lugar, personagens como Elon Musk buscam avançar na agenda libertária de destruição do Estado por meio de qualquer veículo possível. Para isso, desde 2016, defende que a humanidade deveria estabelecer colônias autossuficientes e politicamente independentes em Marte para garantir a sobrevivência da espécie humana quando a Terra for destruída.
A literatura acadêmica destacou que essa forma de mobilizar os imaginários coletivos, muitas vezes provenientes da ficção, faz parte de uma especulação sobre o futuro que pode ser entendida como “regimes de antecipação”, quando uma possibilidade imaginada e desejada é legitimada por meio de narrativas históricas deterministas, de progresso tecnológico e científico contínuo, construídas sobre uma nostalgia por épocas passadas de invenção e exploração. Mas, o que buscam? No caso da SpaceX, isto implica assumir a inevitabilidade da ruína terrestre, enquanto mobiliza um poderoso discurso sobre os grandes homens que se dedicam à inovação científica em detrimento do Estado.
Embora os grandes homens da história e as empresas privadas ágeis e disruptivas sejam apresentados como os protagonistas heroicos e gloriosos, no fundo, encontramos uma ideologia “pós-neoliberal” típica de figuras neorreacionárias. Assentada sobre a base de que é possível existir um complexo mosaico de pequenos e competitivos projetos para a criação de Estados de propriedade privada (“Gov-Corps”), comunidades autônomas fechadas, cidades-estado e, inclusive, comunidades “extraterrestres”, como propõe Musk, nas palavras da pesquisadora Alina Ulatra, almeja-se abandonar os estados territoriais existentes por meio da criação de comunidades soberanas em novos espaços. Entre os exemplos mais notáveis destacam-se a colonização do espaço, mas também a construção de plataformas flutuantes no oceano e os estados digitais na internet, conforme propôs Peter Thiel.
Até o momento, graças às mudanças introduzidas pelo governo Obama para favorecer empresas privadas como a Boeing, a SpaceX conseguiu se posicionar como uma destacada concorrente e impor sua visão de mundo às empresas aeroespaciais tradicionais no âmbito dos lançamentos orbitais de tripulação e carga nos Estados Unidos. A explicação pode ser encontrada em um elemento central da economia capitalista: custos mais baixos, lucros maiores e a acumulação de poder político. Os custos de lançamento da empresa de Musk são mais baixos que os dos rivais. Além disso, possui um orçamento bilionário para ações judiciais quando perde contratos públicos e exercícios de pressão política no Congresso dos Estados Unidos.
Até aqui, tentou influenciar nas negociações comerciais entre os Estados Unidos e a União Europeia, criticando o apoio que a Agência Espacial Europeia (ESA) e o governo francês oferecem à Arianespace, cuja série de foguetes Ariane compete diretamente com o Falcon 9 da SpaceX. Segundo pesquisas, antes, a Arianespace e a Roscosmos dominavam aproximadamente 80% dos lançamentos comerciais. Agora, a SpaceX fica com cerca de 50 a 66% dos novos contratos neste setor. Sua capacidade de oferecer serviços de lançamento eficientes e sua constelação de satélites Starlink também levaram vários países a depender de suas tecnologias. Por exemplo, a União Europeia recorreu à SpaceX para lançar satélites Galileo, marcando a primeira colaboração deste tipo e refletindo a crescente influência da empresa na Europa. Em resumo, não só está redefinindo a exploração espacial, mas também remodelando as dinâmicas de poder entre nações e corporações no século XXI.
Em relação a Jeff Bezos, o magnata imagina a criação de uma infraestrutura imperial por meio da construção de habitats artificiais que orbitariam a Terra e poderiam abrigar bilhões de pessoas, evitando a estagnação civilizacional e expandindo o capitalismo para as estrelas. Nas palavras do magnata, com a Blue Origin, buscaria “construir um caminho para o espaço” e desencadear uma “nova indústria espacial” que possibilite aos empreendedores “criar uma empresa de seu dormitório”. Concretamente, a estratégia é criar operadores de satélite e suporte para o Pentágono que sejam mais baratos que os da SpaceX, graças à chamada “economia extraterrestre”, onde a fabricação e a mineração são feitas no espaço.
Como se fosse a premonição da protagonista do romance de Octavia E. Butler, alguns trabalhos acadêmicos críticos, como o da já citada Alina Ulatra, colocaram sobre a mesa que a ideia de Bezos de conquistar o espaço, a chamada “fronteira vazia”, assenta-se na mesma lógica de territorialização que justificou o colonialismo terrestre e a espoliação indígena. “A colonização espacial é apresentada como uma solução tecnológica para a crise climática, uma que não requer mudar os modelos subjacentes de crescimento extrativista do capitalismo colonial.” Dessa forma, o dono da Amazon acredita que sua infraestrutura permitirá que o capitalismo se expanda para o espaço, ao mesmo tempo em que preserva os ecossistemas terrestres.
Assim como acontece com os projetos imperiais na Terra, os observadores críticos alertam que existe o perigo de que, com a colonização do espaço, repitam-se os erros da colonização territorial da Ásia, Oceania, África e Américas. De fato, a historiadora Mary-Jane Rubenstein situa esse esforço em conquistar o espaço no marco de uma promessa de salvação quase religiosa: diante de um apocalipse iminente, alguns messias extremamente ricos oferecem uma fuga para outro mundo reservado a poucos eleitos. Afinal, os capitalistas tecnológicos não só impõem imaginários sociais e determinam o futuro através do fluxo de mercadorias. São as infraestruturas que sustentam essa utopia estúpida na qual o mercado é o único mecanismo para a nossa realização.
Até o momento, a única posição a esse respeito tem sido retificar a chegada de tecnomaquinaria incrivelmente cara em termos de consumo de energia e rezar para que as empresas do Vale do Silício se instalem em seus territórios. O problema é o seguinte: renunciar à autonomia política para escolher a direção do desenvolvimento tecnológico, seja na terra ou na lua, implica também abandonar outra série de questões fundamentais, como a capacidade de decidir sobre os ecossistemas naturais e combater os riscos provenientes da crise climática.
Um dos espaços mais interessantes para observar são os Centros de Processamento de Dados. Graças a eles, a fibra óptica transcontinental e transoceânica se conecta aos milhares de roteadores e servidores, cada um deles ligado a centenas de outros cabos elétricos que representam outros quatrilhões, “uma quantidade insondável de informação”, como definia o primeiro jornalista do mundo a pesquisar as origens da infraestrutura física da internet global.
No território espanhol, a Amazon construiu um campus de três centros de dados, em Aragón, por meio da sua filial Amazon Web Services. Google e Microsoft abrirão novas regiões de nuvens em Madrid através da Telefónica. A IBM também construirá mais três centros de dados na capital, seu maior investimento na Espanha. Por sua vez, a Orange destinará investimentos no valor de 24 milhões para seus novos centros de dados na “Espanha periférica”, buscando tirar vantagem do baixo preço da terra. Recentemente, o Facebook (agora chamado Meta) anunciou a criação de quase 2.000 empregos para impulsionar o laboratório do metaverso em Madrid e um novo centro de dados em Castela-Mancha.
Em 2023, a entrada de novos atores no mercado de centros de dados na Espanha aumentou a faixa de potência de 200 para 500 MW. Tal capacidade é necessária para converter cada experiência da vida de uma pessoa em um cálculo matemático, quase sempre graças a modelos de inteligência artificial, orientados ao consumo de produtos financeiros e a aumentar consideravelmente as necessidades de extração de recursos naturais. Efetivamente, como mostram artigos acadêmicos, a maioria dos centros de dados requer um grande e contínuo fornecimento de água para gerenciar seus sistemas de resfriamento, o que levantou graves problemas políticos em lugares como os Estados Unidos, onde anos de seca assolaram as comunidades locais.
Em especial, como denunciam relatórios e investigações do Greenpeace, os centros de dados da Virgínia experimentaram um crescimento “espetacular” no uso de energia, atingindo cerca de 4,5 gigawatts, ou seja, a mesma potência de nove grandes centrais elétricas a carvão (cerca de 500 megawatts). O maior culpado, a Amazon Web Services (AWS), gasta 1,7 gigawatts em seus 55 centros de dados (em funcionamento ou construção), o que significou um aumento de 60% nos últimos dois anos. Devido aos avanços na computação em nuvem e ao crescimento do uso de serviços de internet, os centros de dados têm o maior crescimento na pegada de carbono de todo o setor das tecnologias digitais. De fato, segundo o Financial Times, em apenas três anos, a Microsoft viu um aumento de 30% nas emissões de carbono.
Dado que o gasto de energia geral dos centros de dados chegará a um terço dos 20% do consumo mundial de energia gerado pelas tecnologias da informação, a Comissão Europeia assinou um acordo com a empresa Thales Alenia Space para estudar a viabilidade de colocar centros de dados em órbita espacial. Marte e a Lua serão os lugares que o programa ASCEND, dentro do programa de pesquisa Horizon Europe, inspecionará como espaços para colocar os centros de computação com o objetivo de reduzir a pegada de carbono. “Centros de dados são transferidos para o espaço para mitigar o consumo de energia e a poluição”, dizia uma manchete do El País, em 2022.
Em 2019, inclusive a Amazon patenteou uma rede de centros de dados distribuída geograficamente em um ambiente extraterritorial. Também um centro de dados lunar como parte de seu ramo de computação em nuvem, Amazon Web Services, que ficará localizado em Mare Tranquillitatis, uma bacia na Lua. Após explorar até o último espaço possível da Terra, e diante da nula disposição para mudar o modelo de crescimento econômico, uma missão de grandes corporações especializadas em infraestruturas espaciais buscará otimizar a arquitetura necessária para explorar os planetas vizinhos a um custo aceitável.
Essa colonização do espaço por meio de infraestruturas digitais define como funcionam os modelos extrativos das grandes empresas de tecnologia. Após tomar nossos vales, nossas montanhas e nossos oceanos, as empresas que gerem os centros de dados avançam em todos os tipos de futuros coloniais. Algumas estão mais focadas na computação espacial, como a empresa estadunidense OrbitsEdge. Outras, como a empresa japonesa Nippon Telegraph and Telephone, planejam lançar um centro de dados no espaço em 2025. Neste caso, o objetivo é processar localmente os dados dos satélites para transmitir apenas informações úteis selecionadas para a Terra, o que reduziria o tempo e o custo da transferência de grandes quantidades de dados.
Conforme a pesquisadora Yung Au, do Oxford Internet Institute, apontava em um trabalho acadêmico, o pensamento ocidental está estendendo seus imaginários coloniais em direção a esquemas sociais coletivos para projetar utopias de acordo com os planos macabros das grandes corporações tecnológicas. Estamos diante de “um futuro em que o universo é reivindicável, um futuro de céus geridos pela geoengenharia e um futuro em que os bens comuns globais, como a Lua, são repartidos de forma privada”. Estamos a tempo de propor alternativas, mas precisarão ser tão radicais quanto as propostas dos bilionários.
Precisamos de infraestruturas públicas para a comunicação, erradicar as lógicas de vigilância de seu funcionamento, acabar com as guerras e empreender uma corrida entre os países para desmercantilizar as tecnologias digitais. A esse respeito, talvez nos sirva contarmos outros tipos de histórias, como aquela em que as Nações Unidas tentaram aproveitar a promessa de paz para aumentar a cooperação científica e afastar o potencial bélico da Era Espacial por meio da adoção do Tratado do Espaço Exterior, o Acordo sobre o Resgate e o Retorno, a Convenção sobre Responsabilidade, a Convenção de Registro e o Acordo da Lua.