16 Agosto 2022
“Além de descobrir o universo, temos que redescobrir novamente a Terra e protegê-la da lógica fatal dos novos ‘exploradores do espaço’ ou dos autoproclamados ‘ocupantes’”. A reflexão é de Srecko Horvat, em artigo publicado por Jacobin, 11-08-2022. A tradução é do Cepat.
Srecko Horvat é filósofo, escritor e ativista político croata.
Em fevereiro de 2022, o Instituto Adam Smith publicou um informe em que propunha a privatização da Lua com vistas a ajudar na eliminação da pobreza na Terra. Segundo o informe, a Lua deveria ser dividida em parcelas e cedida a vários países para serem alugadas a empresas, o que impulsionaria o turismo espacial, a exploração e as descobertas.
Por enquanto, felizmente, há um tratado que impede esses planos. O Tratado do Espaço Sideral foi elaborado pelas Nações Unidas em 1967 com a ideia de proibir países e indivíduos de se apropriarem do espaço. Também proíbe sua militarização, os testes de armas e as bases militares nele.
O Instituto Adam Smith, no entanto, defende que “com mais países e empresas competindo na corrida espacial do que nunca, é vital que deixemos para trás o pensamento ultrapassado dos anos 1960 e abordemos a questão dos direitos de propriedade extraterrestre o mais rápido possível”.
Até certo ponto, essa visão já é uma realidade. Em 2020, a NASA fez esforços para permitir que as empresas extraíssem recursos, anunciando que apoiaria a extração privada de recursos da Lua.
“Esse é um pequeno passo para os recursos espaciais, mas um salto gigantesco para a política e os precedentes”, disse Mike Gold, ex-chefe de relações internacionais da NASA, resumindo a nova fronteira do capitalismo. Enquanto isso, leis similares estão sendo introduzidas em Luxemburgo, Índia, China, Japão e Rússia que permitem a privatização dos recursos extraterrestres.
Também em 2020, a NASA mudou sua política com vistas a permitir que astronautas particulares fossem à Estação Espacial Internacional. Em abril de 2022, a primeira equipe totalmente privada de astronautas iniciou uma missão de uma semana saudada como um “marco nos voos espaciais comerciais”. Da mesma forma, a SpaceX de Elon Musk e a Blue Origin de Jeff Bezos lançaram seus próprios voos privados para o espaço.
Em suma, a comercialização e a privatização do espaço estão se acelerando. O turismo espacial, a mineração de asteroides e a internet a partir do espaço satelital não são mais ficção científica. Eles se tornaram uma potencial fonte de “crescimento futuro” e de “progresso”.
Se há um filósofo do século XX que voltou seu olhar crítico para a exploração espacial, esse é Günther Anders. Nascido Günther Stern em 1902 em Breslau, Polônia (atual Wrocław), foi aluno de Ernst Cassirer, Edmund Husserl e Martin Heidegger, e trabalhou primeiro como jornalista (foi nesse período que ele começou a assinar seus artigos como “Anders”, que significa “diferente” em alemão, em vez de “Stern”).
Com sua esposa Hannah Arendt ele percebeu a realidade que estava chegando com o hitlerismo. Em 1931-32, ele escreveu seu profético romance distópico e antifascista, Die molussische Katakombe, que terminou no exílio em Paris em 1933, quando Hitler chegou ao poder (no entanto, só seria publicado em 1992, ano de sua morte). Ao longo de sua carreira, escreveu muito sobre tecnologia, a era atômica, Auschwitz e Hiroshima, e também sobre a Lua.
Em 1969, Anders foi uma das 650 milhões de pessoas que assistiram ao pouso na Lua, o primeiro evento televisivo verdadeiramente global do século XX. Enquanto a maioria ficou hipnotizada pela famosa declaração de Neil Armstrong (“um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a humanidade”), Anders tinha uma opinião diferente. Em seu livro The View from the Moon: Philosophical Reflections on Space Travel, comentava que era um salto gigantesco para a humanidade apenas na medida em que se afastava “do caminho que leva a um futuro melhor”.
Embora pareça que uma nova Guerra Fria esteja nascendo, nosso futuro nas estrelas é definido hoje menos pela corrida entre países (EUA versus URSS) do que pela corrida entre empresas privadas (SpaceX versus Blue Origin, etc.).
Foi Anders quem nos alertou com seu “catastrofismo profilático” sobre as perspectivas da apropriação do espaço. No segundo volume do seu The Obsolescence of Man: On the Destruction of Life in the Epoch of the Third Industrial Revolution, fez uma afirmação sobre a mudança do papel da ciência. Ele argumentou que a missão da ciência moderna não é mais “revelar o segredo” – isto é, o segredo ou a essência oculta de algo –, mas descobrir os tesouros ocultos que podem ser apropriados.
Anders coloca a pergunta: “Para que serve a Lua?”. Sua resposta é simples, mas assustadora: para fornecer matéria-prima. E vai mais longe, dizendo que ser matéria-prima é o criterium existendi de hoje. É uma tese metafísica fundamental. Defende que a viagem à Lua “não era o destino, mas o ponto de partida”. O que se apresentava como a descoberta humana da Lua era, na verdade, um “autoencontro com a Terra”.
Foram as imagens do universo do recém-inventado telescópio James Webb que despertaram entusiasmo em todo o mundo. Para Anders, quanto mais sublime o universo parecia, mais trágica era a destruição contemporânea do nosso planeta. Quanto mais a tecnologia avançada, maiores eram as chances de destruição e autodestruição.
Na sua opinião, a visão do telescópio não nos permite ver maior. Em vez disso, escreve, é “como se o universo estivesse nos olhando através de um tubo como punição, encolhendo-nos tanto quanto se expandiu com a nossa visão telescópica”.
Se aceitamos a formulação de Anders sobre o “autoencontro com a Terra”, o que vemos hoje no espelho? O que representa a nossa “Nova Era Espacial” contemporânea?
Há cinquenta anos, Anders descreveu o fenômeno do “provincialismo”: homens que vão para o espaço para se tornarem famosos – ou poderosos – na Terra. É difícil não pensar em uma figura como Jeff Bezos enviando William Shatner (o Capitão Kirk de Star Trek) neste contexto.
Graças à exploração do espaço, o homem se tornou “mais provinciano que ele mesmo”, escreveu Anders, porque as viagens espaciais que supostamente iriam “ampliar o nosso mundo” tiveram exatamente o efeito contrário, isto é, uma fixação ainda maior na Terra. Em um futuro próximo, os planetas ocupados provavelmente servirão primeiro como bases para a extração de valiosos recursos que tornarão ainda mais ricos os mais ricos da Terra. “O futuro já começou”, escreveu Anders. “Mas a serviço do passado”.
Ele afirmou que havia considerado dar a Der Blick vom Mond (A Vista da Lua) o título alternativo de “A Obsolescência da Terra”. No entanto, finalmente decidiu não fazê-lo, porque isso teria implicado que nosso planeta é obsoleto e que teríamos que abandoná-lo e encontrar outros planetas habitáveis. Isso estava longe de ser a intenção de Anders.
Para figuras como Musk e Bezos – os novos ocupantes do espaço – é justamente essa noção de obsolescência da Terra que se tornou o criterium existendi. Precisando de novos recursos para extração, acumulação e lucro, eles buscam colonizar o espaço, mesmo que o preço a pagar seja a destruição da Terra.
A vista que os astronautas da Apollo tinham da Lua foi vista simultaneamente por milhões de telespectadores (aproximadamente um quinto da população mundial da época), mas Anders viu isso como algo mais do que apenas um espetáculo midiático. Ele reconheceu nisso um evento globalizante e metafísico:
“Não apenas eles se encontraram com esta vista, nós também a experimentamos. E como permanecemos na Terra, e como criaturas terrestres que somos, podemos dizer com toda a justiça: pela primeira vez – e este é um acontecimento histórico de um tipo completamente novo – a Terra, diante de um espelho, tornou-se reflexiva, despertou para a autoconsciência ou pelo menos para a autopercepção.”
Depois que o piloto do módulo de comando Michael Collins retornou à Terra da missão Apollo 11 à Lua, ele disse de maneira grandiloquente que os futuros voos “deveriam incluir um poeta, um padre e um filósofo, para que possamos ter uma ideia muito melhor do que vimos”.
O candidato perfeito para o filósofo a bordo teria sido Günther Anders. Embora a maior parte da sua obra (incluindo Der Blick vom Mond) permaneça bastante desconhecida e inédita em inglês, é precisamente sua obra sobre a tecnologia, os apocalipses e a exploração espacial que pode nos guiar hoje.
Hoje, com as imagens de alta resolução das origens do universo, sua pergunta pertinente “Para que serve a Lua?” é mais importante do que nunca, embora possa ser expandida para perguntar: “Para que serve o universo?”. Para que serve descobrir a magia do nosso universo, se continuamos destruindo o planeta Terra? Para que serve Marte se se pretende colonizá-lo com a mesma lógica capitalista de extração e expansão?
Além de descobrir o universo, temos que redescobrir novamente a Terra e protegê-la da lógica fatal dos novos “exploradores do espaço” ou dos autoproclamados “ocupantes”. Embora Günther Anders tivesse sido o candidato perfeito para qualquer missão espacial, ele não precisou viajar para a Lua para ter uma visão melhor da Terra. Mas ele também viu a Lua.
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Colonizar o espaço para destruir a Terra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU