Quando a pandemia começou, alguns disseram que a espécie mudaria para melhor. Outros, como Slavoj Žižek, pensaram que seria o fim do capitalismo. O filósofo croata Srećko Horvat (1983), por sua vez, afirma que o vírus é mais do que um fato biológico e o relaciona de forma direta ao medo.
Em seu novo livro, Después del Apocalipsis (Katakrak), expõe, no entanto, a possibilidade de explorar o Apocalipse como se fosse uma revelação para enfrentar a pandemia, a crise climática e a era nuclear. “Certamente, não estamos todos no mesmo barco, alguns têm superiates e outros não têm o que comer, mas enfrentamos a mesma tempestade”, expõe o escritor em entrevista.
A entrevista é de Héctor González, publicada por Aristegui Noticias, 06-12-2021. A tradução é do Cepat.
Há pouco mais de um ano, você escreveu que a pandemia do medo era mais perigosa do que o vírus. Pensa o mesmo agora?
Quando escrevi isso, em fevereiro do ano passado, na New Statesman britânica, ainda era um período anterior aos primeiros bloqueios na Europa. Meu ponto não era que o vírus em si não seja perigoso e, enquanto falamos, a pandemia não acabou, pelo contrário. Mas o que podemos ver hoje é justamente o que disse há um ano, que o vírus é muito mais do que um fato biológico, está sempre ligado ao medo, e o medo sempre é usado por várias ideologias.
Nesse caso, o que podemos ver claramente é que a pandemia está sendo utilizada tanto pelos etnonacionalistas para fortalecer as fronteiras e criar exclusividade racial, como pelo capitalismo, que se beneficia do prolongado “estado de exceção”. O melhor exemplo é a Amazon. Você sabia que a riqueza de Jeff Bezos aumentou tanto na pandemia que conseguiu pagar a seu 1,3 milhão de trabalhadores um bônus Covid de 690.000 dólares e continuar tão rico como em inícios de 2020? O medo cria incerteza e sempre há aqueles que a utilizarão para obter mais poder e lucro.
Você propõe uma via à margem da esquerda e direita. Em que momento essas ideologias foram superadas?
Bem, você sabe como terminou a ideia da “Terceira Via” defendida por Tony Blair? Quando perguntaram a Margaret Thatcher, em um jantar, em 2002, qual era a sua maior conquista, respondeu: O Novo Trabalhismo. Por quê? Porque, como ela disse, “obrigamos nossos oponentes a mudar de opinião”. Sendo assim, de forma alguma defendo uma “terceira via”.
Quando você olha as derrotas da esquerda na Europa, do Syriza ao Podemos, verá que de alguma forma também acabaram como Tony Blair. Sem falar do novo New Labor, depois de Jeremy Corbyn. Quando a política da esquerda radical começar a fazer uma concessão após outra, reforçando de fato o neoliberalismo, você pode ter certeza de que a ascensão da direita radical vem. Ou como disse, certa vez, o grande filósofo alemão Walter Benjamin: “por trás de todo fascismo, há uma revolução fracassada”.
Basta olhar a Europa e verá que o fascismo está de volta com toda a sua força, e não são apenas alguns grupos marginais de “extrema direita” ou de direita nas ruas, olhe para os governos da Hungria e Polônia, por exemplo. O que temos que criar hoje não é uma terceira via, mas um novo caminho que vá além das derrotas da esquerda e o sucesso atual da direita.
Žižek escreveu que a pandemia seria um cataclismo para o capitalismo, tudo indica que não será assim. Qual é a sua opinião? O capitalismo será reformulado?
Slavoj é meu bom amigo, mas não concordo que a pandemia seja um cataclismo para o capitalismo. Nesse artigo que você mencionou na primeira pergunta, eu também disse que o que parece ainda mais certo hoje é que a pandemia não deterá a circulação e acumulação intermináveis de capital. Em todo caso, “logo poderíamos enfrentar uma forma de capitalismo mais obscura e inclusive mais perigosa”.
Um ano depois, vivemos nessa realidade. A pandemia não serviu como um cataclismo para o capitalismo, mas, sim, como um catalizador. Acelerou o controle tecnológico sobre as populações, gerou mais lucros para pessoas como Jeff Bezos ou Elon Musk, ou simplesmente olhe para os debates sobre o clima em Glasgow. Tudo tem que mudar, para que tudo continue igual.
Houve um blá-blá-blá em Glasgow, como Greta disse tantas vezes, acusando os líderes e países mais ricos de simplesmente continuarem prometendo e falando, em vez de ações climáticas sérias e radicais. Que prova é melhor do que Joe Biden, que precisamente depois de Glasgow anunciou planos para abrir milhões de acres para a exploração de petróleo e gás no Golfo do México? Não é um cataclismo para o capitalismo, é um cataclismo para o nosso planeta.
Em seu novo livro ‘Después del Apocalipsis’, pelo menos em espanhol, você aponta que o apocalipse pode ser uma alternativa. Considera que existem condições para isso?
Absolutamente. O que afirmo em meu livro Después del Apocalipsis é que é justamente na América Latina onde as pessoas já sofreram vários confins do mundo. A colonização por países europeus, o genocídio de populações indígenas, a destruição da natureza. Mas o Apocalipse em seu significado original, proveniente do grego antigo apokalypsis, não significa o “fim do mundo”, significa uma “revelação”, descobre algo, e nesse sentido apresenta uma oportunidade.
Alguns, como o economista grego e meu amigo Yanis Varoufakis, afirmam que já vivemos depois do capitalismo, o que ele chama de “tecnofeudalismo”. Afirmo que estamos vivendo “depois do Apocalipse”, ainda não estou certo o que é exatamente, mas definitivamente não é o tipo de capitalismo que estivemos vivendo. E abre possibilidades, talvez não apenas “tecnofeudalismo”, mas também espaços para a invenção política, para a reconstrução do transnacionalismo, para novas realidades geopolíticas e um entendimento comum de nossa pertença planetária e viagem compartilhada pelo universo.
Certamente, não estamos todos no mesmo barco, alguns têm superiates e outros não têm o que comer, mas enfrentamos a mesma tempestade. E é, conforme expressado novamente por Walter Benjamin em sua memorável descrição do quadro Angelus Novus, de Paul Klee, a tempestade do progresso. Nossa única alternativa hoje é a extinção ou uma reinvenção radical do mundo depois do Apocalipse.
Você se assume como um filósofo radical? Como define o radicalismo?
Há alguns anos, The Guardian me fez uma pergunta semelhante e respondi que o sistema atual é mais violento do que qualquer revolução. Muitos ficaram surpresos, especialmente os liberais, mas meu ponto foi que o sistema atual, com sua interminável exploração, expansão e extração, tanto das almas humanas como dos recursos naturais, é mais radical do que qualquer revolução poderia ser.
Dados recentes confirmam que a cada ano cerca de 10 milhões de pessoas morrem por causa da poluição do ar. Isso significa 100 milhões em apenas uma década. Não gosto de Stalin e lutaria com ele até o meu último suspiro e certamente acabaria em um Gulag, se ele estivesse no poder. Mas esse número é cerca de quatro vezes mais do que todas as vítimas nos Gulags de Stalin.
Não estou dizendo que o capitalismo atual seja uma espécie de stalinismo, estou dizendo que é muito cínico quando se acusa as revoluções de gerar catástrofes, ao passo que o capitalismo em si é uma grande catástrofe que mata centenas de milhares de pessoas todos os anos, seja com uma poluição atmosférica total ou guerras contínuas, exploração e destruição da natureza, que depois levam a mais incêndios florestais, inundações e desastres climáticos, que novamente matam e matarão mais milhões de pessoas. Se essa posição é “radical”, fico feliz que me chamem de filósofo radical. Mas a posição verdadeiramente radical é continuar com essa loucura.