25 Junho 2024
Filósofo, psicólogo e historiador, Foucault procurou compreender – muitas vezes olhando para o passado – as exclusões e as discriminações da sociedade em que lhe cabia viver. Três importantes pesquisadores de sua obra, Edgardo Castro, Christian Ferrer e Hugo Vezzetti, analisam a importância de seu legado intelectual.
A reportagem é de Oscar Ranzani, publicada por Página|12, 23-06-2024. A tradução é do Cepat.
Nesta terça-feira, dia 25 de junho, completam-se 40 anos da morte de Michel Foucault. Ele nasceu em 1926, em Poitiers, na França. Foucault publicou o primeiro de seus grandes livros, Palavras e coisas, em 1966 e rapidamente se juntou a estudiosos como Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss e Roland Barthes para formar a nova onda de pensadores. Filósofo, psicólogo e historiador, foi o criador de uma obra que se situa dentro de uma filosofia do conhecimento.
É conhecido principalmente por seus estudos críticos das instituições sociais, especialmente da psiquiatria, da medicina, das ciências humanas e do sistema carcerário. Suas análises do poder e das relações entre poder, conhecimento e discurso também têm sido amplamente debatidas. A sua vida acadêmica e intelectual esteve associada a um compromisso permanente com as exclusões e discriminações da sociedade em que viveu: presos, doentes mentais, homossexuais e imigrantes, entre outros.
Quarenta anos após a sua morte, quão válido é o pensamento de Foucault? O jornal Página/12 consultou três importantes pesquisadores do seu trabalho. Edgardo Castro é doutor em Filosofia pela Universidade de Friburgo (Suíça), professor de Filosofia na Universidade de Buenos Aires e de História da Filosofia Contemporânea na Universidade de San Martín. Também é pesquisador do Conicet. Christian Ferrer é ensaísta e sociólogo, professor do curso de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais (UBA). Hugo Vezzetti é formado em Psicologia, Professor Associado da Universidade de Buenos Aires e pesquisador principal (aposentado) do Conicet. Foi interventor e decano normalizador da Faculdade de Psicologia da UBA durante a transição democrática, entre 1984 e 1986.
“Em cada autor é sempre possível distinguir entre o que disse e como ou por que o disse, ou seja, entre a sua tese e o seu método. Em ambos os níveis podemos falar da validade do seu pensamento”, diz Castro. “Foucault, como se diz hoje, instalou tanto temas como formas de abordá-los. Para citar alguns, a relação entre política e corpo, entre liberdade e segurança, a questão da sexualidade, a problematização do social e não apenas político formas de exercício do poder e a questão de dizer a verdade (parrésia)”.
Para Castro, essa validade surge, sobretudo, quando são deixadas de lado as imagens estereotipadas do autor, os clichês sobre seu pensamento com função doutrinária, tanto a favor quanto contra. “Penso, por exemplo, para me referir apenas a uma, na questão da verdade. Quando deixamos de repetir a simplificação segundo a qual Foucault reduz a verdade ao poder, emerge a validade de um pensamento que também procura pensar a força da própria verdade, do dizer verdadeiro, neste caso, oposta ao poder”.
Para além de todas as mudanças que separam esta época daquela em que viveu Foucault, Castro pensa que ainda compartilhamos, pelo menos em parte, o mesmo horizonte político ou, em outras palavras, que “ainda não abandonamos aquele horizonte que se formou desde '68, atravessado por tendências e manifestações antitotalitárias e antiautoritárias”. “Basta pensar, por exemplo, nas questões muito atuais, pelo menos entre nós, do libertarianismo. O libertarianismo como movimento político é, na verdade, uma daquelas ideologias dos anos 70 que propunham uma sociedade sem Estado e até contra o Estado. A criação do Partido Libertário nos Estados Unidos remonta a 1971”.
“Essas questões, prossegue Castro, que hoje são tão atuais, porque ainda não abandonamos esse horizonte, fizeram parte das preocupações teóricas de Foucault. E isso explica sua atualidade. Assim, por exemplo, houve e há interpretações liberais de Foucault e também libertárias, especialmente na esfera anglo-saxônica, e, claro, outras que se opõem a elas, principalmente nas esferas latino-americana e europeia, especialmente italiana. Enfim, uma problemática bem atual, que suscita um debate muito interessante”, explica o especialista.
Ferrer considera que na Argentina a época de maior impacto de Foucault foi a década de 1990. “Na Argentina, o Foucault que chegou foi aquele associado à crítica do poder. Não é por acaso que, no final da década de 1980, quando saímos da ditadura, os leitores encontraram em Foucault uma crítica ao autoritarismo, embora a crítica ao poder que Foucault estabeleceu seja muito maior, mas na Argentina foi lida contra a ditadura e nos anos 90 também foi lida contra os abusos de poder, como o governo de Menem”, enfatiza Ferrer.
“Tinha a ver com a saída da ditadura e também com uma nova forma de crítica ao poder que pudesse criticar o autoritarismo militar, mas também o nazismo, a democracia e o liberalismo, ao mesmo tempo. Ou seja, é uma forma de pensar o poder”. Mas Ferrer se pergunta qual era o inimigo de Foucault na Argentina nos anos 80-90. “A socialdemocracia, pois toda essa gente queria chegar ao poder. Foucault, pelo contrário, ao fazer uma crítica tão radical e ao colocar o poder como uma espécie de exercício circulante e não como um bem ou uma mercadoria que deve ser alcançada e que está no topo da pirâmide, estava em outro lugar”, diz Ferrer.
A cátedra ministrada por Foucault no Collège de France, intitulada “História dos sistemas de pensamento” foi inaugurada no dia 30 de novembro de 1969, substituindo aquela intitulada “História do pensamento filosófico”, que Jean Hyppolite lecionou até sua morte. A assembleia de professores do Collège escolheu Foucault em 12 de abril de 1970, quando ele tinha 43 anos. Com exceção do ano sabático que tirou em 1977, lecionou de dezembro de 1970 até sua morte, em junho de 1984. Todos os cursos que Foucault ministrou no Collège de France foram publicados na Argentina em treze obras volumosas e com a cuidadosa edição a cargo da editora Fondo de Cultura Económica.
Teorias e instituições penais é o título que Foucault deu ao curso que ministrou no Collège de France entre novembro de 1971 e março de 1972. Foi a primeira vez que teorizou a questão do poder, tema que o ocuparia até a publicação de Vigiar e punir, em 1975. Lá ele propõe uma ideia muito radical e muito problemática para o pensamento geral na Argentina, segundo Ferrer, porque o que ele propõe é que “a história foi violência, que a história nada mais é do que uma luta entre fracos e fortes, onde os fracos não são melhores que os fortes”.
“Em segundo lugar, porque afirma que a história não vai conseguir acabar com a violência; isto é, que a história nada mais é do que a sucessão de sucessivas dominações de uns sobre os outros e é assim que continuará porque é a dinâmica do poder que impõe isso. E, terceiro ponto, os locais que frequentamos, como fábricas, escritórios, oficinas, residências, escolas (em todos os níveis, fundamental, médio, universitário, pós-graduação), clínicas psiquiátricas, hospitais, todos vêm de um molde primigênio que é a prisão; isto é, o chamado panóptico”, explica Ferrer. Este molde primigênio não desaparece, embora não funcione de acordo com os seus objetivos.
“Se o objetivo é integrar o delinquente, ou o criminoso, ou o infrator, na sociedade, este objetivo não é alcançado. Todos sabem disso. Então, a questão é por que continua existindo”, pergunta Ferrer. E faz a sua análise: “Numa sociedade capitalista, onde se produzem bens, o que a pessoa quer proteger são os seus bens e propriedades. Acontece que chega um cidadão que se aproveita disso e o usurpa; chamamo-lo de ladrão, criminoso. Portanto, ele é punido por sua improdutividade. Enquanto a sociedade não mudar a imagem que tem dele, que é basicamente apoiada pela economia, sempre haverá prisão”.
Nas treze aulas de A sociedade punitiva, ministradas durante o primeiro trimestre de 1973, Foucault examinou a forma como foram forjadas as relações de justiça e verdade que regem o direito penal moderno. Ali se perguntou sobre o que as liga à emergência de um novo regime punitivo que ainda domina a sociedade contemporânea. Ferrer não acredita que Foucault pretenda ir além do sistema carcerário para entrar na própria sociedade capitalista, porque “o sistema carcerário é capitalista”.
“Como disse antes, a prisão é o modelo perfeito de todas as outras instituições que Foucault chama de confinamento, ou ortopedia social. Ou seja, a prisão funciona como um modelo perfeito do que é a fábrica, o escritório, a casa, a escola, e se levarmos isso para os nossos dias, a própria cidade, que é constantemente monitorada por câmeras de segurança urbana, ou a rede de internet que é instantaneamente rastreada por algoritmos que detectam perigos. Obviamente, Foucault não conhecia a internet nem a multiplicação das câmeras de segurança, mas no final das contas é um grande panóptico. Além disso, punir produz gozo. Traz alegria para a polícia, para o Estado. Se não se pode punir diretamente, pede-se a um intermediário que puna por ele: procuradores, juízes, polícias, advogados, políticos”.
O curso O poder psiquiátrico, ministrado entre novembro de 1973 e fevereiro de 1974, mantém uma relação de continuidade com trabalhos anteriores. É uma continuação, pelo menos em termos históricos, de História da loucura: na idade clássica. “A História da loucura culmina no final do século XVIII; O poder psiquiátrico parte deste ponto e se desenvolve ao longo do século XIX. Mas é uma continuação com rupturas. Por exemplo, sobre a relação entre família e asilo. Em História da loucura, a família era o modelo da instituição manicomial moderna; em O poder psiquiátrico isso não é mais o caso. A sociedade disciplinar substituiu a família neste papel. A relação entre violência e poder também foi rompida. Uma continuação, então, mas com importantes mudanças teóricas”, alerta Castro.
Vezzetti enfatiza que em Poder psiquiátrico, Foucault vai além de questionar as práticas da psiquiatria. “O questionamento das práticas da psiquiatria era naqueles anos, e era o que se chamava de antipsiquiatria na Europa, na Inglaterra e na Itália, sobretudo. Antes disso, em História da loucura, ele havia mostrado como na experiência da loucura e, portanto, na experiência da psiquiatria, houve um núcleo fundamental para pensar o desenvolvimento da psicologia e inclusive da psicanálise. Portanto, vai além do desafio da prática”, explica Vezzetti, que destaca que Foucault pensará que há conhecimentos sobre o sujeito que devem ser investigados a partir das figuras da irracionalidade, da razão perdida ou da loucura. “Então, a loucura revela um pensamento sobre o sujeito, nesse caso, sobre o sujeito psíquico”, destaca Vezzetti.
O curso Os anormais, ministrado entre janeiro e março de 1975, amplia as análises que Foucault realiza desde 1970 sobre a questão do conhecimento e do poder: poder disciplinar, poder de normalização, biopoder. Contando com uma grande quantidade de fontes, Foucault concentrou-se no problema daqueles indivíduos perigosos que, no século XIX, eram chamados de “anormais”: os monstros, os incorrigíveis e os onanistas. “Na figura do anormal há uma visão de como se constrói um certo paradigma de normalidade”, diz Vezzetti. “E aí há questões que têm a ver com as dimensões em que a medicina se junta ao direito. Ele trabalha muito essa relação: como o anormal também aparece como uma figura que deve ser delimitada e, de alguma forma, perseguida ou controlada pelo direito e a moral”, acrescenta Vezzetti.
Nascimento da biopolítica, curso que Foucault ministrou entre janeiro e abril de 1979, pode ser pensado como uma continuidade do curso do ano anterior, Segurança, território, população. Depois de mostrar que a economia política marcou o nascimento de uma nova razão governamental no século XVIII, Foucault iniciou a análise das formas dessa governamentalidade liberal. Castro diz: “Nascimento da biopolítica é uma análise do neoliberalismo, nas suas diferentes formas. Foucault está interessado não apenas naquilo que chamamos de neoliberalismo, a Escola de Chicago ou a Escola Austríaca, mas também, e de forma particular, no ordoliberalismo alemão. Liberais alemães e austríacos estão em desacordo em muitas questões. Por exemplo, enquanto os austríacos mantêm a espontaneidade da ordem econômica, para os ordoliberais alemães não há mercado sem o Estado. Em Nascimento da biopolítica, Foucault aborda estas questões do medo do Estado, do que chama de governamentalidade partidária (a subordinação do Estado ao partido ou ao chefe do partido) e depois passa para os neoliberalismos estadunidenses”.
A coragem da verdade foi o último curso que Foucault ministrou: entre fevereiro e março de 1984. Faleceu em 25 de junho. Nessas aulas, ele dava uma espécie de testamento filosófico. “A coragem da verdade dá continuidade à história da parrésia iniciada no decorrer do ano anterior. O tema da morte é recorrente na exposição de Foucault. Mas, na minha opinião, há um momento em que adquire uma intensidade particular, especialmente quando lido retrospectivamente. Estas são as páginas em que ele trata da morte de Sócrates. No final da aula de 22 de fevereiro de 1984, depois de ter dado uma aula sobre a morte de Sócrates, afirma Foucault, é algo que todo professor de filosofia (define-se curiosamente nestes termos) tem que fazer e conclui naquela língua que amava desde os tempos de estudante, quando escrevia composições em latim, ‘salvate animam meam’, salva minha alma”, enfatiza Castro.
Michel Foucault foi um dos pensadores mais influentes do século XX. Logo, a história o pegou pela mão.
Foucault tornou-se um canteiro inesgotável. Às publicações em vida do autor, a partir de 1997, juntou-se a edição póstuma dos seus cursos no Collège de France, na Bélgica e nos Estados Unidos. Há cerca de dez anos, a Biblioteca Nacional da França adquiriu os Fundos Foucault, cerca de 37 mil páginas inéditas que, a partir de 2018, deram origem a uma nova etapa nas edições: a dos seus escritos inéditos.
Quase uma dúzia de volumes já foram publicados em francês. Em espanhol já apareceram pela Siglo XXI Editores: La sexualidad y El discurso de la sexualidad (2019), Ludwig Binswanger y el análisis existencial (2022) e La cuestión antropológica. Em breve aparecerão El discurso filosófico y el Nietzsche de Foucault, que apareceu há apenas algumas semanas.
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