08 Janeiro 2015
Frédéric Gros é o editor dos cursos de Michel Foucault no Collège de France e autor de Michel Foucault (1996) e Foucault e a loucura (1997). Tendo ensinado na prisão por muitos anos, ele dedicou um livro para os fundamentos filosóficos do direito de punir (Et ce sera justice, 2001), bem como outros textos, tais como Estados de Violência: um ensaio sobre o fim da guerra (2010) e Le Principe sécurité (2012). Nicolas Truong do Le Monde entrevistou recentemente Gros sobre o legado de Michel Foucault.
A entrevista é de Jordan Skinner, publicada por Verso Books, 14-07-2014. A tradução é de Pedro Lucas Dulci.
Eis a entrevista.
Por que Michel Foucault se tornou um dos pensadores contemporâneos, cuja “caixa de ferramentas” é a mais utilizada por intelectuais hoje?
O pensamento de Frédéric Gros é extraordinariamente diversificado, desafiando as partições acadêmicas mais firmemente estabelecidas, rejeitando o dogmatismo cego e o monolitismo reducionista. Por exemplo, seu pensamento permite uma re-interrogação das estruturas da linguagem, dos mecanismos de poder e da ética do sujeito, tudo ao mesmo tempo... É inventivo, problemático, recusando-se a deixar-se encaixotar por slogans reducionistas ou verdades definitivas. Neste sentido, é muito apropriado para a nossa era de mutações, com linhas divisórias que são redesenhadas e identidades reconfiguradas.
Até que ponto o seu trabalho pode ser um estímulo útil para o pensamento e para a ação no universo da era digital de vigilância generalizada?
Os grandes estudos de Foucault sobre a sociedade disciplinar são úteis, acima de tudo, porque eles nos permitem delinear, através de contraste e comparação, a governamentalidade digital, que nos sujeita às novas formas de controle, que são menos verticais, mais democráticas e, acima de tudo, menos afetadas por qualquer lastro antropológico. O Homo digitalis hoje participa, enquanto agente principal, da vigilância de si mesmo. A sociedade digital está se tornando uma forma de controle mutualizado. Devemos considerar hoje o tratamento de “big data” relacionando-o com Foucault, baseando-nos nele, mas vendo mais longe do que pôde ver. Porque temos ido bem além da era disciplinar. Os novos conceitos de segurança não são mais aprisionamento de indivíduos e conscientização normativa, mas sim a rastreabilidade e caracterização algorítmica. De modo semelhante, nós precisamos estudar as grandes manifestações contemporâneas do eu, que são irredutíveis à preocupação grega austera e exigente consigo, que Foucault viu como aquilo que acompanha qualquer engajamento político. O cuidado de si mesmo não é nada mais do que dar forma a sua liberdade, refletindo sobre si mesmo antes de agir, a fim de ser capaz de tomar decisões responsáveis, ao invés de simplesmente deixar-se passivamente ser arrastado pelo curso dos acontecimentos. Essa expressão da liberdade é algo muito diferente do que a histérica veneração midiática do eu, onde você pode medir o seu valor pelo seu número de seguidores no Twitter.
Como é que esse intelectual tem inspirado o direito neoliberal, bem como a esquerda radical, de François Ewald a Antonio Negri?
Porque sua obra é muito mais descritiva do que é normativa. Ele inventa novos conceitos (“técnicas de subjetivação”, “governamentalidade”, “biopolítica”), mas não estabelece regras sobre como essas noções podem ser utilizadas. Propõe genealogias sem precedentes de nossa modernidade, mas proíbe-se de julgar. Mais uma vez, cada pessoa tem de vir e assumir a responsabilidade por seus usos: a filosofia é, no fundo, nada mais do que esse movimento de renovação. Foucault constantemente exibe essa reticência para fazer quaisquer proposições normativas, e para muitas pessoas isso representa uma limitação de seu trabalho. Ao mesmo tempo em que, nunca faltarão intelectuais que pensam que seu dever é nos dizer o que fazer e o que não fazer.
Sua preocupação constante, você diria, não são os enigmas do poder, mas sim os mistérios da obediência?
Estudos recentes sobre o cuidado de si indicam que o problema da política é também o problema do sujeito político. Falar de uma “relação consigo mesmo” não é fazer um convite para cada pessoa retroceda ao seu ego, mas sim de colocar a questão do poder de uma maneira diferente: o que é essa relação consigo mesmo, com base no que você se permite executar de uma ordem ou recusar um mandamento? Assim que colocarmos a questão das razões para a obediência, estamos no reino das justificativas para a autoridade. Foucault coloca a questão das modalidades de obediência, porque este nível de questionamento implica a possibilidade de desobediência.
Será que não corremos o risco de erigir estátuas de Michel Foucault, tornando seu trabalho como uma nova doxa? De Jacques Derrida a Jean Baudrillard, Jürgen Habermas a Régis Debray, Marcel Gauchet a Claude Quétel, quais as críticas são mais frutíferas?
De fato, isso é um risco, particularmente no momento em que marcamos o trigésimo aniversário de sua morte. Mas o seu trabalho deve ser avaliado como um convite para pensar de forma diferente, ao invés de um modelo teórico a ser seguido. Ao mesmo tempo, a constituição de uma ortodoxia é singularmente complicada pela dinâmica da sua obra, a qual estava perpetuamente em movimento, aberta ao questionamento infinito. Os críticos de que você fala agora, são eles mesmos parte da recepção da obra de Foucault. A história vai decidir qual entre eles serão de importância decisiva.
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O legado de Foucault: uma entrevista com Frédéric Gros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU